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O processo de construção do campo profissional da Gestão de Recursos Humanos

2.2. O Problema do Défice de Credibilidade e Legitimidade

Pilar fundamental no processo de estruturação e desenvolvimento das sociedades capitalistas, as relações de trabalho têm-se constituído numa das arenas fundamentais do confronto ideológico e da luta social, ao longo dos dois últimos séculos. A histórica luta pela consagração de um conjunto de direitos básicos ao e no trabalho constituiu um dos avanços mais significativos das sociedades modernas, as quais assumiram, nos seus sistemas político-constitucionais, em geral, e na legislação do trabalho, em particular, o papel fundamental da regulação de uma relação estruturalmente desequilibrada entre capital e trabalho (Monteiro Fernandes, 2001).

Este processo não ocorreu, contudo, de forma universal e linear. Tendo sido um processo associado à proletarização nas sociedades industriais, bem como à democratização política, ele desenvolveu-se, fundamentalmente, nas chamadas sociedades ocidentais sendo que, mesmo nessas, foi sofrendo, ao longo dos tempos, avanços e retrocessos, em função dos equilíbrios político-ideológicos que se iam estabelecendo em cada Estado-Nação. Tal significa que estamos perante um terreno marcado por equilíbrios instáveis, onde os interesses conflituam e a tensão é permanente, dada a luta material e simbólica que nele se gera.

É o carácter estrutural desta tensão ou conflito que faz com que o papel do Estado, que a par com o mercado se constituem em instâncias dominantes de racionalidade e regulação social, assuma uma importância crucial. Ao assumir uma função de mediação entre capital e trabalho, o Estado leva a cabo uma permanente calibragem dos interesses, de forma a garantir, não só o respeito pela dignidade humana, mas também uma sociedade em permanente busca da justiça social através da consagração dos direitos fundamentais da pessoa humana no trabalho (Abrantes, 2001). Contudo, nas sociedades de capitalismo avançado, temos assistido a uma crescente alteração do peso relativo de ambas as instâncias de regulação social, com o poder do mercado a assumir um papel hegemónico, em detrimento da capacidade de regulação por parte do Estado (Estanque, 2005).

Traçado o quadro macro social em que se estabelecem as relações de trabalho nas sociedades contemporâneas, importa agora enunciar as condições que, a nível micro24, estruturam as relações de trabalho nas empresas, não só enquanto espaço de conflito de interesses, mas também enquanto instância de regulação social. Tendo adquirido uma legitimidade social crescente, que nas últimas décadas tem assumido a figura do encantamento (Bernoux, s.d.), a empresa capitalista caracteriza-se quer por desempenhar uma função económica quer uma função social. Ela é, simultaneamente, um espaço de criação e de distribuição social da riqueza, de confronto e de consenso, de produção e reprodução de normas sociais.

A gestão das dinâmicas sociais que atravessam a empresa foi assumindo diferentes configurações quer no tempo quer no espaço (Segrestin, 1996). Dessas configurações sobressaem duas lógicas dominantes: a que é marcada pela ideologia paternalista e a que é marcada pela ideologia gestionária. Se a primeira, hoje residual embora típica das pequenas empresas familiares, assenta na superioridade moral do patrão que faz dele uma ‘autoridade social’ que deve ser respeitada, assegurando em troca a ‘protecção’ dos seus trabalhadores; a segunda, hegemónica nas sociedades contemporâneas e levada ao seu extremo nas grandes multinacionais, tem as suas bases nos princípios da organização científica do trabalho25 que impõem a superioridade da racionalidade técnico-económica na gestão das empresas.

É no quadro desta ideologia gestionária, que tem sustentado o desenvolvimento de um modelo de capitalismo de acumulação flexível, que se tem vindo a desenvolver um modo de regulação social que reflecte a crescente tensão entre a gestão colectiva e a gestão individual das relações de trabalho, a qual se traduz, entre outros aspectos, no confronto entre o primado do trabalho como um “direito” e o primado do trabalho como uma “responsabilidade”, como refere White (2001: 7). Legitimado pelos poderes públicos, ora por acção ora por omissão, o processo de construção deste novo modo de regulação social tem vindo a colocar no centro do debate as políticas de Gestão de

24 Note-se que este nível de regulação das relações de trabalho tem vindo a ganhar uma relevância acrescida em países que tradicionalmente se limitavam a uma regulação macro ou meso, como é o caso de Portugal (Dornelas, 2000; Freire, 2001)

Recursos Humanos das empresas26, bem como o papel desempenhado pelos actores que lhes dão corpo – os profissionais de recursos humanos.

Se a racionalidade económica é o elemento estruturante da ideologia gestionária, adquirindo sentido por via do culto da performance (Ehrenberg, 1991), a importância estratégica atribuída ao capital humano surge como a promessa de concretização das aspirações das pessoas, ao colocá-las no epicentro de um mundo supostamente ilimitado de oportunidades materiais e simbólicas. Este mundo de promessas27, que encontra terreno fértil para a sua disseminação encantada no ideário da ideologia meritocrática, faz depender a sua concretização da vontade e do esforço individual, branqueando as desigualdades sociais de partida, bem como a existência de estruturas de oportunidades sociais diferenciadas.

Esta forma hegemónica de pensar as relações sociais, em geral, e as relações de trabalho, em particular, surge igualmente no contexto de uma sociedade do risco (Beck, 2001) onde a luta social ocorre, tanto ao nível da repartição da riqueza como da repartição dos riscos associados ao processo de modernização em curso. Ao obedecer a uma lógica negativa de afastamento e eliminação, por contraposição à lógica positiva de apropriação que está no centro da repartição da riqueza, o processo de repartição social do risco apresenta-se como um fenómeno novo e inevitável que é objecto de uma construção retórica28 imposta pelos grupos sociais dominantes.

É neste contexto social complexo que a Gestão de Recursos Humanos se posiciona, seja enquanto disciplina académica, seja enquanto prática profissional. Porque a sua acção não é socialmente neutra, à Gestão de Recursos Humanos exige-se uma capacidade permanente de proceder a uma reflexão epistemológica e ética sobre si mesma, como tivemos oportunidade de chamar a atenção anteriormente, sob pena de se limitar a ser um instrumento de legitimação dos interesses e dos discursos dominantes (Brabet, 1993;

26 Veja-se, a título de exemplo deste novo modo de regulação, os resultados da investigação que realizamos sobre os acordos negociais internos celebrados na Wolkswagen/Autoeuropa (Almeida et al, 2010).

27 Veja-se, a propósito da construção deste mundo de promessas, o trabalho de Canário (2005a) sobre a discussão do papel histórico da escola e de Alves (2008) no contexto da discussão sobre a problemática da inserção profissional dos diplomados.

28 Para Beck, a existência e a repartição social dos riscos é fundamentalmente mediada pela argumentação, dado o carácter invisível e intangível desses mesmos riscos para as pessoas que lhe estão expostas.

Watson, 2004; Cabral-Cardoso, 2004; Almeida, 2004). Embora minoritária, esta preocupação tem vindo a ganhar corpo entre a comunidade académica e profissional, constituindo-se numa das dimensões mais relevantes do debate sobre o processo de profissionalização da Gestão de Recursos Humanos já que, como conclui Moura (2000: 214) num estudo sobre a Gestão de Recursos Humanos em Portugal, “parece evidente que o facto de a função [recursos humanos] se ter mantido num quadro que privilegia o desenvolvimento de relações de ordem burocrática e autoritária (ou autocrática) representa um dos principais obstáculos ao seu desenvolvimento e, tudo indica, proficiência”.

A necessidade de recorrer a uma visão mais analítica ganha capacidade heurística ao termos em conta os pressupostos da Teoria Crítica para a problematização da Gestão de Recursos Humanos, sujeitando-a àquilo que Watson (2004) designa por uma “critical

social science analysis”, tendo em vista a adopção de uma ética profissional que não se limite, exclusivamente, aos fundamentos utilitaristas da Gestão de Recursos Humanos. Partilhando da mesma postura reflexiva, mas afastando-se da crítica radical de Watson, também Domingues (2005: 12) se questiona acerca da possibilidade de uma Gestão de Recursos Humanos sem um “intervencionismo sociológico integrado numa atitude gestionária de ligação das pessoas à estratégia organizacional”.

Esta postura crítica e, por isso, não prescritiva parece ganhar terreno à medida que aumenta a massa crítica entre a comunidade académica que se debruça sobre a problemática da Gestão de Recursos Humanos e se desenvolve uma reflexão teórica sistemática quer no interior do campo disciplinar quer a partir de campos disciplinares que lhe são próximos (Guest, 2001). Ao desenvolver-se uma reflexão sobre as bases conceptuais da disciplina, não só será possível reforçar o profissionalismo que lhe está associado, mas também a sua maturidade científica, contribuindo, por isso, para reduzir, mas não eliminar29, a tensão quer entre investigadores e práticos quer entre a validade e a utilidade do conhecimento que produz (Lynham, 2000).

29 Importa sublinhar que, como refere Astley (1984) a propósito das ciências de gestão, esta tensão é uma condição do progresso científico. Também Canário (2005a: 35), ao discutir o que é a Sociologia, realça a

No quadro da produção académica portuguesa, esta perspectiva está presente em trabalhos de sistematização teórica de autores como Cabral-Cardoso (2000), Neves (2000), Keating (2000) ou Almeida (2004). Oriundos de campos disciplinares distintos, predominantemente Psicologia e Sociologia, estes autores, apesar de reconhecerem as ambiguidades que atravessam o campo disciplinar, caracterizam-se por apresentar uma visão optimista, mas com graus diferenciados, quanto à possibilidade de reforço da credibilidade e legitimidade da Gestão de Recursos Humanos.

A discussão em torno da maturidade da disciplina tem merecido referências, muitas vezes contraditórias, mais marcadas pelos seus níveis de consagração nacional do que por uma visão global sobre o campo disciplinar. Assim, se Gilbert (2000: 10), a partir do caso francês, defende que “a GRH tem a sua autonomia, o seu vocabulário e os seus referentes teóricos”, Keenoy (2007: 1), a partir da experiência Britânica, considera que a GRH é, actualmente, “a perspectiva académica convencional para analisar a gestão das relações de emprego”. No contexto português, Keating (2000: 113), defende que “a Gestão de Recursos Humanos, considerada globalmente, não prima por uma base de conhecimentos muito consistente”. Esta ideia é corroborada por Domingues (2005: 119), ao afirmar que a área funcional da Gestão de Recursos Humanos “é pobre pela insuficiência de uma teoria que lhe permita decidir de acordo com pressupostos científicos prévios”, o que a coloca à mercê das abordagens orientadas pelo modelo das melhores práticas (best practices), teorizado por Pfeffer (1994). Este modelo, que é apresentado como a receita universal para o sucesso organizacional30, tende a ignorar os efeitos decorrentes da realidade política do mundo organizacional (Legge, 1978).

Se a globalização, a par da hegemonia da ideologia gestionária, exercem uma forte pressão no sentido da adopção desses modelos de Gestão de Recursos Humanos universalistas, na linha do one best way, não deixa de ser verdade, como refere Domingues (2005: 120), que, no mundo dos negócios, “as vantagens competitivas e a criação de valor dependem de se ser diferente e não igual”, esbarrando sempre no chamado factor humano. É neste contexto que os recursos humanos, enquanto recurso

30 Para uma crítica ao modelo das sete “best practicies” proposto por Pfeffer, consultar Marchington e Grugulis (2000) os quais, a partir de estudos empíricos, concluem que diferentes conjuntos de práticas podem ser importantes em diferentes organizações. Na mesma linha, Lepak e Snell (2002) constatam que diferentes configurações de recursos humanos tendem a ser usadas para gerir os trabalhadores no que designam por diferentes modos de emprego.

organizacional, podem adquirir toda a sua centralidade, na medida em que surgem como o “elemento prioritário a desenvolver, pois são os únicos capazes de tornarem as empresas verdadeiramente flexíveis, no sentido em que potenciam a capacidade de adaptação ao meio mas, sobretudo, porque garantem a sua capacidade de antecipação e de reacção à mudança” (Parente, 2008: 95).

Arrastando consigo uma herança histórica pesada, a Gestão de Recursos Humanos tem- se vindo a confrontar com uma crise de confiança e de legitimidade que resulta, entre outros factores, de ter colada a si uma imagem e, muitas vezes uma prática, que, segundo Doyle, faz dos seus profissionais agentes perfeitos da gestão de topo (cit in Kochan, 1997) ou, nas palavras de Baritz, servidores do poder (cit in Brief, 2000). Watson (1977: 193) coloca a questão em termos mais abrangentes, ao analisá-la no quadro da estrutura de classes, classificando os profissionais de recursos humanos de “agentes dos grupos sociais mais favorecidos na sociedade capitalista industrial”.

A superação desta subalternidade instrumental atribuída à Gestão de Recursos Humanos e aos seus profissionais exige uma dupla ruptura: externa, através da demonstração da sua credibilidade e legitimidade aos olhos dos profissionais com que interage e do público em geral; e interna, através da sua reinvenção enquanto comunidade que se reconheça num projecto profissional emancipatório31.

Se o debate em torno da maturidade do campo disciplinar é atravessado por perspectivas diferenciadas, já a consciência de que este campo vive um momento de ruptura paradigmática tende a apresentar-se bastante mais consensual, permitindo, sob certas condições (Kochan, 2004), abrir caminho a uma nova ordem participativa, baseada na autonomia dos actores e na partilha do poder no interior das organizações, como forma de reabilitar a legitimidade social da empresa e, concomitantemente, da própria Gestão de Recursos Humanos e dos seus profissionais. É que, como diversos autores têm vindo a chamar a atenção (Legge, 1978; Galambaud, 1991; Gold e Bratton, 2003; Kochan, 2004; Lansbury e Baird, 2004; Watson, 2004; Guérin, Pigeyre e Gilbert, 2009), os profissionais de Gestão de Recursos Humanos atravessam uma crise de confiança e de

legitimidade aos olhos dos diferentes actores organizacionais32, e da sociedade em geral. Esta crise tem como efeito a necessidade da redefinição do seu papel e identidade profissional, tendo em vista a discussão do seu contributo para a construção de um novo equilíbrio entre os diferentes interesses presentes nas relações de trabalho, no quadro do que Stankiewicz (1988: 29) designa por um “projecto partilhado” e mobilizador da “inteligência dos trabalhadores”.

As associações profissionais surgem, neste contexto, como um actor chave capaz de contribuir para a afirmação colectiva dos profissionais de recursos humanos, através da constituição de uma comunidade de interesses externamente visível (Guérin et al, 2009). Contudo, neste campo profissional específico, apesar da escassez de estudos científicos, o seu papel tem vindo a ser objecto de crítica face à dificuldade quer em garantir o fechamento profissional, quer em definir um modelo de certificação coerente. Esta idiossincrasia, resultante do facto de a Gestão de Recursos Humanos se ter transformado “num campo de batalha” em que diferentes actores sociais se confrontam na procura da legitimidade para definir o seu âmbito e os critérios da sua avaliação (Guérin et al, 2009: 112), está bem patente nos resultados de um estudo elaborado por Brewster et al (2000), o qual foi encomendado pela Federação Mundial das Associações de Gestão de Pessoal (WFPMA), ao constatarem que:

• apenas um quarto dos gestores de recursos humanos europeus é membro da respectiva associação profissional nacional33;

• há países onde a representação do campo profissional é assegurada por mais do que uma associação visando a defesa dos mesmos interesses, o que fragiliza a sua credibilidade;

• entre os associados existem não só profissionais, mas também organizações (sócios colectivos) o que potencia um conflito de interesses;

• os perfis de competências (standards) que suportam os processos de certificação tendem a ser diferentes, revelando a dificuldade em estabelecer um corpo estável de conhecimentos próprio da profissão;

32 Kochan (2004) adopta a perspectiva de análise dos stakeholders pelo que a responsabilidade da Gestão de Recursos Humanos passa por contribuir para estabelecer um novo equilíbrio entre os diferentes actores organizacionais quer sejam internos quer sejam externos.

• existe uma grande diversidade de formas de avaliação e certificação profissional entre as diferentes associações34.

Apesar de estarmos perante um estudo predominantemente descritivo, cujo objectivo é o desenvolvimento de uma definição globalmente aceite das competências de um profissional de recursos humanos, a radiografia que faz, a partir de um inquérito às associações nacionais, é suficientemente relevante para identificarmos algumas das dificuldades com que as associações profissionais se deparam. Apesar das diferenças nacionais, estas associações parecem não conseguir desempenhar um papel mais activo na superação das debilidades com que o grupo profissional se defronta. Contudo, a própria existência do estudo evidencia algum grau de consciência dessas debilidades, bem como de vontade para as superar, isto apesar dos desafios nele colocados, aparentemente, não terem tido qualquer sequência.

Um estudo realizado, em Inglaterra, por Gilmore e Williams (2003) sobre a estratégia da associação inglesa que representa o campo profissional - CIPD35 – mostram-se

bastante críticos quanto à estratégia institucional que enforma o projecto profissional veiculado pelo CIPD quer no que respeita ao predomínio das competências de gestão nos standards que estão na base do sistema de certificação profissional quer quanto à disseminação de uma concepção de Gestão de Recursos Humanos que a subordina aos interesses do negócio. Este posicionamento estratégico, ao estruturar a sua “agenda formativa” a partir da retórica do alinhamento da função recursos humanos com a estratégia do negócio e da concepção universalista das práticas de Gestão de Recursos Humanos, coloca a Associação numa situação de vulnerabilidade face à discrepância entre essa retórica e as condições concretas de acção dos seus profissionais.

34 Note-se que no caso português não existe qualquer mecanismo institucionalizado de certificação profissional.