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Identidade cultural e representação: o processo de significação em Stuart

1 REDEFINIÇÕES IDENTITÁRIAS EM QUESTÃO: DELINEAMENTOS DA

1.5. Identidade cultural e representação: o processo de significação em Stuart

É justamente a análise sobre a forma como se constrói o significado que mobiliza o pensamento de Stuart Hall (1997b). Nesta lógica, o autor configura a representação como um dos eixos centrais para o entendimento da categoria identidade e, especificamente, para o entendimento das “negociações com as nossas rotas”. Daí a importância de tecer reflexões sobre a questão das identidades, no âmbito das ciências sociais e, particularmente, dentro do campo dos Estudos Culturais.

Ao longo da história, o conceito de representação passou por muitas redefinições nas diferentes áreas de conhecimento. Segundo Hall, em obra organizada por SILVA (2000a), na história da filosofia ocidental, a ideia de representação seguiu uma busca para apreender o real de forma mais fidedigna possível, ou seja:

Na história da filosofia ocidental, a ideia de representação está ligada à busca de formas apropriadas de tornar o “real” presente – de aprendê-lo o mais fielmente possível por meio de sistemas de significação. Nessa história, a representação tem-se apresentado em duas dimensões - a representação externa, por meio de sistemas de signos como a pintura, por exemplo, ou a própria linguagem; e a representação interna ou mental - a representação do „real‟ na consciência. (SILVA, 2000a p. 90).

A rigor, a extensão explicativa do conceito de representação, mais especificamente de “representação coletiva”, pensado por Durkheim, no início do século, poderia parecer suficiente no contexto da sociedade ocidental da época, dada a ainda relativa integridade das religiões e de outros “sistemas unificadores”. No entanto, nas sociedades contemporâneas, novos fenômenos representacionais, de origem e âmbitos bastante diversos, impõem-se para análise sob uma perspectiva de mudanças. Para Moscovici (1976), as representações que designam interesse na atualidade diferem das sociedades primitivas, ou seja:

[...] as representações em que estou interessado não são as de sociedades primitivas, nem as reminiscências, no subsolo de nossa cultura, de épocas remotas. São aquelas da nossa sociedade presente, do nosso solo político, científico e humano, que nem sempre tiveram tempo suficiente para permitir a sedimentação que as tornasse tradições imutáveis. E sua importância continua a crescer, em proporção direta à heterogeneidade e flutuação dos sistemas unificadores – ciências oficiais, religiões, ideologias – e ás mudanças pelas quais eles devem passar a fim de penetrar na vida cotidiana e se tornar parte da realidade comum (MOSCOVICI, 1984, p. 18-19).

Compreensivelmente, o reconhecimento da existência de uma diferenciada ordem de fenômenos exigiria também outro tipo de conceito para englobá-los. Daí o surgimento do termo “representações sociais”, implicando em um decisivo afastamento da perspectiva “sociologista” extremada e originária e da construção teórico-conceitual de um espaço psicossociológico específico. Na perspectiva da psicologia social, o conceito de representações coletivas continha, no entender de Moscovici (1984, 1989), vários aspectos que o impediam de dar conta dos novos fenômenos detectados. Dentre esses fenômenos, é válido destacar:

1. No conceito durkheimiano, considerando o objetivo de estabelecer uma psicologia do conhecimento, as representações sociais deveriam ser reduzidas a uma modalidade específica de conhecimento que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos, no quadro da vida cotidiana;

2. A concepção de Durkheim era bastante estática, o que possivelmente correspondia à estabilidade dos fenômenos para cuja explicação havia sido proposta, mas não à mobilidade e dinamismo das representações contemporâneas emergentes;

3. As representações coletivas eram vistas, na sociologia durkheimiana, como dados, como entidades explicativas absolutas, imutáveis, irredutíveis por qualquer análise posterior e não como fenômenos que devessem ser eles próprios explicados. À Psicologia social, pelo contrário, na lógica de Moscovici, caberia penetrar as representações para descobrir s sua estrutura e os seus mecanismos internos.

O que essas diferenças mostram pode ser entendido da seguinte forma: se Moscovici foi buscar na sociologia durkheimiana um primeiro abrigo conceitual para suas críticas ao excessivo individualismo da psicologia social americana, isso não era suficiente ou adequado para os seus propósitos de renovação conceitual. A rigor, o desafio maior consistia em situar efetivamente a psicologia social na encruzilhada entre a psicologia e as ciências sociais, ou seja, em ocupar de fato esse território fronteiriço onde se desenvolvem fenômenos, cuja dupla natureza – psicológica e social – tem sido aceita e admitida.

Com o pós-estruturalismo, desenvolveu-se uma vertente de pensamento contrária à noção clássica de representação. O ponto de ruptura com a ideia clássica situa-se na concepção da linguagem e de todo o sistema de significação como uma estrutura caracterizada pela instabilidade e pela indeterminação. Dessa forma, o conceito de representação se apropria dessas mesmas características atribuídas à linguagem (SILVA, 2000a, p. 90).

Conceituando a representação social a partir de estudos contemporâneos, Hall (1997b) caracteriza o conceito de representação como uma produção de significado, ou seja, a representação significaria uma elaboração estabelecida em nossa mente e explicitada através da linguagem, muito adiante da existência de fato ou da observação empírica. Daí decorre dois tipos de processos relacionados ao conceito de representação:

O primeiro, ligado aos sistemas de correlação e a um conjunto de representações mentais que possuímos;

O segundo, relacionado à linguagem que possibilita a existência de um mapa cultural partilhado, através do qual possamos representar ou intercambiar significados ou conceitos.

Há, portanto, conforme entende Hall (1997b), um processo mental e de tradução para o sistema em que fomos ensinados a nomear e decodificar o mundo, as pessoas e os eventos – é a construção de signos. Estes signos representam os conceitos e as relações

conceituais entre estes que levamos em nossas mentes e que juntos compõem os sistemas de significação de nossa cultura. Assim, o significado não é inerente às coisas do mundo. Ele é construído como produto e resultado da nossa prática de significações.

Hall (1997b), em sua obra The Work of representacion, refere-se a três teorias que abordam a discussão sobre a representação: a reflexiva, a intencional e a construtivista. Cada

uma delas tem abordagens diferenciadas para a interpretação dos significados nas mensagens: na reflexiva, a linguagem funciona como espelho que reflete o verdadeiro significado que já existe no mundo; na intencional, o falante propõe o significado através da linguagem; e na abordagem construtivista, a linguagem é tomada como produto social, cujos significados são construídos através dos sistemas de representação. É nessa terceira visão que o autor encontra melhor ajuste à sua ideia de representação.

Partindo de uma teoria construtivista sobre representação, Hall ressignifica, também, a forma de percepção do significado, rompendo com a lógica de um significado verdadeiro, único e imutável. A partir daí, o autor ressalta a característica de instabilidade do significado, que será comparado por ele a um jogo ou a um deslizamento. Nesse jogo, novas interpretações podem submeter o significado constantemente, ligando-o a novas leituras de conceitos ou valores.

Nessa discussão sobre representação, vale destacar que as relações de poder e o aprofundamento da noção de sujeito, baseadas fundamentalmente em Michel Foucault, nortearam a estruturação de algumas premissas básicas no pensamento de Stuart Hall. A abordagem discursiva da representação, baseada em Foucault, será especialmente interessante para Hall em três aspectos: ao discutir o conceito de discurso, a questão do poder/conhecimento e a questão do sujeito. Entretanto, mesmo referenciando-se em Foucault, a posição de Stuart Hall é de crítica, ao entender que a tendência ao relativismo pela simplificação dos aspectos relacionados à influência de fatores materiais, econômicos e estruturais no funcionamento do poder e do conhecimento é algo preocupante.

Nesta mesma linha de raciocínio, Woodward lança contribuições interessantes, no sentido de abordar a relação entre identidade e representação. Tal perspectiva toma de empréstimo, do pensamento de Hall (1997b), a ideia de representação a partir da relação entre cultura e significado. Nas próprias palavras de Woodward (2000, p. 17), vale ressaltar:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas

simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A representação, compreendida como um processo cultural estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu

quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a

partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.

Nesta compreensão, Silva (2000a) situa o estreito elo entre identidade/diferença/representação. O autor enfatiza que é através da representação que a identidade e a diferença passam a ter inteligibilidade. Em consonância com as elaborações de teóricos ligados ao campo dos Estudos Culturais, ele entende que a representação se constitui em um “sistema linguístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder” (SILVA, 2000a, p. 91).

Nesse sentido, afirma:

Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. É por isso que a representação ocupa um lugar tão central na teorização contemporânea sobre identidade e nos movimentos sociais ligados à identidade. Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação. No centro da crítica da identidade e da diferença está uma crítica de suas formas de representação. (p. 91).

Desse modo, a identidade se configura como algo inerente ao sistema de representação que lhe dá sustentáculo, não sendo, portanto, tão transparente como a maioria de nós pensa. Daí a ideia de que, em vez de tomarmos a identidade por um fato que, uma vez consumado, passa, posteriormente, a ser representado pelas novas práticas culturais, “devemos pensá-la, talvez, como uma „produção‟ que nunca se completa, que está sempre em processo e é sempre constituída interna e não externa à representação”. (HALL 1996, p. 68). O desafio é reconhecer que, em nossas trajetórias, assim como existem muitos pontos de similaridade, há também pontos críticos de diferença profunda, os quais constituem “o que nós realmente somos”; ou melhor, “o que nos tornamos”.

Assim, não podemos interpretar, com exatidão, “uma experiência”, ou “a identidade cultural”, sem admitir a existência do seu outro lado, ou seja, suas rupturas e descontinuidades, que constituem precisamente a “singularidade” de cada povo, de cada cultura, de cada trajetória. Neste sentido, a identidade cultural tanto é uma questão de “ser” quanto de “se tornar”, ou de “devir”. Nas palavras de Hall (1996, p. 69), a identidade,

[...] pertence ao passado, mas também ao futuro. Não á algo que já exista, transcendendo a lugar, tempo, cultura e história. As identidades culturais provêm de alguma parte, tem histórias. Mas, como tudo que é histórico, sofrem transformação

constante. Longe de fixar eternamente em algum passado essencializado, estão sujeitas ao contínuo “jogo” da história, da cultura e do poder.

Nesta discussão, Stuart Hall (1996) resgata, também, as principais noções que fundamentam a sua concepção sobre a identidade cultural, chamando atenção para seu caráter fluído e para os “pontos instáveis de identificação”, construídas sob um terreno movediço, com e através de diferenças e negociações culturais, num processo de rupturas e descontinuidades com suas origens, dentro do discurso e sujeitas a um “jogo” histórico- cultural.

Na tentativa de explicar melhor a construção das identidades culturais, Hall (1996) afirma que, é necessário compreender corretamente o caráter traumático da “experiência colonial”. Segundo ele, as maneiras pelas quais os negros e as experiências oriundas desta etnia foram posicionados e sujeitados nos regimes dominantes de representação deixam claro que foram construções de um exercício crítico do poder cultural e da normalização da época. De fato, na história do mundo moderno, há poucas experiências mais traumáticas do que as separações forçadas da África. Como bem salienta Hall, “os escravos eram de diferentes países, comunidades tribais, aldeias, tinham diferentes línguas e povos” (1996, p. 70). Nesta perspectiva, fica claro que, todo regime de representação pode ser visto como regime de poder estabelecido e formado, como pensou Foucault (1979), pelo binômio “conhecer/poder”. Mas, salienta Hall (1996, p.70), esse tipo de conhecimento não é externo, é interno. Ou seja:

Uma coisa é posicionar um sujeito ou um conjunto de pessoas com o Outro de um discurso dominante. Coisa muito diferente é sujeitá-los a esse conhecimento, não só como uma questão de dominação e vontade imposta, mas pela força da compulsão íntima e a (con) formação subjetiva à norma. Esta é a lição – a sombria majestade – da compreensão da experiência colonizadora por FANON, em Black skin, White

Masks42

. (Pele negra, máscaras brancas).

Nesta mesma linha de raciocínio, Hall (1996) salienta que entender a expropriação íntima da identidade cultural deforma e leva à invalidez. A falta de resistência e os silêncios seriam produtores, no olhar de Fanon (1963), de “indivíduos sem âncora, sem horizonte, sem cor, raízes, ou Estado – uma raça de anjos” 43

. Com essa afirmação, retomo o que me interessa ao resgatar a perspectiva conceitual de Stuart Hall, ou seja, munir-me de um referencial teórico que ajude a pensar as redefinições identitárias de meninas que cometeram homicídios

42FANON, Frantz. “On National Culture”. in The Wretched of the Earth, Londres, 1963, p. 170. 43 p. 176.

e cumpriram sentença de privação de liberdade. Adolescentes que, em suas negociações com rotas e trajetos, envolveram-se com a delinquência, chegando ao ato de matar, entendido aqui como uma troca identitária marcante em seus percursos.

Portanto, nas trajetórias das protagonistas desse estudo, as renegociações com trajetos e rotas percorridas não significam que o passado foi solapado de suas histórias. Na verdade, ele é reconstruído, sempre por intermédio de lembranças e pelas marcas de uma vida em renegociação. Segundo Hall (1996, p. 70), “Seu passado continua a lhe falar”. De outro

modo, ao deixaram suas casas, seu lugar de pertença, seus municípios, levam consigo as marcas de uma vida entrecortada pela diferença e por uma profunda sensação de deslocamento. Tal sensação parece não cessar, mesmo quando ocorre o regresso para casa,

após o cumprimento da sentença. Em sentido diaspórico, a privação de liberdade mudaria “a

vida das jovens que saem do internato, das que já estão e das que chegam”, construindo, desse modo, “novos tipos de sujeitos”, os quais são modelados à luz do deslocamento, das trocas e negociações identitárias, vivenciadas ao longo das trajetórias, percursos e rotas trilhadas.

2 TEORIZAÇÕES SOBRE A CATEGORIA JUVENTUDE NA ATUALIDADE: