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1. A SAÚDE E A CONSTITUIÇÃO DO BRASIL

1.3. As formas de prestação de assistência à saúde de acordo com a CF de 1988

A prestação de serviços de saúde no Brasil dá-se, basicamente, nas seguintes formas:

a) pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como serviço público; e b) pela iniciativa privada, de forma suplementar.

Como ensina Maria Stella Gregori73, não há “monopólio estatal sobre a prestação dos serviços de assistência à saúde, na medida em que o setor privado a eles também pode ter acesso”. Esse acesso, porém, em razão da relevância pública, é fiscalizado e controlado pelo Poder Público, conforme previsto no art. 197 da CF, in

verbis:

“Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre a regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.

A CF de 1988, portanto, combinou dois sistemas para atender à assistência à saúde: de um lado há a prestação derivada de serviço público, que pode incluir rede própria, conveniada e contratada ao SUS e, de outro, o atendimento decorrente de um sistema privado autônomo, sem vínculo com o SUS, de caráter supletivo, fiscalizado pelo Poder Público, e objeto do presente estudo.74

73 GREGORI, Maria Stella, op. cit., p. 29. 74 GREGORI, Maria Stella, op. cit., p. 39.

A assistência médica prestada pelo serviço público, como observado, é feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, conforme previsão do art. 198 da CF75, suas ações e serviços são desenvolvidos em rede regionalizada e hierarquizada, constituindo sistema único e organizado, conforme as seguintes diretrizes (incisos I a III do referido dispositivo constitucional): (a) descentralização, com direção única em cada esfera de governo; (b) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e (c) participação da comunidade na gestão do SUS.

De acordo com Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior76, a descentralização do SUS significa que o atendimento à saúde deve ser feito pelos Municípios, pelos Estados (questões complexas) e pela União (gestão do sistema). Acrescentam que o atendimento integral à saúde pressupõe a prevenção, a assistência médica e hospitalar e o acesso aos medicamentos. Por fim, enfatizam que a participação da comunidade foi consagrada pela criação dos Conselhos de Saúde (entes federativos).

O SUS se baseia no princípio da universalidade, pois deve atender a toda a população. Suas diretrizes são a descentralização, com comando único em cada esfera do governo e a integralidade, com atendimento e participação da comunidade. Na lição de Mônica de Almeida Magalhães Serrano, essas diretrizes denotam que o modelo foi criado democraticamente, com o objetivo de a

75“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade.

Parágrafo 1º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (...)”.

universalização do SUS beneficiar a população de forma geral e igualitária.77

Ao regulamentar os respectivos dispositivos da CF, o legislador infraconstitucional o fez de forma a desenvolver ações por meio de órgãos e entidades públicas, instituições públicas, privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme previsto expressamente na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos seus serviços correspondentes, e na Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS.78 As atribuições do sistema único de saúde estão claramente previstas no art. 200 da CF.79

Oportuno esclarecer que os prestadores de serviços privados também integram o SUS e essa prestação se dá em regime público, com regras e características de serviço público e complementam a atividade estatal, diante de sua ineficiência. Como ensina Maria Stella Gregori, “esse braço do subsistema público passou a ser conhecido como setor privado complementar”.80 Não se confunde, porém, com o sistema privado suplementar de saúde, cujos prestadores não têm vínculo algum com o SUS, e prestam serviços mediante a contrapartida da

77 SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães, op. cit., p. 72.

78 CUNHA, Paulo César Melo da. As Agências Reguladoras como instrumento do aparelhamento estatal – A Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Revista de Direito Empresarial Público (coordenadores: Marcos Juruema Vilela Souto e Carla C. Marshall). Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2002, p. 365-389.

79 “Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; II – executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III – ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;

IV – participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; V – incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;

VII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”. 80 GREGORI, Maria Stella, op. cit., p. 40.

remuneração dos cidadãos, ou seja, trata-se dos planos de assistência à saúde tratados especificamente nesse estudo.81

Assim, com relação à exploração da prestação de assistência médica pela iniciativa privada, consagrou a CF de 1988, em seu art. 199, caput, que a “assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, permitindo-se, assim, seu exercício como atividade econômica. Referida atividade é exercida, por conseguinte, pelas pessoas jurídicas de direito privado como prestadores de assistência à saúde, em conformidade com o permissivo constitucional.

Assim, atendidos os princípios constitucionais da livre-iniciativa, da defesa do consumidor e da livre concorrência (art. 170, caput, incisos IV e V, da CF), as operadoras de planos de saúde privados, como pessoas jurídicas de direito privado que são, atuam de forma suplementar ao Estado como prestadores de serviços na área médico-hospitalar.

Neste contexto, na lição de Paulo César Melo da Cunha, “daí porque a Constituição cuidou de caracterizar distintamente as figuras do usuário e do consumidor, estando o primeiro vinculado à execução pública da saúde, sujeito, pois, ao art. 196, da Constituição, ao passo que o consumidor relaciona-se à execução privada, porém adstrito a uma regulação pública, conformando-se ao art. 199”.82

81 GREGORI, Maria Stella, op. cit., p. 40. Maria Stella Gregori destaca que não há consenso sobre a denominação, mas há distinção entre a saúde “complementar” e “suplementar”. Entende que a primeira reflete o “braço” do sistema público, ou seja, são os prestadores de serviços que atuam de forma contratada ou conveniada com o SUS, observando as regras do setor público e submetendo-se ao seu regime. Enquanto a segunda denominação (“suplementar”) refere-se aos serviços prestados pelas operadoras de planos de saúde, de forma suplementar ao serviço prestado pelo SUS. Ao citar entendimento manifestado por Célia Almeida, que adota o conceito de assistência suplementar, acrescenta que tal serviço privado seria suplementar, pois integra a classificação utilizada pelas seguradoras e significa a opção de pagar um plano para ter assistência médica. Adotou-se nesse trabalho a denominação mencionada pela autora, ou seja, suplementar (ALMEIDA, Célia. O mercado

privado de serviços de saúde no Brasil: panorama atual e tendências da assistência médica suplementar. Brasília: IPEA, 1998, apud GREGORI, Maria Stella, op. cit., p. 40).

Para Adalberto Pasqualatto83 as operadoras de planos de saúde têm o respaldo do art. 199 da CF como permissivo para sua atuação de maneira complementar ao Estado, a quem competirá fiscalizar e controlar as atividades privadas, dado que o serviço de saúde prestado por tais entes particulares é de relevância pública. Desde 1988 os planos privados de assistência à saúde integram as “ações e serviços de saúde” previstos no art. 197 da CF e atualmente essa atividade é essencial e de vital importância, dadas as dificuldades e desafios que a saúde prestada pelo setor público vem enfrentando.

Daniela Batalha Trettel ensina que o “constituinte, quanto às ações e aos serviços de saúde, considerou-os expressamente como de relevância pública (art. 197). Ao fazê-lo, não estabeleceu uma hierarquia valorativa dentre os direitos sociais, colocando o direito à saúde no topo, mas destacou que, mesmo que ações e serviços de saúde sejam praticados por particulares, não podem nunca fugir ao interesse público, escapando aos ditames da dignidade humana e da prevalência do direito à vida”.84 Daniela acrescenta que:

“A Constituição não versa separadamente sobre os serviços de saúde público e privado, dando a eles regimes distintos. Não há opção do constituinte de criar regimes diferenciados, um público – pautado pelo direito à saúde – e outro privado – regido tão-somente pelas normas de direito econômico. Ao contrário, optou-se por inseri-los sob a mesma lógica e na mesma seção, em capítulo dedicado à seguridade social”.85

83 PASQUALATTO, Adalberto. A Regulamentação dos Planos e Seguros de Assistência à Saúde:

uma interpretação construtiva. In: MARQUES, Cláudia Lima; LOPES, José Reinaldo Lima; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos (coordenadores). Saúde e Responsabilidade: seguros e

planos de assistência privada à saúde. 1ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 37-64.

84 TRETTEL, Daniela Batalha, op. cit., p. 60. 85 TRETTEL, Daniela Batalha, op. cit., p. 62.

Não obstante o fato de que a iniciativa privada atua de forma desvinculada do SUS, deve respeitar as regras ditadas pelo Estado, pois o constituinte deixou claro que as ações de saúde são de relevância pública. Não integram o SUS, pois não há convênio ou contrato administrativo e, portanto, não há privatização do serviço, mas transferência das atividades à iniciativa privada.86

Ao Estado, ao transferir à iniciativa privada a prestação de serviços de saúde de forma suplementar, competia a regulamentação, o controle e a fiscalização dos serviços. Coube ao Estado, portanto, conforme preconizado no art. 197 da CF, regular a assistência médica privada, estabelecendo normas e diretrizes, sempre pautadas na relevância dessa atividade, essencial à vida do ser humano. Essa diretriz regulatória ocorreu de forma direta e efetiva com a regulamentação dos planos de saúde quando da publicação da Lei nº 9.656/98, a qual somente se consolidou, aproximadamente, 10 anos após a CF de 1988, conforme histórico explanado no capítulo seguinte.

2. CONTEXTO HISTÓRICO DA REGULAMENTAÇÃO DOS