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Contributos da Sociologia para a análise dos processos de profissionalização

1.4. Dimensões de análise dos processos de profissionalização

1.4.4. As Identidades Profissionais

Colocados entre os detentores dos meios de produção – os capitalistas - e os detentores da força de trabalho – os operários11 - com os quais partilham cada vez mais a condição de assalariados, os profissionais diferenciam-se destes pela detenção de um conhecimento esotérico económica e socialmente valorizado, por vezes considerado o factor de produção estruturante da nova economia (Lundvall, 2001). Gozando de uma condição social privilegiada que lhes é garantida pelo capital cultural e simbólico de que são detentores, o qual, nas palavras de Marques (s.d.), é colocado ao serviço do capital com o qual estão política e ideologicamente implicados, os grupos profissionais não deixam de estar confrontados com os problemas típicos da condição de assalariados nas sociedades avançadas, como seja a precariedade laboral que, sendo também uma vivência subjectiva, se traduz na impotência e no medo criando culturas de ressentimento que dão lugar à aceitação ou resignação (Estanque, 2005).

Conceito de carácter eminentemente relacional, do ponto de vista sociológico, a identidade é central para o projecto profissional, na medida em que implica a articulação de dois processos (Pinto, 1991): o processo de identificação, através do qual os actores sociais se integram em conjuntos mais vastos e com eles se fundem; e o processo de identização, através do qual os actores se autonomizam e diferenciam, estabelecendo fronteiras em relação a outros. Daqui decorre que as identidades sociais, sejam elas profissionais, territoriais, culturais ou outras, se constroem através de processos de integração e diferenciação, os quais se alimentam das trajectórias sociais incorporadas nos actores, da sua posição na estrutura social e dos projectos socialmente formuláveis a cada momento (Pinto, 1991).

É com base nestes pressupostos teóricos que o conceito tem vindo a ser mobilizado no quadro da sociologia do trabalho, em geral, e da sociologia dos grupos profissionais, em particular. As propostas analiticamente mais estimulantes neste campo são as

11 Note-se que a proletarização não é um fenómeno exclusivo das sociedades industriais. Como refere Estanque (2005), ele prolifera também nas sociedades terciarizadas e acentua-se à medida que a globalização económica avança arrastando consigo uma crescente desregulamentação das relações de

apresentadas por Sainsaulieu (1996; 1997) e por Dubar (1991; 2000). O primeiro parte do princípio de que as identidades são “modelos de normas e de valores (...) e modos de ser na relação com os colegas e com os chefes” (Sainsaulieu, 1997: 200-201) resultantes de uma aprendizagem feita no interior da empresa, como resultado dos jogos de poder que atravessam as relações no trabalho (Sainsaulieu, 1996. O segundo define-as como “sistemas de justificação relativos ao universo profissional incluindo a relação com o trabalho, a trajectória profissional e as concepções da formação” (Dubar, 1994: 257) sendo por isso formas de se definir a si próprio e ser definido pelos os outros nas interacções verbais quotidianas. Dubar (1998: 73) reforça a importância analítica que confere às identidades profissionais ao atribuir-lhes, ainda, uma dimensão prospectiva, quando afirma que “constituem não só uma maneira de viver (e de dizer) o trabalho e de lhe dar um sentido, mas também formas de contar e de antecipar o ciclo de vida profissional, socialmente condicionado pela origem social, a formação inicial e a trajectória anterior”.

Ambos os autores, propõem-nos abordagens tipológicas, muito ricas do ponto de vista heurístico, que compreendem quatro tipos de identidades no trabalho ou identidades profissionais. Apesar de valorizarem dimensões diferentes e de resultarem de abordagens metodológicas distintas, os modelos propostos apresentam um elevado nível de similitude, facto que leva Dubar e Tripier (2003) a estabelecerem uma relação directa entre as dimensões que compõem ambas as tipologias. Mas, na verdade, elas são distintas. Sainsaulieu está preocupado com as identidades que se estabelecem em resultado dos jogos de poder existentes no interior da empresa, procurando com isso demonstrar a autonomia relativa da empresa para produzir normas de relação no trabalho em vez de se limitar a reproduzir as normas associadas à origem social dos indivíduos. Dubar (1992: 522), num contexto de grandes mutações na vida económica e social em que as categorias oficiais se tornaram problemáticas face às novas realidades do trabalho, procura construir novas categorizações que se constituam em configurações socialmente pertinentes e subjectivamente significativas que permitam aos indivíduos definir-se a si próprios e definir os outros, permitindo-lhes construir e negociar novas definições de si mesmo no campo profissional. Aliás, é o próprio Dubar (1998: 73) que nos chama a atenção para a especificidade da sua proposta em relação à de Sainsaulieu ao afirmar que as “formas identitárias, reconstruídas pelo investigador com base na

análise dos discursos dos assalariados, são distintas das identidades no trabalho de Renaud Sainsaulieu, porque elas articulam os processos de reconhecimento no trabalho com os processos biográficos de formação e de construção de trajectórias profissionais”.

A proposta de Sainsaulieu (1996 e 1997) de identidades no trabalho, entendidas enquanto formas de estar na organização e de intervir como actor colectivo, compreende quatro tipos: o modelo de fusão assenta numa solidariedade conformista na relação com os pares os quais constituem um espaço colectivo de refúgio e de protecção contra as divergências e por uma forte dependência relativamente à autoridade do chefe ou do líder, nomeadamente sindical, em virtude de não terem qualquer poder sobre as suas condições de trabalho; o modelo de negociação resulta da riqueza da vida colectiva, das competências e das responsabilidades das funções desempenhadas que lhes permite afirmar constantemente as suas diferenças, negociar as suas alianças e o seu reconhecimento social; o modelo das afinidades baseia-se nas conivências de afectividade selectiva entre colegas e também com chefias; o modelo de retraimento corresponde à recusa das relações sociais no trabalho e um investimento social fora das situações de trabalho mantendo estas a sua importância enquanto modo de subsistência.

Colocando a ênfase no modo como os indivíduos se relacionam simbolicamente com o trabalho, a carreira profissional e a formação, Dubar (1991 e 2000) identifica aquilo que designa por quatro formas identitárias: as identidades exteriores ao trabalho, típicas das mulheres, nas quais o espaço de identificação se encontra limitado à esfera doméstica ou a actividades não profissionais as quais são socialmente desvalorizadas; as identidades de ofício, associadas aos ofícios tradicionais, cujo espaço de identificação é a referência nostálgica a uma tradição ameaçada pela inovação tecnológica e organizacional; as identidades de empresa, típicas de quem alimenta projectos de mobilidade interna, em que o espaço de identificação é a empresa, na medida em que se investem na prossecução dos seus objectivos organizacionais, na expectativa de serem recompensados através de promoções; as identidades de rede que, associadas a indivíduos altamente qualificados, resultam de um investimento na mobilidade externa à empresa em que trabalham, pelo que o espaço de identificação é a rede profissional em que se integram.

Identificáveis a partir das narrativas individuais, as formas identitárias propostas por Dubar, adquirem uma relevância analítica particular no contexto de sociedades em mutação ou de sociedades em crise, como alguns lhe preferem chamar, pelo facto de incorporarem a possibilidade de reconstrução narrativa dos percursos profissionais dos indivíduos e, consequentemente das suas expectativas, em função dos processos de estruturação e desestruturação profissional, resultantes dos ritmos históricos, das formas culturais e jurídicas e das configurações político-ideológicas que enformam as dinâmicas dos sistemas de emprego12.

A proposta teórica de Sainsaulieu atribui um papel secundário às identidades sexuais no trabalho, ao associar as mulheres ao modelo de retraimento. Sainsaulieu (1996: 436) justifica a adopção deste posicionamento identitário por parte das mulheres, porque a vida lhes “oferece outras necessidades de investimento social” o que faz com que “nos seus espíritos, a situação profissional não seja mais do que um simples instrumento em relação a uma outra cena de acção”. A adopção de normas de relação interpessoal no trabalho marcadas pelo retraimento, são, para Sainsaulieu, um efeito da sua posição social extra-profissional onde as responsabilidades familiares se assumem como elemento central. Contudo, o autor não deixa de se questionar acerca da possibilidade de evolução das relações femininas no trabalho, no sentido de um maior envolvimento colectivo, caso elas se consigam desembaraçar da tutela masculina. É que, Sainsaulieu (1996: 168) verifica que, “quando as condições de trabalho devolvem um certo poder profissional aos empregados, descobrimos que as mulheres evoluem para um modelo de relações colectivas em que elas se envolvem nas discussões e acabam mesmo por mudar de atitude para com os chefes masculinos”. Constatando o crescimento do número de empresas compostas maioritariamente por mão-de-obra feminina e a possibilidade das mulheres virem a investir as suas capacidades relacionais, resultantes de experiências sociais diferentes das dos homens, o autor defende que esta é uma temática a merecer um aprofundamento da investigação, dadas as implicações potenciais sobre as relações de trabalho.

12 Usamos aqui o conceito de sistema de emprego no sentido que lhe é dado por Rodrigues (1988: 56-57) ao defini-lo como o “conjunto organizado das estruturas, dos agentes e dos mecanismos económicos e sociais que moldam a utilização e a circulação da mão-de-obra em interacção com os processos de reprodução desta mão-de-obra”, na medida em que compreende não só dinâmicas associadas ao trabalho, mas também dinâmicas sociais, económicas, educativas, demográficas, políticas, etc.

Subscrevendo as preocupações expressas por Sainsaulieu, Dubar enceta uma crítica à capacidade heurística da sua proposta, uma vez que acantona as mulheres no modelo identitário de retraimento. Para Dubar (1991), as estratégias identitárias femininas resultam de uma aliança de interesses com as chefias que lhes permite salvaguardar o investimento prioritário na esfera familiar, sem colocar em causa as relações sociais de dominação. Questionando a pertinência da noção de retraimento para a definição das dinâmicas identitárias, a partir da constatação de que se verificou uma aceleração da inserção das mulheres nos diferentes segmentos do mercado de trabalho, Dubar (1991: 212-213) conclui que a actividade feminina “não implica uma atitude de retraimento na esfera do trabalho, ela pode, pelo contrário, estimular a invenção de estratégias de carreira complexas”, para além de que, com a hegemonia dos modelos de gestão de recursos humanos baseados na competência “cada vez se torna mais arriscada a adopção e a exteriorização de atitudes de retraimento no trabalho”. Ao discutir a crise das identidades sexuais13, na sua última obra, Dubar (2000: 93) leva mais longe a sua reflexão crítica ao afirmar que “o que se desenha é uma pluralidade de modos de vida, de concepções, de configurações, isto é, de combinações inéditas de formas identitárias”, concluindo que “ser um homem ou uma mulher está em vias de se tornar uma questão de história, de projecto, de percurso biográfico, de construção identitária ao longo da vida”.

Esta concepção relativista, baseada na capacidade dos sujeitos aprendentes em construírem a sua própria narrativa, por via da acção reflexiva14, sendo congruente com a proposta teórico-metodológica de Dubar, nomeadamente no que respeita à dimensão biográfica da identidade, está longe da abordagem crítica sobre o problema da divisão sexual do trabalho que tem vindo a ser levada a cabo por autores que adoptam a perspectiva dos gender studies (Witz, 1995; Brandley, 1999; Pigalle, 2000; Gregory e Windebank, 2000; Arnot, David e Weiner, 2001; Crompton, 2003; Alaluf et al, 2004). Com efeito, para Dubar (2000: 223-224), a actual crise das identidades, no quadro de

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Dubar chama a atenção para a sua definição de identidades sexuais que são “formas de se definir (e de se contar) enquanto homem e mulher, na vida privada, pai, mãe, filhos, filhas, etc, na família”. Esta chamada de atenção merece-nos nota na medida em que, apesar de se inscreverem nas relações sociais de sexo, estas identidades não incorporam de forma directa as suas interconexões com o trabalho e as profissões.

14 Esta acção reflexiva remete-nos para a proposta de Schon (1983) que vê no ‘trabalhador do

uma sociedade cada vez mais individualizada, apesar de se constituir numa ameaça de exclusão e de isolamento das vitimas da globalização e da precarização é, também, entendida como “uma oportunidade de emancipação, uma forma de se libertar dos laços de dominação masculina, da influência das submissões à ordem familiar e da sujeição às tradições impostas”. Esta concepção optimista acerca das potencialidades libertadoras da actual crise colectiva, nomeadamente, no que respeita à subjugação social das mulheres, assenta numa dimensão ética do processo identitário, na medida em que, para Dubar (2000: 226) “reconhecer-se a si próprio é ser reconhecido como justo, o que significa ser concretamente solidário com aqueles que sofrem”.

Apesar de introduzir a dimensão ética no processo de reconhecimento de si e dos outros, a qual surge como uma espécie de afirmação da capacidade libertadora das comunidades humanas, as formas identitárias propostas por Dubar incorporam, de forma limitada, a problemática das desigualdades e da dominação social entre homens e mulheres no mundo do trabalho. Na sua proposta, os actores sociais, enquanto sujeitos reflexivos e aprendentes, têm a capacidade e a responsabilidade ética de recusar a dominação, a subjugação, a autoridade imposta arbitrariamente e a subordinação pessoal. Dubar (2001: 222) exemplifica, empiricamente, esta sua crença nas virtudes humanas, com o processo histórico de libertação progressiva das mulheres da dominação masculina que ocorreu a partir dos finais da década de sessenta, quando as mulheres se envolveram em combates que “provocaram avanços significativos em matéria de subjectividade e, potencialmente, de democracia”. Apesar do potencial heurístico da proposta de Dubar, há uma inquietação que nos assalta: será que tais avanços nos planos simbólico e político têm o seu equivalente nos planos material e socioeconómico?

A perspectiva adoptada por Witz (1995), no estudo das profissões da saúde, ajuda-nos a encontrar algumas pistas para compreender o modo como se gera e sustenta a segregação sexual no mundo do trabalho e, em particular, nas estratégias de profissionalização, através de processos sociais de dominação e subordinação. Partindo do conceito de patriarcado15, enquanto sistema global de relações sociais caracterizado

15 Note-se que a autora reconhece o carácter ambíguo do conceito dado que este tem sido utilizado ora numa dimensão privada para referir a opressão das mulheres no interior da família, ora numa dimensão pública para designar essa mesma opressão no mundo do trabalho.

pela dominação dos homens sobre as mulheres, a autora propõe-nos uma interpretação em que procura demonstrar o modo como essas relações se inscrevem no processo histórico de desenvolvimento do capitalismo, apesar das diferentes formas assumidas no decurso da institucionalização do poder masculino, consoante os contextos históricos, culturais e espaciais.

Historicamente subjugadas à dominação masculina, profissionalmente acantonadas em segmentos do mercado de trabalho social e economicamente desvalorizados por via da divisão sexual do trabalho, as mulheres desenvolvem projectos profissionais colectivos marcados por uma identidade própria, na medida em que tais projectos emergem a partir de estruturas sociais patriarcais, organizadas para manter o poder e os privilégios masculinos, no quadro de uma sociedade capitalista, que vê nas mulheres um suporte à reprodução social força de trabalho (Bertaux, 1978) e uma reserva de mão-de-obra barata16 mobilizável em função das necessidades económicas. Este raciocínio deixa de fora as consequências da crescente feminização do ensino superior, que tem vindo a permitir o acesso das mulheres a um conjunto de profissões tradicionalmente dominadas pelos homens, não explicando, por isso, o potencial transformador de tal fenómeno. A resposta não parece, contudo, pôr em causa a natureza patriarcal do modelo, na medida em que, como refere Davies (1996), hoje o problema não estará tanto na exclusão das mulheres do acesso a certas profissões tradicionalmente masculinas, mas antes nas formas que assumem a sua inclusão nessas mesmas profissões. Enraízadas nas dinâmicas sociais, essas formas de inclusão enquadram-se em estruturas organizacionais, políticas de gestão de recursos humanos, modos de interacção e de sociabilidade que obedecem a lógicas culturais e materiais genderizadas.

16 A par das mulheres que entram cada vez mais nesta reserva de mão-de-obra os desempregados, os imigrantes, os jovens, os precários nas suas diferentes configurações e os trabalhadores “ilegais” (Kóvacs,

Capítulo 2

O processo de construção do campo profissional da Gestão de