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Do anonimato a lutas de classe e de gênero

Os estudos citados evidenciam a participação, organização política e formação de uma identidade coletiva em reivindicações que se articularam a partir de pautas comuns às mulheres, no que se refere a questões de classe e de gênero. Verificam-se ações coletivas no sentido da representação das mulheres como sujeitos políticos em lutas pelo reconhecimento profissional como trabalhadora rural e, por consequência, a possibilidade de acesso a direitos trabalhistas.

No que se refere ao MMA/SC, de acordo com Casagrande, dois fatores podem ser vislumbrados como determinantes em sua criação e organiza- ção, a saber:

De um lado, a problemática vivida pela pequena produção no que diz respeito a sua reprodução e continuidade. Por outro, a emergência de inúmeras organizações no campo, voltadas para as questões agrárias, das quais as mulheres também participavam, embora de forma anônima. (CASAGRANDE, 1991, p. 37).

O anonimato das mulheres do campo, evidenciado pelo autor, demons- tra a posição secundária ocupada e a invisibilidade das atividades que desenvolviam nas unidades familiares de produção, normatizadas por deter- minada divisão sexual do trabalho, que valora, de forma diferenciada e desigual, atividades realizadas por mulheres e por homens. A análise da posição ocupada pelas mulheres solicita considerar a associação fundante do trabalho, da produção e da família na reprodução de modos de vida na agricultura familiar, na medida em que é “entendida como aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo.” (WANDERLEY, 2009, p. 156). Em tais contextos de produção/reprodução da vida e do trabalho, as atividades realizadas por mulheres e por homens pode ser analisada a partir de normas de gênero, as quais produzem/regulam corpos e relações sociais, no sentido concebido por Judith Butler (2006). A divisão sexual do trabalho é instituída com base no que historicamente se atribui a homens e mulheres em cada contexto laboral (segmentado em produtivo e repro- dutivo) e, portanto, a discussão sobre o tema pode ser localizada no campo das desigualdades de gênero.

Em estudos sobre o trabalho feminino em contextos rurais, Paulilo (1986, p. 135-148) observa que atividades agrícolas realizadas por homens e por mulheres são caracterizadas a partir da classificação de trabalho leve (realizado por mulheres e crianças) e pesado (realizado por homens), o que não remete à atividade em si, mas a quem a realiza. A classificação apresentada indica a produção de desigualdades de gênero que operam na desvalorização e invisibilidade das atividades realizadas pelas mulheres, em grande medida, consideradas “não produtivas” em uma lógica apenas mercantil e que não se aplica ao trabalho realizado nas unidades familiares rurais, conforme preceitua Paulilo (2004, p. 25): “o conceito de ‘trabalho pro- dutivo’ foi cunhado para situações em que se dá a extração da mais-valia, ou seja, quando o trabalho excedente é apropriado pelo dono dos meios de produção, ou seja, o capitalista.”

Frente aos pontos identificados, verificamos que os questionamentos na base da organização das mulheres visibilizaram desigualdades histori- camente produzidas, sobretudo, no que se refere a questões de classe e de gênero. A relação entre demandas de classe e de gênero, na criação e trajetória do MMA/SC, suscitou análises e controvérsias. Um dos questio- namentos principais se referia à ênfase inicial nas questões de classe em detrimento das de gênero, como pode ser observado no estudo já citado de Casagrande (1991). No entanto estabelecer uma separação de demandas e a primazia das lutas de classe na base do movimento de mulheres pode produzir equívocos. Entre os estudos que chamam a atenção para o tema e

que problematizam o argumento da primazia das questões de classe, des- tacamos uma das leituras realizada por Poli (1995, p. 72) em diálogo com a de Casagrande:

O que pode provocar esta confusão é o fato de que as ações de maior impacto realizadas pelo movimento (grandes manifestações públicas, pressão junto ao governo federal, etc.) tenham se voltado às questões de classe. Mas não se pode ignorar, por outro lado, a realização de estudos e discussões sobre as relações homem/ mulher dentro da família, da comunidade e da sociedade como um todo, desde os primeiros momentos.

De forma mais pontual, o autor observa que o tema foi pautado no 1.º e no 2.º Encontros do MMA/SC. No 1.º Encontro, por exemplo, nas con- clusões “sobre os problemas enfrentados pelas mulheres agricultoras, dos quatro itens levantados apenas um (o terceiro) não se refere propriamente às questões de gênero.” (POLI, 1995, p. 71). Além disso, é importante reto- mar a ênfase já destacada sobre a participação das mulheres na luta pelo direito à sindicalização não pelo viés apenas de classe. Na participação de mulheres, segundo registrado por Kroth (1999, p. 94), a palavra de ordem era: “[...] Oficialmente não existimos, queremos ser reconhecidas como trabalhadoras rurais”3.

A participação das mulheres na luta pela sindicalização, nos anos seguintes, possibilitou o questionamento sobre o não reconhecimento “oficial” como trabalhadoras rurais e a luta pelo direito à aposentadoria, ao salário-maternidade, ao auxílio-doença, à documentação (pessoal e profissional), entre outros, garantidos na Constituição Federal de 1988. Em artigo intitulado “Previdência social rural e gênero”, Anita Brumer (2019, p. 50-81) apresenta as principais transformações da previdência social rural no Brasil e a inclusão das mulheres trabalhadoras rurais como beneficiárias (aposentadoria por idade e salário maternidade), a partir da legislação de 1988. A regulamentação da aposentadoria e do salário maternidade para as mulheres rurais, no entanto, só foi efetivamente alcançada nos anos de 1992 e 1994, após muitos embates e pressões por parte das agricultoras organizadas em Santa Catarina e em vários outros lugares interioranos do Brasil. Alguns dos mais notáveis resultados dessas mobilizações foram a já mencionada eleição da agricultora Luci Choinacki, dessa vez como deputada federal em 1990, e as votações favoráveis às mulheres do campo das leis supracitadas.

3  Na nota de rodapé n. 212, Kroth (1999, p. 94) fez o seguinte registro: “O jornal ‘O Estado’. Florianópolis

23/12/84: Mulheres do campo: Não queremos ser escravas. Em meio a uma manifestação pública em defesa da política previdenciária, as mulheres agriculturas de Chapecó carregam consigo uma faixa, com o dizer: Oficialmente não existimos. Queremos ser reconhecidas como trabalhadoras rurais. Mov. de Mulheres de Chapecó. Isto chamou atenção do jornal que passa a registrar este momento.”

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