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Negociando afetos e amizades: o desligamento do internato e a busca para tornar-

4 RETRATOS SOCIOLÓGICOS: HISTÓRIAS DE VIDA, DE MORTE E DE

4.3 M F A: sentimento de abandono, perdas e drogas: uma trajetória em movimento

4.3.4 Negociando afetos e amizades: o desligamento do internato e a busca para tornar-

confiável.

As narrativas de M.F.A., ao mesmo tempo em que revelam pessimismo, revolta e descontentamento, também apontam para uma busca para tornar-se aceita e confiável. Tal percepção consubstancia uma mudança na forma de encarar a própria vida. A menina, que antes visualizava o mundo com pessimismo, agora ousa negociar novas rotas e caminhos. Ao observar M.F.A., logo percebi, em sua expressão, algo diferente. Com um sorriso nos lábios, afirmou que estava se preparando para voltar para casa.

Enfim, chegou a minha vez de ir embora. Tô feliz, mas com medo. Não sei o que me espera lá fora. Vou morar com a minha tia, mas ela se mudou. Ela tá morando num bairro melhor (não refere o nome do bairro). Também, vou fazer acompanhamento prá drogas, com o pessoal da Liberdade Assistida. Espero que as coisas mudem. Tô aprendendo a confiar mais. Sei que é difícil, mas preciso acreditar que é possível. Nesse tempo todo eu quis fazer as coisas do meu jeito e não deu certo. Queria sair, chegar qualquer hora, escolher as amizades. Agora, em Liberdade Assistida não vou poder fazer tudo o que quero. E acho que isso é importante prá mim. Vou precisar disso.

Sobre o período de internação, a jovem afirma:

Ficar presa nunca é bom, mas o período que eu passei aqui serviu prá me manter longe das drogas. Se eu tivesse em liberdade, não estaria de “cara limpa” tanto tempo. Espero não mais voltar prá cá. Nessa minha vida eu já passei por tanta coisa, tanta coisa... Acho que não contei nem a metade. Foram tantas coisas, que tem

algumas que eu não quero mais lembrar. Sou agradecida aos profissionais daqui, principalmente alguns educadores que me aconselharam. Neste momento da

narrativa a jovem sorri e revela seu envolvimento afetivo com um dos educadores da Instituição. Acho que a minha vida pode mudar, mesmo sabendo que recaídas

podem acontecer. Eu vou tentar mudar de rumo... Acho que já tá na hora de “colher frutos”, como dizia a mãe. Chega de tanto sofrimento. E, também, já vou fazer 18 anos. Sei que a lei muda depois de ficar maior de idade e se eu fizer algum ato infracional será considerado “um crime”. Sei que poderei ir para o presídio feminino, por isso preciso mudar de vida logo, antes de atingir a maioridade para não conhecer o “Auri”... (refere-se ao Presídio feminino). Não quero dar mais esse desgosto pra minha tia.

Nas narrativas de M.F.A. é perceptível o desejo de “tornar-se”, consubstanciado na decisão e no esforço de negociar novas trajetórias. Sobre isso, a jovem relata com criticidade: “acho que a minha vida pode mudar, mesmo sabendo que recaídas podem acontecer. Eu vou tentar mudar de rumo”.

Ao falar do envolvimento afetivo com um dos educadores do Centro Educacional, M.F.A. sustenta que as coisas foram acontecendo naturalmente, sem imposição ou de caso

pensado102.

Quando vi já estava conversando com ele em quase todos os seus plantões, entende? Eu sei que isso não é um conto de fadas. Mas, vou levando, só levando. Estou perto de ser desligada daqui e a vida em liberdade é diferente. Nem sei o que vai acontecer. Mas, espero que as coisas mudem. Não tenho sonho de casar, de véu e grinalda, como a maioria das mulheres, mas quero ter filhos. Já me magoei tanto nessa vida por causa de homem. Já gostei muito de uma pessoa e sofri muito, me decepcionei tanto. Agora vou vivendo um dia após o outro. Se tiver que dá certo, vai dar. Bom, vou sair daqui, voltar prá casa e tentar ser uma pessoa melhor, pois sou muito rancorosa. Só Deus sabe o que minha tia sofre comigo. Acho que eu não sei viver bem com as pessoas, sou muito teimosa, não sei ouvir as pessoas. Preciso tentar ser melhor.

Diante dos desafios a serem enfrentados após o seu desligamento institucional, M.F.A. busca reinventar-se, delineando um projeto profissional em meio ao conturbado contexto que a cerca. Sobre a visão de futuro e a perspectiva profissional, afirma a jovem:

Meu sonho é ser veterinária, gosto de animais. Acho que ficaria feliz assim. Sei que é muito difícil, pois ainda tenho de terminar o supletivo, fazer outro supletivo do segundo grau, né? Tenho de enfrentar o vestibular. É complicado... (a jovem agora, retoma a expressão de descontentamento e tristeza). A escola é uma piada para nós

“lascadas” (refere-se a condição de pobre), presas, “sem lenço e sem documento no mundo”. Acho que a faculdade é pros ricos, só rico chega até lá. É muito difícil. Os

102

Infelizmente, o desfecho da negociação afetiva entre M.F.A. e o educador do Centro Educacional Aldaci Barbosa não tomou o rumo de uma negociação “positivada”. Após alguns meses do retorno de M.F.A. para casa, fui informada que esta jovem havia voltado a usar drogas e a cometer novos assaltos. Sobre o instrutor educacional M.G., informaram-me que ele havia sido transferido para outra Unidade, também vinculada à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará.

pobres precisa trabalhar, arrumar um “trampo” qualquer, precisa ajudar a mãe. Na

nossa vida, estudar não serve muito se não for até o fim. Hoje em dia, se você não terminar a escola, se deixar ela pelo meio não serve de nada, entende? Eu só fiz até a 6a. série, até gostava de estudar, mas você entra nesse mundo de droga e prostituição e acaba sua vida. Eu perdi tudo. Primeiro minha mãe faleceu de câncer, aí eu me distanciei dos meus irmãos, dos meus amigos, perdi emprego, tudo. Bom, eu quero pelo menos trabalhar, se conseguir isso, já tá de bom tamanho. Se for numa clínica veterinária, vou ficar feliz (risos). Quero que a minha tia se orgulhe de mim, entende?

Cabe destacar que, após a última entrevista, perdi o contato com M.F.A. Nossos encontros limitaram-se a contatos e entrevistas realizadas durante o período de internação. Conforme informei anteriormente, o retrato sociológico desta adolescente teve como material empírico apenas duas entrevistas e alguns contatos telefônicos. Tentei marcar vários encontros por telefone, entretanto, a jovem não demonstrou interesse em continuar participando da pesquisa, afirmando que não gostaria mais de relembrar o que viveu neste período de reclusão. Foi por meio dos funcionários do Centro Educacional que fiquei sabendo da situação da adolescente. Informaram-me que, após algumas semanas de seu desligamento, a jovem, já em maioridade penal, teria voltado a usar drogas e a cometer novos furtos.

Ao refletir sobre as negociações vivenciadas por M.F.A. em sua trajetória, reafirmo a ideia de que não há um caminho imutável, fixo e determinado a ser trilhado. Tais percursos, não seguem um traçado unidirecional. As trajetórias circunscrevem distintas redefinições de rotas e escolhas. Em verdade, são trajetórias inconclusas, metamorfoseando-se

em meio às surpresas do “tornar-se”, num constante movimento de redefinição identitária.

4.4 M.J.V.A.: abuso sexual, analfabetismo e gravidez no internato – negociações com as