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4 RETRATOS SOCIOLÓGICOS: HISTÓRIAS DE VIDA, DE MORTE E DE

4.6.1 A relação com a mãe: negociando afetos maternos, amizades e parcerias

Ao falar sobre a relação com a mãe, a jovem parece omitir alguns fatos, os quais vão emergindo aos poucos no decorrer da entrevista. O assunto “mãe” parece um tabu para esta jovem. Ao falar sobre a mãe, a menina assume uma posição de defesa, com pausas longas e olhares que parecem querer fugir ao assunto.

Só durante o nosso seguinte encontro a adolescente resolve abrir-se. Com lágrimas nos olhos, a menina fala do ódio que sentia pela mãe, antes do seu envolvimento no homicídio, afirmando o carinho que passou a ter por ela, após o acontecimento.

Antes eu não gostava dela, pois achava que ela não sentia nada por mim também. Eu procurava não ter afeto por ela. Eu já disse tanta coisa ruim com ela que nem sei mais. Um dia, ela foi me bater e a gente brigou no meio da rua de tapa. Cheguei a bater nela. Ela já é mais velha né? Isso tudo é porque eu não sei fazer nada de comida, coisas de cozinha, que na casa da minha avó eu nunca fiz. Nunca precisei... Aí na casa da minha mãe ela me botava prá fazer, entende? A minha raiva era essa. Besteira mesmo, coisa de criança né? Ela dizia: menina vai lavar os pratos! E eu

ficava “p”. Antes eu não falava com ela, nem gostava de chamar ela de minha mãe,

eu não suportava nem ver ela, eu tinha ódio. Eu só ia prá lá, por que final de semana lá em casa eu não podia sair, arranjar amigos e lá no Pirambu, onde a minha mãe mora eu saía, entende? A minha mãe mora na Santa Elisa (uma rua perigosa do Pirambu), ela é ex-mulher de um dos formigões104, teve dois filhos com esse formigão. Já teve tanto marido ela, mas, agora meu atual padrasto eu amo ele. Ele é diferente. Meu padrasto trabalha numa empresa, ele não é metido em nada disso. A minha mãe usa maconha, vai lá na praia fumar às vezes. Quando ela tá esculhambando todo mundo que chega perto dela, que ela tá estressada, aí ela vai prá praia fumar maconha. Detesto isso nela. Mas, agora a nossa relação mudou. Eu nunca pensei que ela fosse fazer por mim o que ela fez. Olha, pelo que nós passamos juntas, de se bater no meio da rua. No dia do homicídio, eu fiquei escondida na casa da ex-mulher do meu padrasto, aí subi lá, subi pelo muro e fiquei aí a minha amiga disse: “Amanda, eu vou chamar tua mãe”, aí eu disse: “mulher, não chama ela não, não chama ela não”. Aí, ela disse: “Mas, A..., o que eu vou fazer?” Aí eu disse: “vai lá na minha avó e chama o meu tio, não chama a minha mãe não”. Aí quando eu vi lá estava a minha mãe dizendo: “Venha minha filha, vamo prá casa, chega me deu uma coisa no coração”. Ali eu vi que ela era minha mãe de verdade. Aí ela disse: “olha, por mais que você tenha feito isso ou aquilo comigo e tenha errado, eu sempre vou ser a sua mãe e gosto de você viu?” Nunca pensei que ela fosse fazer isso naquele momento (a jovem baixa os olhos e chora por alguns segundos).

Nesse momento, achei necessário fazer uma pausa na entrevista, recomeçando, em seguida, com um novo assunto. A mudança de foco parece intrigar a adolescente, que me

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Refere-se a uma família cuja fama no bairro, que é conhecido como Pirambu, está referendada pela valentia, coragem e envolvimento em crimes de morte. São conhecidos como organizadores da chamada gangue dos formigões. Vide: DIÓGENES, Glória. Cartografias da Cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo: Annablume, Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.

olha, levanta da cadeira, caminha em minha direção e, tocando em meu ombro, afirma: “tia, sei que quer saber mais sobre minha família e minha relação com a minha mãe, né? Posso falar viu? Tenho problema com isso não”.

Assim, A.L.S.V. prossegue falando do sentimento em relação à mãe, sua família e seus amigos.

É muito difícil tudo isso, prá quem nunca gostou dessa coisa. Lembro que antes eu dizia: negócio de reggae, eu nunca vou andar nisso. Eu participava do grupo de jovens da Igreja Assembléia de Deus. Meu avô quando era vivo não me deixava ir nem na bodega ao lado. Por isso eles me criaram, pois diziam que a minha mãe não tinha responsabilidade prá ficar comigo. Mas, depois que eu fui crescendo, eles não conseguiam mais me prender em casa. Aí começou o inferno. Foi quando comecei a namorar com um menino lá do Pirambu, aí ele só andava no reggae. Aí um dia eu disse: eu vou pra esse reggae prá ver o que ele tanto vê nesse reggae. Aí eu fui pro reggae. Aí tia, maldito reggae. Eu terminei com ele, ele já não ia mais e eu continuei indo pro reggae. Passei a usar maconha e lança perfume, mas não me considero viciada não. A minha avó ainda tá muito chateada comigo e as minhas tias nunca entenderam por que eu me meti nisso. Olha sinceramente... Eu, também, não entendo. Mas, possuo um irmão que tá preso e é viciado em mesclado (mistura de maconha e crack). Já rodou em vários internatos e agora tá no presídio. Meu irmão roubava, mas eu nunca me envolvi com roubo não. A minha avó sempre fala que depois que meu irmão foi preso e mataram meu amigo Israel, que era como um irmão prá mim. Aí eu comecei a ir pro reggae. Eu vi como foi que ele morreu. No dia uma ex-namorada do meu irmão chegou chamando ele prá roubar e eu ainda disse: Ô Israel não vai não, por favor. Aí ele pegou e foi e eu só escutei um tiro, aí um menino vem de bicicleta e diz: A..., foi no Israel, aí eu disse: “vixe, o Israel morreu!” e aí eu não tive reação de nada. Ele havia passado três noites sem dormir, só usando droga. Se ele tivesse ido com meu irmão não tinha acontecido isso. Eu passava os finais de semana na casa da minha mãe e a minha mãe tinha dito assim: “Israel vamos tirar essa bala aí da tua coxa no hospital”. O Careca (refere-se ao seu irmão) vai se consultar e aí tu tira a bala da tua coxa aqui no Frotinha do Antônio Bezerra. E ele não quis. Aí meu irmão disse: “Ó cara cuidado aí viu? Eu vou, mas volto já, vê se fica ligado, se intera aí no movimento”. E ele disse: “não, cara, tudo bem, eu vou ficar aqui com a A...” Aí minha mãe disse: “A... toma cuidado nele que ele tá muito doido”. E eu olhei assim prá ele e disse prá minha mãe: “tudo bem”. Quando lembro. O bichinho foi morto porque saiu de perto de mim e foi roubar. Eu devia não ter deixado.

É perceptível, na trajetória desta adolescente, marcas e sinais de uma vida entrecortada por escolhas e negociações com a própria família. Em seu percurso de redefinição identitária, ao mesmo tempo em que sua família paterna busca proporcionar-lhe uma base educacional militar, protegendo-a ou tentando afastá-la do contato com a mãe, usuária de drogas, do irmão presidiário e dos amigos envolvidos em gangues do bairro Pirambu, a adolescente retoma, aos poucos, negociações e laços afetivos com seu grupo familiar materno. É este grupo que esconde a adolescente, logo após a prática do homicídio.

A família paterna, segundo A.L.S.V., reage ao acontecimento de forma envergonhada, fazendo a opção de procurar a Justiça, logo após a fuga da menina, tentando

protegê-la de um possível acerto de contas. Tal aspecto pode ser evidenciado nos relatos e narrativas da própria adolescente:

Lembro que subi pelo muro e fiquei ali algum tempo, aí a minha amiga disse: “A..., eu vou chamar tua mãe”, aí eu disse: “mulher, não chama ela não, não chama ela não. Ela quer o meu bem não...”. Mesmo assim ela chamou a minha mãe. Eu lembro que fugi, eu subi em cima do pé de goiaba lá da casa da minha mãe, aí eu

ouvi as “cumade” passando e dizendo que a vítima tinha partido dessa prá uma

melhor, aí eu fugi, mas a minha avó preferiu me entregar, porque daqui eu não podia sair prá outro lugar, se eu fosse viajar ia ser a maior vergonha, o Juizado ia me caçar, ia ser a maior vergonha prá minha avó e prás minhas tias, eu sendo presa no aeroporto. AFFFF! Aí a minha avó achou melhor eu me entregar mesmo. Ainda pensaram em me mandar prá Portugal, mas a minha avó não concordou. Disse que eu tinha que pagar o que eu fiz. Mas, sabe..., (nesse momento a jovem baixa a cabeça pensativa), eu não tenho raiva da minha avó não. Jamais terei, não sei sentir isso por ela. Sinto por ela uma coisa sincera, que mexe aqui dentro. Ela é tão correta

nas coisas dela que se ela disse que “pau é pedra”, eu acredito. Ela jamais faria algo

que pudesse me fazer mal, pois sei o quanto ela me ama. Lembro que quando a minha mãe, a minha avó e a minha tia foram lá na delegacia me entregar, a minha avó tava quase desmaiando e falou assim: A.L.S.V., a vovó vai fazer tudo para que você siga o caminho do bem, jamais vai te abandonar, nem que tenha que te mandar prá bem longe daqui”. Eu amo minha vó demais.