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1 REDEFINIÇÕES IDENTITÁRIAS EM QUESTÃO: DELINEAMENTOS DA

1.2. Cultura e política: conceitos relacionais no “jogo das identidades”

No campo dos Estudos Culturais e nas teorias da etnicidade, a cultura se constitui um dos conceitos-chave de análise por configurar-se princípio fundante desde o seu o momento originário.

Partindo da relevância atribuída a esse conceito, compreendo que a ideia de uma polaridade entre política e cultura é no mínimo ambígua. Sobre esse aspecto, tomo de empréstimo as palavras de Ortiz, (2008, p. 122): “não quero, porém, cair na armadilha das polarizações indevidas e sustentar uma posição oposta, negando qualquer tipo de relação entre essas duas dimensões. Meu interesse é outro, sublinhar o hiato existente entre elas”.

Segundo Ortiz (2008), é perceptível certo mal-estar presente nos estudos que abordam a relação entre cultura e política. Na percepção do autor, em vários processos investigativos são evidenciadas queixas de que os chamados bens culturais não são priorizados pelo pensamento econômico, e que nas políticas governamentais a dimensão da cultura é secundarizada. Desta compreensão, alguns questionamentos podem ser elaborados: qual seria o lugar da cultura na contemporaneidade? Que articulação possuiria com o campo

da política e com os chamados “novos movimentos sociais”?

Para o delineamento desse debate, é interessante resgatar as diferentes interpretações surgidas em torno do tema. No pensamento de Renato Ortiz (2008, p. 122), os

argumentos sobre a secundarização da cultura possuem certa facticidade, tendo em vista que,

[...] os estudos sobre a importância econômica das “indústrias criativas” são recentes. Nas plataformas dos partidos políticos as propostas culturais são secundárias; no debate sobre os destinos dos países emergentes predomina o elemento econômico, sendo o cultural apenas episódico; o surgimento do planejamento cultural é tardio em relação à administração pública ou empresarial. Creio, porém, que existem, também, razões mais profundas para isso; elas se inscrevem, justamente, neste hiato ao qual eu me referia. Por isso, o debate cultural é sempre escorregadio, difícil, realiza-se num terreno movediço no qual um conjunto de suposições permanece latente ao longo da discussão.

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Woodward contextualiza a discussão ao resgatar a perspectiva histórica acerca do surgimento das lutas e movimentos em torno da

identidade, situadas no âmbito dos “novos movimentos sociais”. Vale ressaltar que essas lutas

emergem em meados dos anos 60 ou, mais precisamente, no pós-68, com a rebeldia estudantil, o ativismo pacifista e antibélico dos movimentos de juventudes (punks, hippies etc.) e com as lutas pela igualdade de direitos civis e sexuais36. Esses movimentos,

classificados de “novos movimentos sociais”, também podem ser denominados, segundo

Santos (2006), de “movimentos emergentes”, tendo em vista o surgimento de “novos atores e

novos problemas sociais” a serem enfrentados, como, por exemplo: gênero,

homossexualidade, meio ambiente, multiculturalismo, negritude, juventude, subjetividade. Nesta lógica, a identidade assume um importante fator de mobilização política, constituindo- se o articulador de sentido na relação entre a cultura e a política. Nesse sentido, Woodward (2000, p. 38) afirma que,

As identidades são produzidas em momentos particulares no tempo. Na discussão sobre mudanças globais, identidades nacionais e étnicas ressurgentes e renegociadas e sobre os desafios dos “novos movimentos sociais” e das novas definições das identidades pessoais e sexuais, as identidades são contingentes, emergindo em

momentos históricos e particulares. Alguns elementos dos “novos movimentos sociais” questionam algumas das tendências a fixação das identidades da “raça”, da

classe, do gênero e da sexualidade, subvertendo certezas biológicas, enquanto outros afirmam a primazia de certas características consideradas essenciais.

Seguindo essa mesma linha de pensamento, Barbalho (2001) chama atenção para

um fato interessante. O autor assinala que, paradoxalmente, é no chamado “primeiro mundo”, em meados dos anos 60, que surge e se amplia um “movimento das chamadas minorias culturais e étnicas”:

Mulheres, jovens, negros, imigrantes, homossexuais, ecologistas, entre outros agrupamentos, irrompem em cena. E questionam a validade e a permanência das

identidades universalizantes e das “grandes narrativas”, como diria Lyotard, situadas

36 Caracteriza-se por ser um momento de grandes transformações culturais. Esta, também, foi a época do desejo de “revolução cultural”, da recusa à sociedade do consumo, de busca de renovação social, de desconfiança nas práticas políticas tradicionais, da afirmação da “não-violência” e do “flower power” (Movimento hippie conhecido como “poder das flores”). Tal movimento emerge vinculado à classe média, que questionava a moral

e os padrões burgueses. Este questionamento ocorria, na prática, através do uso de drogas como uma via de acesso para a transformação interior e a busca da liberação sexual bem como, a aceitação da homossexualidade e do lesbianidade e a abertura de novos horizontes através do zen-budismo e da meditação. Vide: COSTA. Marcia Regina da. Os carecas do subúrbio – caminhos de um nomadismo moderno, Petrópolis: Vozes, 1993.

tanto à esquerda, quanto à direita do pensamento tradicional. (BARBALHO, 2001 apud GRAÇA, 2009, p. 03).

Para contextualizar esse período, Lapeyronnie (1991) destaca que, em fins da década de 60, a crise econômica obrigou a Inglaterra, a Grã-Bretanha e alguns países da Europa a iniciar um processo de transformação e modernização de sua indústria, que afetou particularmente as indústrias tradicionais e os empregos que proporcionavam. Nesse processo, os setores mais frágeis da classe operária acabaram duramente atingidos. O crescimento econômico, que posteriormente se desenvolveu, acelerou a distância entre os setores

“marginalizados” e aqueles que se modernizaram, cujos trabalhadores acabaram se

aproximando da classe média. A instalação, cada vez mais crescente, de minorias étnicas e imigrantes de um modo geral, deu-se paralelamente a essas transformações e à decomposição do mundo industrial e operário, o que acabou gerando a rejeição dessas minorias como uma

“ameaça externa”.

Fazendo uma análise sobre o contexto político do primeiro mundo, Lapeyronnie afirma que a extrema direita, sob a sigla do National Front, começou a desenvolver-se justamente aí, fazendo propaganda sobre os imigrantes. Significativamente, em abril de 1968, deu-se o famoso discurso de Enoch Powell, em Birmingham (Inglaterra), no qual ele apelava

para a defesa dos cidadãos britânicos, de sua “cultura”, de sua “raça”, de sua “nação”, contra

os imigrantes. Para Lapeyronnie, em fins da década de 60, ocorreu a superposição de três fatores importantes, que permitiu à extrema-direita unir três temas em um discurso único. Em

primeiro lugar, a “visibilidade” crescente da população imigrada; em segundo, as profundas

transformações econômicas que se desdobraram na crise econômica dos anos 70 e que acabaram abrindo espaço para o governo conservador de Margareth Thatcher; e, em terceiro, uma crise de identidade nacional.

Nesse resgate histórico sobre as origens da discussão em torno da identidade, fica evidente a perspectiva de fissura na visão tradicional acerca do conceito. No tempo presente,

os chamados “novos movimentos sociais”, ao mesmo tempo em que reivindicam o “direito à diferença”, também refutam a ideia de fixação das identidades de raça, gênero, classe,

sexualidade, questionando, assim, a validade das identidades universalizantes. Parece ser o

deflagrar ambíguo de um processo de “desconstrução” da visão essencialista de identidade.

Com base nesta ideia, vou tecendo o fio analítico da investigação, seguindo pistas que abram vias de análise para o meu objeto investigativo, circunscrito nas trocas e negociações identitárias de meninas marcadas pela “prática infracional”. Partindo desse

contexto, uma questão me chama atenção, considerada fundamental na construção do meu objeto, qual seja: levando-se em consideração um contexto no qual emergem novos sujeitos individuais e coletivos, o que estaria em jogo na questão das identidades contemporâneas?

Na verdade, como bem afirma Hall (1999), a própria noção de sujeito está mudando, modelado pela natureza polissêmica e fluída da contemporaneidade. Nesse contexto, é possível visualizar consequências políticas relacionadas à fragmentação ou

“pluralização” das identidades como conceito em construção, ou melhor, em (des) construção,

mediante a crítica e a ruptura com a ideia de uma identidade integral, originária e unificada. Neste “jogo das identidades”, é necessário estar atento a alguns elementos presentes nos processos de construção das identidades, atentando para as “metamorfoses”, contradições e fragmentações humanas. De fato, as identidades sofrem “metamorfoses”, se

cruzam ou se “deslocam” mutuamente. Suas contradições são evidentes, apresentando-se de

diversas formas:

1. Podem estar tanto fora, na sociedade, atravessando grupos políticos

estabelecidos, quanto “dentro” do internato, com seus grupos, que se dividem na forma de pensar o ato infracional. E, também, “dentro” da cabeça de cada sujeito social.

2. Nenhuma identidade singular – por exemplo, de classe social – pode alinhar

todas as diferentes identidades com uma “identidade mestra”, única, abrangente, na qual se

pudesse, de forma segura, basear uma política. No contexto contemporâneo, as pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe. A classe, como diz Hall, (1999, p. 20), “não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das

pessoas possam ser reconciliados e/ou representados”. Assim, de forma crescente, as

paisagens políticas do mundo moderno estão:

[...] fraturadas por identificações e deslocamentos – advindos, especialmente, da

erosão da chamada „identidade mestra‟ da classe e da emergência de novas

identidades, pertencentes à nova base política definida pelos novos movimentos sociais; o feminismo, as lutas negras, os movimentos de libertação nacional, os movimentos antinucleares e ecológicos. (MERCER, 1990 apud HALL, 1999, p. 21).

Vale dizer que, uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é representado, a identificação não é automática, mas pode ser assimilada, perdida ou redefinida, tornando-se, assim, politizada. Tal processo é, às vezes, descrito como constituinte de uma mudança de uma política de identidade (de classe) para uma política de diferença.

1.3 Identidade e cultura: conceitos imbricados no campo dos estudos culturais

Identidade e cultura estão de tal forma imbricadas que é impossível separá-las. Essas reflexões vêm mais claramente à tona quando se enfatiza um processo diaspórico. Sair de casa, mudar de lugar, morar num internato e cumprir uma sentença. Mesmo num contexto de proximidade com a terra natal, as jovens internas no Aldaci Barbosa vivenciam processos de mudanças, de aprendizado e de contato com novas regras e negociações identitárias.

Sobre esse aspecto, pode-se refletir que a situação de deslocamento e mudança não pode ser entendida apenas como processo histórico linear, ou dentro de um processo cíclico, acabado. A diáspora, no sentido de deslocamento, muda os que saem de sua terra, os que já estão e os que ficaram. Thomas Bonnici (2005), em sua Obra Conceitos-chave da teoria pós-colonial, expõe a origem epistemológica do termo. Do grego diasporein, a palavra significa semear, a dispersão das pessoas. As pessoas diaspóricas são aquelas que vivem longe de sua terra natal, real ou imaginária, mas a sua origem se mostra ainda enraizada pela língua falada, religião adotada, ou culturas produzidas. Nesse sentido, a cultura se constitui uma produção. Ou seja,

[...] não apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma

“arqueologia”. A cultura é uma produção. [...] E, sobretudo, o quê esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós

mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem por nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2003, p. 44).

Assim, a cultura, dentro do campo dos Estudos Culturais, se caracteriza como um dos conceitos-chave de análise, configurando-se como um princípio de fundamentação teórica desde o seu momento originário. Da mesma forma, o conceito de identidade se renova como categoria de análise dentro do contexto de diferentes vertentes teóricas no âmbito das ciências sociais e humanas. Neste sentido, a imbricação entre o conceito de cultura e identidade presume a síntese de um novo conceito, que se estabelece pela formação categorial de uma

“identidade cultural”.

Baseando-se no conceito de cultura como uma produção, elaboro aqui algumas provocações que estão a emergir do meu processo de análise. Partindo da discussão sobre as trocas identitárias vivenciadas por meninas em privação de liberdade, cabe aqui destacar uma