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1 REDEFINIÇÕES IDENTITÁRIAS EM QUESTÃO: DELINEAMENTOS DA

1.1. As identidades e o campo dos estudos culturais: tensão permanente entre

Para entender as negociações identitárias vivenciadas por meninas que cometeram homicídio, sustento-me nas construções teórico-metodológicas do chamado campo29 dos estudos culturais, tomando a noção de cultura30 e de “identidade desconstrutiva”, elaboradas por Stuart Hall (1997a), como eixos fundantes nesta investigação. Tal escolha baseia-se no entendimento de que a minha pesquisa integra o campo dos estudos culturais, configurando- se, portanto, como um “estudo em aberto” (Hall, 2003, p.199) capaz de estabelecer diálogo com disciplinas da área das ciências sociais e das humanidades, rompendo com limites e fronteiras em direção a um conhecimento interdisciplinar. A rigor, esta perspectiva encarna uma nova forma de entendimento, que agrega ideias, teorias e métodos, “onde velhas correntes de pensamento são rompidas e velhas constelações descoladas, e elementos novos e

velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas” (HALL, 2003, p.

123).

Em verdade, o projeto dos estudos culturais não se caracteriza por uma lógica de entendimento simples. Em seu livro Da diáspora, Hall (2003) relata a experiência dos Estudos Culturais Britânicos, assinalando a concordância com o conceito de intelectual orgânico de Antonio Gramsci (1991), ou seja, que alia suas formulações aos movimentos sociais emergentes. Assim, podemos apontar que, de uma maneira geral, os Estudos Culturias, tendo nascido no contexto global de descolonizações, ao priorizar o heterogêneo, o “dominado”, o descolonizado, o

silenciado, as insurgências que causam fissuras, as próprias fissuras, os atores “menores”, os jogos

de dominação e hegemonia e de homogeneização. Sendo assim, os Estudos Culturais andam de

mãos dadas com diferenças, com “outras formas” – de subjetivar, de produzir, de objetivar, de

enunciar, de sentir, de experimentar.

Stuart Hall (2003) é categórico ao afirmar que, os Estudos Culturais, não podem ser reduzidos a um pluralismo simplista. Como tal, constituem um “projeto em aberto ao

29 Bourdieu(1996, p. 50) descreve o espaço social global como “um campo de forças, cuja necessidade se impõe

aos agentes que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a transformação de sua estrutura”.

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Hall (1997a; 1997b) considera a cultura como um conjunto de valores ou significados partilhados. Há, nessa compreensão, uma importante lembrança do autor sobre o debate que envolveu a definição do conceito de cultura historicamente, inicialmente apreendido como o conjunto de grandes ideias de uma época (remetendo à noção de erudição) para, em seguida, ser visto como o conjunto de atividades populares genuínas (remetendo à noção de autenticidade e rusticidade), mas, também, estruturando uma oposição entre essas duas concepções, passando-se a conceituar, segundo suas especificidades, alta cultura e cultura popular.

desconhecido, ao que não se consegue ainda nomear” (Hall, 2003, p. 199-202). É uma obra inacabada, um retrato que ainda está sendo pintado, contudo, possui interesse em estar conectado com o tempo presente e vigilante às suas opções políticas. Sobre este aspecto, Hall (2003, p. 189-190) explicita que existe uma tensão entre o “estar aberto” ao conhecimento e à

“clausura arbitrária”:

[...] Registra-se aqui uma tensão entre a recusa de se fechar o campo, de policiá-lo e, ao mesmo tempo, uma determinação de se definirem posicionamentos a favor de certos interesses e de defendê-los. Essa é a tensão – a abordagem dialógica à teoria. [...] Se bem que não acredito no fechamento do conhecimento, considero que a política não é possível sem o que denominei de “clausura arbitrária”. [...]. Em outras palavras, não entendo uma política que tenta fazer uma diferença no mundo que não tenha alguns pontos de diferença ou distinção a definir e defender. Trata-se de posicionamentos que apesar de serem últimos não serão nem finais nem absolutos. Não podem ser traduzidos intactos de uma conjuntura para outra; não se pode esperar que se mantenham no mesmo lugar. [...].

Sobre o campo dos estudos culturais, cabe, aqui, fazer um breve histórico sobre a sua emergência, que se deu em meados da década de 1950, compreendido na época como um momento de rupturas significativas com as tradições de pensamento desenvolvidas em torno

do conceito de “cultura”. Assim, com os estudos culturais emergiu um novo campo de

investigação e prática dentro da teoria social.

Segundo Graça (2009), foi a partir de um processo intenso de debates, rupturas,

“viradas” e (des) construções que esse campo emergiu como linha de pesquisa. Seus

principais precursores são: Richard Hoggart, Raymond Williams e E. P. Thompson. As reflexões, encontradas em textos seminais e de formação, constituem referência e rupturas a

“marcar o novo terreno”, cabendo destacar: As utilizações da cultura, de Hoggart; Cultura e Sociedade, de Williams (1780 – 1950); e A formação da classe operária inglesa, de E.P. Thompson. Tais textos de referência configuram respostas às pressões imediatas do tempo e da sociedade em que foram escritos. Conforme reconhece Hall (2003),

Eles não apenas levaram a “cultura a sério, como uma dimensão sem a qual as

transformações históricas, passadas e presentes, simplesmente não poderiam ser

pensadas de maneira adequada. Eram em si mesmos “culturais”, no sentido de

cultura e sociedade. Eles forçaram seus leitores a atentar para a fase de que

„concentradas na palavra cultura‟, existem questões directamente propostas pelas

grandes mudanças históricas que as modificações na indústria, na democracia e nas classes sociais representam de maneira própria e às quais a arte responde também, de forma semelhante (WILLIAMS, 1963 apud HALL, 2003, p. 125).

Dentro desse debate intelectual, gerado pela emergência dos estudos culturais, a década de 1960 assinala a institucionalização desse campo de estudo. Num primeiro momento, no Centro de Estudos Contemporâneos na Universidade de Birmingham, e, a partir de então, por meio dos cursos, textos e publicações procedentes de distintas fontes e lugares. Entre seus fundadores e expoentes estão, portanto, os que procederam com suas produções - Williams, Hoggart, Thompson - e o próprio Hall, que também, dirigiu o referido Centro da Universidade de Birmingham no período considerado de maior fertilidade, entre os anos de 1968 e 1979. Eles procuram estudar a cultura não como um espaço simbólico de dominação e reprodução das ideias dominantes, mas, fundamentalmente, como projeto político-intelectual

orgânico. Cabe ressaltar que “essa linha de pensamento está em sintonia com a denominada „agenda‟ da nova esquerda, da qual participam esses pensadores” (GRAÇA, 2009, p. 05).

De acordo com Hall (2003, p. 125), essa íntima relação, “colocou a política do trabalho intelectual bem no centro dos Estudos Culturais desde o início – uma preocupação da qual, felizmente, eles nunca foram nem jamais poderão ser libertados”.

Sobre isto, Hall (2003) estabelece uma distinção crítica entre “trabalho

intelectual” e “trabalho acadêmico”, mesmo reconhecendo que se articulam mutuamente.

Segundo ele, o trabalho acadêmico inscreve-se numa meta narrativa de conhecimentos acabados e dentro da institucionalização. Já o trabalho intelectual constitui-se uma prática cultural e crítica autêntica, que tem como objetivo a produção de um tipo de trabalho político- intelectual orgânico. Apesar de reconhecer as dificuldades de instituir esse trabalho intelectual, ele afirma que tal perspectiva está no horizonte do projeto dos Estudos Culturais. Assim, circunscreve o projeto político da teoria neste campo como:

[...] um conjunto de conhecimentos contestados, localizados e conjunturais, que têm que ser debatidos de um modo dialógico. Mas, também como prática que pensa sempre a sua intervenção em que faria alguma diferença, em que surtiria algum efeito. (HALL, 2003, p. 204).

Em sua obra Da Diáspora (2003), no capítulo específico sobre os Estudos Culturais, Hall ressalta a diversidade de perspectivas, com percursos e entendimentos diferenciados no interior do debate no campo cultural. Tais divergências constituíram

“rupturas significativas com velhas correntes de pensamento”, marcadas por outras

aproximações teóricas31. O autor reconhece que o campo dos estudos culturais foi construído

por metodologias e posicionamentos teóricos diferentes, sempre num debate de distintas posições. Neste sentido, o mesmo destaca duas grandes vertentes, partindo de dois paradigmas que circunscrevem este campo, ou seja: oculturalista e o estruturalista – admitindo que tais vertentes integram universos intelectuais e conceituais essencialmente distintos.

Sobre o paradigma culturalista, em face de ter uma importância significativa na construção e sustentação do pensamento dos estudos culturais, é considerado por Stuart Hall

como predominante nesta abordagem. Nele, a questão da “cultura” se constituiu o local de

convergência dos debates, reflexões e publicações. Tal paradigma se constrapôs ao “papel

residual” conferido ao “cultural”. Dada a complexidade desse conceito, que se constitui

dentro de um campo em permanente tensão, e pela inexistência de uma definição única de cultura, cabe destacar a seguinte definição construída pelo paradigma culturalista:

[...] algo que se entrelaça a todas as práticas sociais; e essas práticas, por sua vez, como uma forma comum de atividade humana: como práxis sensual humana, como a atividade através das quais homens e mulheres fazem história. [...] Ela define cultura ao mesmo tempo como os sentidos de valores que nascem entre as classes e grupos sociais diferentes, com base em suas relações e condições históricas, pelas quais eles lidam com suas condições de existência e respondem a estas; e também como as tradições e práticas vividas através das quais esses “entendimentos” são expressos e nos quais estão incorporados (HALL, 2003, p. 133).

Já o paradigma estruturalista chegou ao cenário dos estudos culturais com posições mais diversificadas. Ao contrário dos culturalistas, os estruturalistas movimentaram

suas intervenções em torno da “ideologia” como conceito-chave. Nesse contexto, Hall destaca

a relevância da obra de Lévi-Strauss na produção dos estudos culturais, em especial com o estruturalismo. Ao apropriar-se do paradigma linguístico, Lèvi-Strauss propiciou às ciências humanas que estudam a cultura certo reconhecimento e rigor científico de uma forma inovadora. Outra contribuição importante diz respeito ao pensamento de Althusser, especialmente através de suas formulações seminais sobre a ideologia. No âmbito desse

linguística” – a descoberta da discursividade, da textualidade – decorrente dos encontros com pesquisas

estruturalistas, também com a abordagem semiótica e pós-estruturalista. No contexto dos estudos culturais

britânicos, Hall assim destaca os ganhos oriundos das aproximações com esses conceitos: “a importância crucial

da linguagem e da metáfora para qualquer estudo da cultura; a expansão da noção, do texto e da textualidade, quer como fonte de significado, quer como aquilo que escapa e adia o significado; o reconhecimento da heterogeneidade e da multiplicidade dos significados, do esforço envolvido no encerramento arbitrário da semiose infinita para além do significado, o reconhecimento da textualidade e do poder cultural, da própria

representação, como local de poder e de regulamentação; do simbólico como fonte de identidade” (HALL, 2003,

paradigma, os estudos culturais aproximaram-se de outros estruturalistas, sobretudo da crítica semiológica de Roland Barthes, criteriosa e ao mesmo tempo rigorosa.

Segundo Graça (2009, p. 07), a vertente estruturalista desenvolve ramificações no campo da semiótica e do paradigma linguístico com Saussure, movimentando-se através de

conceitos psicanalíticos da análise de Lacan, ao enfatizar questões do “discurso” e do “sujeito”, buscando, assim, preencher as lacunas deixadas pelo estruturalismo em sua fase

inicial. Agrega, ainda, o referencial pós-estruturalista de Michel Foucault e Jacques Derrida32. Esse percurso marcado por momentos de “evolução da teoria”, Hall denomina de “virada linguística”, que constitui a descoberta da discursividade, da textualidade, no âmbito dos estudos culturais britânicos.

A partir desse resgate de inspirações e influências teóricas, analistas como Hall (2003), e Escosteguy (2003) destacam que os Estudos Culturais possuiriam uma raiz marxista, a qual se fundamenta na construção gramsciana, que amplia a discussão de ideologia e de cultura, conferindo-lhes novo estatuto. Por outro lado, os Estudos Culturais afastam-se do marxismo ortodoxo, elaborando uma perspectiva crítica. Hall (2003, p. 191) chama atenção para o fato dos Estudos Culturais assumirem sempre posição de crítica e reflexão33 aos

“elementos que aprisionavam o marxismo como forma de pensamento”, tais como: “a

ortodoxia, o caráter doutrinário, o determinismo, o reducionismo, a imutável lei da história e o seu estatuto de metanarrativa”. Assim, a aproximação dos Estudos Culturais com o pensamento marxista se constrói via pensamento de Antônio Gramsci, cuja Obra redescobria- se nos anos 60. Não por acaso, um dos capítulos da Diáspora é dedicado ao pensador italiano, que, já no início do século XX, tinha uma visão particular da cultura que se aproxima de tendências hoje em destaque. Desse modo, Hall reconhece que os Estudos Culturais, no contexto britânico, muito aprenderam com a perspectiva gramsciana, especificamente contribuições e avanços teóricos:

[...] sobre a natureza da própria cultura, sobre a disciplina do conjuntural, sobre a importância da especificidade histórica, sobre a extraordinariamente produtiva metáfora da hegemonia, sobre a maneira como se pode pensar relações de classe recorrendo à noção deslocada de conjuntos e blocos”. (HALL, 2003, p. 193).

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Sobre estas discussões teóricas desenvolvidas pela vertente estruturalista, ver Hall (2003).

33 Stuart Hall (2003), ao se referir ao marxismo ortodoxo, tradicional, chega a afirmar que, a partir da sua

formação política, ele entrou no marxismo “de costas”. Em verdade, reconhecendo a influência do marxismo nos Estudos Culturais, demarcou a distância crítica sempre existente entre esses dois campos. O que implica numa vigilância permanente às perspectivas economicistas, reducionistas e doutrinárias do marxismo tradicional. (GRAÇA, 2009, p. 08).

Em seus estudos, Hall assinala a necessidade de se pensar a relação existente entre a teoria e a política. Nesse sentido, enfatiza que:

Enquanto os estudos culturais não aprenderem a viver com esta tensão, que todas as práticas teóricas têm que assumir – uma tensão que SAID descreve como o estudo

do texto nas suas afiliações com „instituições, gabinetes, agências, classes,

academias, corporações, grupos, partidos ideologicamente definidos, profissões, nações, raças e gêneros – terão renunciado à sua vocação “mundana”. [...] “Se você perder contacto com essa tensão poderá produzir ótimo trabalho intelectual, mas terá perdido a prática intelectual como política”. (HALL, 2003, p. 199 – 200).

A rigor, essa concepção de prática intelectual como prática política constitui um princípio norteador dos Estudos Culturais, ao negar o que denomina prática acadêmica, por considerá-la desvinculada das questões sociais na atualidade. Assim, pode-se delinear a influência do pensamento de Gramsci nesse campo de estudos. Segundo Graça (2009), tal influência se dá a partir de duas noções fundantes do pensamento gramsciano: hegemonia34 e intelectual orgânico35.

Nesta perspectiva, a visão gramsciana sobre o conceito de hegemonia assinala que a sua construção se dá no próprio contexto da vida cotidiana, mediante as diferentes posições sociais num campo de forças contrárias e relações de poder, acentuando-se a natureza dialética da prática e da experiência cultural. Já a noção gramsciana de intelectual orgânico inspira a perspectiva do projeto político dos estudos culturais, ao destacar o vínculo orgânico do intelectual com projetos e lutas de classe, ou seja, o seu compromisso com a política. Partindo dessa discussão, Hall afirma que os Estudos Culturais sempre buscaram atender à dupla exigência – “estar na vanguarda do trabalho teórico intelectual” e “não subtrair-se da responsabilidade da transmissão dessas ideias, desse conhecimento, através da função

intelectual, aos que não pertencem, profissionalmente, à classe intelectual”. (HALL, 2003, p. 194–195). A partir desta perspectiva, entendo que a discussão apresentada aqui é eminentemente contemporânea, cujos balizamentos remetem a uma concepção vanguardista

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A concepção de hegemonia em Gramsci encontra-se assim enunciada: “a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como‟ domínio‟ e como „direção intelectual e moral‟. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a „liquidar‟ ou submeter inclusive com a força armada, e

dirige os grupos afins e aliados”. (CARVALHO, 2004, p. 39). 35

Esse conceito pode ser entendido como um tipo de intelectual envolvido com as massas, com participação em

partidos ou sindicatos, com o intuito de desenvolver a “conscientização política”. Assim, o intelectual é tanto o

acadêmico, o jornalista, o padre, o cineasta, o ator, o locutor de rádio, o escritor profissional. Em suma, qualquer homem pode constituir-se intelectual orgânico de uma causa ou questão político-social. Vide: GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da Cultura . Trad. Carlos Nelson outinho. 8ª. Ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

que, de fato, vem assumindo posição de destaque na teoria e na prática do tempo presente. Vale destacar que tal visão emerge na atualidade com forte conotação política, tanto no enfrentamento das desigualdades como no reconhecimento de diferenças, seja no campo dos direitos sociais, humanos ou socioassistenciais.