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As ideias de Lefebvre sobre Representações e o Currículo da SEE-SP

3 TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES DE H LEFEBVRE: UMA POSSIBILIDADE DE LEITURA DAS CONCEPÇÕES DOCENTES

3.2 As ideias de Lefebvre sobre Representações e o Currículo da SEE-SP

Lefebvre (1983) trabalha o conceito de Representação, investigando sua importância na contemporaneidade, salientando, como já mencionado, que as representações são produto de um determinado processo social e histórico e podem ser desveladas através da reflexão dos sujeitos envolvidos sobre determinados conceitos.

A teoria das Representações de Lefebvre defende a lógica dialética dos conceitos e, em relação às questões epistemológicas do conhecimento, enfatiza a necessidade de se incluir, na pesquisa sobre estas condições reais, a teoria do desconhecimento, ou seja, aquele conhecimento do senso comum como os valores culturais, crenças, ritos, mitos, que têm sido desprezados tradicionalmente como fonte de compreensão dos fenômenos sociais. Podemos afirmar que a riqueza das Representações talvez se deva ao seu caráter paradoxal, pois

não são ‘fatos sociais’, pois não possuem consistência própria; não são ‘fatos psíquicos’, ainda que motivem os atos, pois só surgem na relação; não são ‘fatos de linguagem’, ainda que o discurso seja seu suporte. As representações não podem reduzir-se nem a um veículo lingüístico nem a seus suportes sociais; para captá-las é necessário estudar o discurso e a prática social correspondente. (Penin, 1989, p.15).

Para Lefebvre (1983), o problema da Representação inicia-se com a não- imediaticidade do mundo existente para os humanos, ou seja, o “eu”, o “outro”, os objetos físicos, os saberes acumulados, os artefatos culturais, enfim tudo o que é existente não está numa relação imediata com o ser humano, desde a instauração da racionalidade pelo pensamento filosófico. Antes deste evento, na Antiguidade Grega, a Representação não se colocava como uma questão, pois tudo era “apresentação”, tudo era “presentificado” na relação direta entre o homem e o ser.

Neste mundo da totalidade, não havia o problema em torno do conhecimento, da separação entre o pensamento e o ser, o sujeito e o objeto, como passou a existir a partir do momento em que a racionalidade passou a ser a única via de acesso para se alcançar o conhecimento verdadeiro, superando a opinião. Para os pré-socráticos, a Representação seria a opinião comum, uma forma enganadora de se aproximar do real, pois a percepção comum vê o mundo como composto de uma diversidade infinita. Assim, a razão prevaleceu como a fonte de toda a verdade. Como não há uma relação direta, uma correspondência perfeita entre o ser humano e o objeto-mundo, este só se tornará conhecido daquele, a partir de um processo de Representação, que se constitui enquanto um trabalho de ação comunicativa ligando sujeitos a outros sujeitos e ao objeto-mundo. É a ação comunicativa que forma a Representação e esta se manifesta tanto na linguagem como na ação do tipo não discursivo, mais precisamente nas práticas do cotidiano. Este trabalho comunicativo consiste na produção de símbolos cuja força reside em sua capacidade de significar, atribuir sentido.

Desta forma, a Representação é uma espécie de trabalho de deslocamento simbólico de objetos e pessoas, concedendo-lhes uma nova configuração, já que trabalha colocando algo no lugar de algo; possui, portanto, uma essência de ordem simbólica.

Lefebvre (1983) destaca em sua obra o fato de Hegel ter elaborado a teoria mais refinada das Representações, já que para o filósofo alemão a Representação é uma etapa, um momento do conhecimento, sendo preciso passar por ela para superá-la. No entanto, mesmo reconhecendo a grande contribuição de Hegel à teoria das Representações, Lefebvre coloca uma objeção, afirmando que o pensamento hegeliano não dá bem conta do poder que elas possuem, embora forneça subsídios para sua compreensão daRepresentação como uma etapa do conhecimento, uma opinião; sendo um primeiro nível de conhecimento, ela deve ser atravessada pela reflexão, superando a opinião em busca do conceito e da ideia, pois a opinião não dá conta do movimento contraditório do real.

Em seus estudos em torno da Teoria das Representações, Lefebvre desenvolveu alguns conceitos que colaboram com a análise sobre o contexto escolar, dentre os quais destacamos a “vida cotidiana” e a “obra”. Compartilhamos com ele seu entendimento da vida cotidiana como sendo apenas um nível da realidade social, fazendo parte da “práxis”, conceito mais abrangente que se refere à prática humana. Sendo assim, a vida cotidiana com seus fatos comuns e repetitivos configura um nível da totalidade composta por todos os tipos de formas de agir, sentir e pensar do ser humano.

De acordo com Penin(1989, p. 31),

Há [...] uma vida cotidiana do Estado, [...] e estudar a vida cotidiana do Estado é estudar ‘no concreto’ as funções e funcionamento dos aparelhos burocráticos, sua relação com a práxis social [...] É do cotidiano que emergem as grandes decisões e os instantes dramáticos de decisão da ação [...] Para Lefevbre, as atividades superiores dos homens nascem do germe cotidiano na prática cotidiana.

Tal como Hegel, Lefebvre (1983) defende a existência de uma ruptura entre o sujeito e o objeto do conhecimento, mas aponta sua crítica em relação ao fato de que só através do conhecimento intelectualizado é que se pode superar as Representações, pois, neste processo, as experiências da vida diária não participam. Segundo o pensador, a Representação é produzida no espaço do “entre”, uma espécie de zona nebulosa e híbrida que comporta as relações entre o indivíduo e a sociedade, sendo um conceito que surge e se formula a partir de condições históricas. Assim, para Lefebvre, uma Representação se constitui do que é “vivido” (conteúdo acumulado pela vivência singular de cada sujeito e/ou pela vivência coletiva e social dos sujeitos envolvidos num contexto específico), e também do que é “concebido” (o ideário e o discurso teórico dos sujeitos sobre o saber criado e divulgado), num movimento dialético que nunca cessa, ocupando os interstícios entre os dois.

Deste modo, as representações "são fatos de palavras e de prática social" (LEFEBVRE, 1983, p. 94), caracterizando-se por serem de natureza social, psíquica e política ao mesmo tempo. É nesse espaço entre o vivido e o concebido que se encontra a chave para a compreensão da (re)produção do homem em sociedade e, em decorrência do poder que a representação possui, é possível transformar e substituir a realidade vivida e percebida pelos sujeitos sociais.

Lefebvre (1983) chama, portanto, a atenção para a necessidade de se reconhecer a importância do senso comum, do conhecimento adquirido no cotidiano, desprezado tradicionalmente em favor dos conceitos, teorias e ideologias que formam o concebido; por

isso, não basta apenas ouvir os professores, mas é preciso ouvi-los no ambiente em que estão inseridos, onde através de suas vivências vão construindo e reconstruindo suas formas de Representação.

Um outro aspecto importante da teoria desenvolvida pelo pensador francês, é sua ideia de que é no espaço das ambiguidades das relações sociais, habitado pelas Representações, cujos pequenos mundos se articulam com o saber, os sonhos, as lembranças e as ficções, que se encontra a chave para a compreensão do homem em sociedade, pois a Representação possui o poder de substituir o real, de ser mediação na construção de imagens.

Com relação ao conceito de obra, Lefebvre utiliza este termo de forma bastante ampla, referindo-se a todas as formas de arte, como a música, a pintura, a poesia, bem como a arquitetura, a cidade, o urbano, o cotidiano, as instituições, a linguagem e até o Estado que, para Hegel, como bem mostra Lefebvre (1983), também constitui uma obra. Trata-se de todas as criações que esclarecem as Representações. A obra corresponde à produção humana e ao mesmo tempo em que esclarece as Representações é por elas esclarecida, num movimento dialético que remete à prática, à criação. Caracterizada como produção única, é feita de uma multiplicidade reunida em uma totalidade, mantendo, porém, sua unidade e originalidade. A obra têm uma presença, que não se situa entre a presença e a ausência, mas reúne as duas, superando o vazio, a própria ausência e a ruptura entre o ser e o pensamento, o sujeito e o objeto. O pensador francês também distingue a obra do produto, argumentando que este é a reprodução, é o repetitivo, como qualquer artefato no sistema capitalista, pois sua finalidade enquanto dispositivo de produção é a reprodução do mesmo, permanecendo no âmbito da técnica. Trata-se de uma repetição comum que permanece no meio das Representações. A

obra, por sua vez, situa-se além destas, vai mais distante, buscando a superação do mesmo,

pois é uma produção única. Enquanto esta possui uma presença, o espaço de Representações preenche o que Lefebvre chama de ausência. Presença seria o momento em que se dá a unidade do sujeito e objeto “em ato”, ou quando o “outro” deixa de alienar o sujeito e o sujeito deixa de impor sua lógica ao objeto. É o momento da criação, da obra, quando há a produção de algo significativo.

Retomando a ideia de que as Representações Sociais são o modo como as pessoas compreendem determinados fenômenos e o sentido que conferem às palavras utilizadas para defini-los, é importante enfatizar que a compreensão de tais fenômenos ocorre não necessariamente a partir de um saber ou qualquer experiência que se tenha em relação a eles, mas através de um conjunto de ideologias existente no cotidiano em interação com aspectos relacionados ao saber científico de forma muito sutil.

Conforme Lefebvre (1983), a Teoria das Representações coloca-se como uma possibilidade de desvelar as condições através das quais algumas Representações de agentes educacionais se formam e se modificam, determinando a prática cotidiana. Isto permite vislumbrar o sentido de algumas concepções que determinam a prática.

O pensamento de Lefebvre sobre a importância do conhecimento do cotidiano e das concepções que lá circulam, confirma este propósito de investigação, já que a validade das ideias que são representadas, pode ser verificada através da “fala” dos professores neste contexto. Referindo-se ao objeto da presente investigação, no que tange ao trabalho pedagógico a partir de um currículo centrado em competências, podemos afirmar que, por este viés teórico, é possível verificar como a assimilação da nova proposta pedagógica contida no Currículo oficial da SEE se articula às concepções básicas dos docentes.

A “verdade” sobre o trabalho docente só pode ser contemplada no seu cotidiano, em meio às suas falas, pois como afirma Lefebvre, “é na vida cotidiana e a partir dela que se cumprem as verdadeiras criações, aquelas que produzem os homens no curso de sua humanização: as obras” (1983, p. 243-244).

Assim, algumas “falas” revelam-se como um material muito rico para ser analisado à luz desse referencial teórico, já que algumas concepções e resistências poderiam explicar fenômenos relacionados às práticas de ensino. Hernandez (1998, p.9) afirma que “alguém aprende quando está em condições de transferir a uma nova situação (por exemplo, à prática docente) o que conheceu em uma situação de formação, seja de maneira institucionalizada, nas trocas com os colegas, em situações não-formais e em experiências da vida diária”. Perecebe-se, no entanto, que há uma tendência a se dar mais importância às propostas ou modelos de formação do que às concepções dos professores sobre os conteúdos, sobre o que eles pensam a respeito de sua forma de atuação, ou o que eles entendem sobre certos princípios pedagógicos.

A perspectiva de análise no sentido da teoria lefebvreana pode contribuir na identificação e descrição dos fenômenos que conferem à prática cotidiana dos agentes educacionais um caráter de reprodução ou de transformação. Através da análise crítica deste nível de realidade, é possível ressaltar o poder das representações, neste caso, dos professores na determinação dos seus conceitos sobre leitura e escrita e aprendizagem por competências.

Fazer um estudo baseado no referencial de Lefebvre significa, pois, tentar compreender que Representações foram construídas pelos indivíduos, de que forma elas se manifestam através dos seus discursos e compreender o que elas dizem a respeito dos

conhecimentos que foram transmitidos ao longo do tempo, o que permite levar ao conhecimento de uma dada realidade.

Tais considerações teóricas reforçaram a intenção de analisar como a proposta de um novo currículo está sendo incorporada no discurso docente e como isto pode refletir na sua ação, ou seja, analisar a fala do professores, buscando recuperar as Representações que supostamente orientam sua prática e interferem na implementação de um novo Currículo com uma proposta centrada nas competências para a aprendizagem dos alunos no Ensino Médio. Para tanto, procedemos à escolha de uma escola da rede estadual da grande São Paulo, por entendê-la como uma obra no sentido proposto por Lefebvre.

O discurso em torno da noção de competência tem se tornado explícito através de extensa bibliografia que trata do assunto, aparecendo de forma contundente no Currículo da SEE, mas seu sentido pode não ser o mesmo atribuído pelos professores, pois o sentido que circula no âmbito da escola a respeito de tal noção, bem como da leitura e da escrita no Ensino Médio, parece depender muito mais da Representação que os professores têm a respeito do que das definições utilizadas oficialmente nos documentos e no mundo acadêmico. Conforme Penin (1994, 1995), o processo de construção do professor acerca de quaisquer conceitos ocorre no interior do espaço de Representação no qual ele está inserido, pelas concepções que vão se acumulando sobre o ensino a partir de um saber sistematizado e também pela vivência da situação prática em sala de aula. Por isso, o estudo sobre as Representações docentes tem por objetivo explicitar presenças inscritas no cotidiano escolar que, pelo fato de serem inconscientes, acabam por tornar-se pouco expressivas, considerando que

muitas das coisas existentes no real só são percebidas depois de conceituadas e nomeadas (...) e que a escola cria ou produz, ela própria, um saber específico, considerando, de um lado, a confrontação entre os conhecimentos sistematizados disponíveis na cultura geral, e de outro, aqueles menos elaborados, provenientes tanto da lógica institucional quanto das características da profissão, como ainda da vida cotidiana escolar (1995, p. 8).

Mesmo admitindo tal possibilidade de análise, não se tem a pretensão de apresentar afirmações conclusivas em torno das Representações docentes sobre o desenvolvimento de competências específicas. Isso porque, segundo a própria teoria que Lefebvre defende, há uma lógica dialética entre os conceitos, cuja aplicação no estudo do cotidiano de uma escola reflete apenas aquela realidade, aquele momento em que, de alguma forma, a ausência se torna

presença pelas criações humanas que, naquele contexto histórico e condições específicas, contem a sua verdade enquanto obra.

O estudo das representações no âmbito da educação, como já dito, tem funcionado como ferramenta de pesquisas que visam à melhoria do processo de aprendizagem, incidindo sobretudo na análise dos discursos e práticas dos professores, com destaque para as pesquisas de Penin (1989; 1995) na investigação das práticas cotidianas voltadas para a transformação da escola.

Na prática, as análises das representações pretendem apreender a estrutura discursiva e simbólica das representações sociais através da busca de unidades nucleares de conteúdo e seus respectivos significados e relações com aquilo que foi dito e expresso pelos sujeitos. Trata-se de uma apropriação do que foi selecionado pelo sujeito a respeito da realidade que o circunda, as proposições, as circunstâncias, os objetos da Representação e das formas como o sujeito combina, estrutura e reestrutura esses elementos.

O foco de interesse desta pesquisa são, pois, as Representações docentes que afetam as práticas de ensino de professores do Ensino Médio e que se efetivam no desenvolvimento das competências em leitura e escrita dos alunos. A apreensão de tais Representações se dá pela análise do discurso dos professores das disciplinas que compõem as quatro áreas do conhecimento curricular, que foram entrevistados individualmente e trabalham em uma escola da rede estadual paulista. A presente pesquisa configura-se, pois, na perspectiva de um estudo de caso.

Assim, assumindo a teoria de Lefebvre como referencial que oferece uma possibilidade promissora de análise dos fenômenos educacionais através do estudo das Representações dos agentes inseridos no cotidiano escolar, e entendendo que a obra situa-se para além das representações, a pesquisa consegue chegar à compreensão dos fatos pedagógicos, ressaltando mais uma vez que se trata de um recorte da realidade, as representações dos professores do Ensino Médio neste momento da obra. Não encontramos melhor forma de encerrar este capítulo do que utilizando as palavras de Penin (1995, p.14):

identificar representações parece-me o início de um caminho promissor para o trabalho pedagógico junto ao professor; em seguida, o desvelamento da origem e do sentido dessas representações, confrontando conhecimento sistematizado e saber cotidiano com as formas pessoais de entendimento.