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3. O CHEIRO DO RALO.

3.5. As imagens da bunda, do olho e do ralo.

As imagens mais importantes do romance são o olho, a bunda e o ralo. Elas representam as fixações do protagonista e se tornam personificadas por este, o qual a elas atribui significado e forma. Essas imagens são evocadas pelo narrador em seu caráter cotidiano, mas transformam-se, na narração, em metáforas continuadas, em alegorias.

A figura do olho é fortemente ligada, primariamente, às características da ordem e do ser divino, porque o olho de Deus é a fonte da qual se apreende a verdade das coisas do mundo terreno, como concebe Tomás de Aquino, uma fonte cuja origem está na tradição egípcia, na qual do sol se emana a luz da verdade do mundo, pois o olho de Deus é também o olho esquerdo de Hórus, o sol egípcio. (PIEPER, 2013, p. 35).

Similarmente, o olho de Deus é o olho do pai, símbolo da ordem patriarcal, logo, o olho divino é representante da ordem simbólica de Lacan (2005b.), ou seja, ele é parte da estrutura de conceitos simbólicos em que a psique se estrutura dentro da cultura e da sociedade. O símbolo do olho, como o símbolo do pai, portanto, é um elemento que aterroriza e seduz simultaneamente, dado que ele induz à ordem, representando nisso a possibilidade de castigo se esta for transgredida, mas, exatamente por isso, também induz, ao mesmo tempo, à transgressão.

Da mesma maneira, há uma dualidade de sentimentos presente entre o narrador e o olho na narrativa, porque o olho de vidro comprado pelo narrador fascina-o de forma descomunal em um primeiro momento, como a bunda o fez. Dentro da diegese, esse olho é um fetiche, um objeto ao qual se atribui poder e significado: “Com o olhar do olho em mim. / Durmo. /Sei que o olho do cu vai me guardar.” (MUTARELLI, 2011, p. 40), um poder atribuído ao olho pelo protagonista, o qual vê nele poder e proteção.

152 Todavia, na leitura da obra com seus intertextos, percebe-se que ele provoca no narrador uma sensação ambígua de poder e de mal-estar, visto que o olho é associado ao olho do pai, mas também invertido ao olho do inferno pelo próprio protagonista, o qual percebe no olho uma forma de se apoderar da autoridade e do poder paterno que lhe foram negados e, perversamente, usar deste poder sobre os outros. É por isso que ele mostra o olho a cada visitante com orgulho e felicidade, pois é ao mesmo tempo uma exibição de força e uma patética tentativa de afirmar uma relação entre pai e filho que só existe em sua imaginação.

Por isso, há uma proximidade da sedução deste olho como o sol de Bataille em The solar anus, convidando à destruição: “Os olhos humanos não toleram sol, coito, cadáveres e nem obscuridade, mas com diferentes reações.”54 (BATAILLE, 1931, p.4, tradução minha). Tomar o poder do pai, então, é tão transgressor quanto romper com este poder, porque ele se estabelece no limite entre o que se encontra dentro e fora da ordem.

Contudo, o que em Bataille se dá de forma a romper com os tabus da sociedade ao vingar-se do pai simbólico e rebaixá-lo ao escatológico e ao baixo corporal, colocando assim a ordem junto ao instinto básico de modo a revelar a ilusão e a hipocrisia que circundavam a vida rotineira da burguesia francesa de sua época, em Mutarelli se transforma em mais agressivo e menos erótico, justamente porque a eroticidade que vibra em Bataille, pulsando por todas as linhas de A história do olho é inacessível ao protagonista de O cheiro do ralo, para quem tudo vira engrenagem.

Nesse sentido, o seu apoderamento não visa uma transgressão dos costumes, pelo contrário, visa uma opressão pelos costumes, já que a mulher não é, em momento algum, vista como sujeito ou liberta das amarras sociais, assim como o sexo não é um elemento transformador, mas sim ou engrenagem ou instrumento de submissão e apagamento do outro pelo desejo, força ou dinheiro do protagonista.

Desta forma, são simbólicas as relações que este narrador desenvolve com mulheres durante a narrativa, como com a ex-noiva, abandonada com os convites de casamento na gráfica que passionalmente tenta uma reconciliação, um confronto, ou um retorno emotivo mínimo deste narrador e não encontra:

54 Human eyes tolerate neither sun, coitus, cadavers, nor obscurity, but with different reactions

153 Ela começa a chorar. Mas não fecha a grutinha. Nem para de me convidar. Vem! Ela fala em soluços. Se é isto o que quer, vem, come. Esfrego minha cara e me melo. Quanto mais eu quero, mais forte ela chora. E, mesmo antes de tirá-lo pra fora, o gozo já não posso conter. Aí então já não sinto mais nada.

Nada tem para me dar. (MUTARELLI, 2010, p.22)

Como se vê, apresenta-se, logo de início, o sadismo que domina as relações sexuais e financeiras do protagonista, dado que o prazer dele aumenta proporcionalmente ao sofrimento infligido na ex-noiva, isto é, o prazer aqui se desenvolve em paralelo à humilhação desta, o que também ocorre com a viciada que lhe vende objetos para sustentar o vício e, por conta do qual se vê obrigada a se despir para o narrador:

Eu só preciso de um pouco.

Juro que trago algo da próxima vez. Quer dinheiro não quer?

Eu preciso. Ela toda balanga. Me mostra a bunda.

Me mostra a bunda, que eu te dou. (...) Quero gozar olhando você.

Triste figura.

Ela treme. (MUTARELLI, 2010, p. 81)

Todo o desejo pela viciada ocorre sobre o apagamento da sua pessoa por meio da humilhação, pois o que atrai o protagonista é justamente a situação de completa necessidade da viciada que a coloca sob seu total controle em troca de dinheiro para “parar de tremer” e, nesse sentido, a crueldade do narrador é visceral no que toca ao exercício de um poder perverso sobre o outro.

Nisso resulta a idealidade da bunda para o protagonista, visto que nela há o apagamento completo da mulher, que por não ocorrer com a mulher casada, torna-se o grande impedimento de realização com a mesma, pois esta não se apaga nem se oprime no papel de puta que executa como um jogo de libertação, porque neste ela, necessitada de dinheiro, casada, realiza-se também sexualmente.

Talvez seja esta a grande diferença entre os personagens de A história do olho e de O cheiro do ralo, na medida em que nas narrativas de Bataille, mesmo os loucos e os mortos ou que estão para morrer não cessam de ser sujeitos participantes (do ponto de vista dos protagonistas) do gozo, pelos quais estes sentem um estranho afeto e desejo. Dessa forma, o assassinato do padre em Bataille é muito mais humano do que a

154 exploração disfarçada de troca comercial que o protagonista de Mutarelli exerce sobre a viciada.

Seguindo os apontamentos de Paz (1979), pode-se pensar em uma concepção do olho em Mutarelli como corpo e não-corpo simultaneamente, e nisto residiria o empoderamento do objeto para o narrador, pois o olho de vidro guardaria o protagonista, protegendo-o por ser limítrofe. Dessa forma, atribui-se ao olho as características do sacro e do profano, da ordem e da transgressão e, justamente por se tratar de um artefato, o olho-objeto, o qual é um fetiche, esse empoderamento do objeto é o empoderamento do protagonista, dado que ele toma para si tanto a força do pai, quanto a força do excremento ao associar o olho ao ânus.

Mas novamente é importante ressaltar uma diferença entre O cheiro do ralo e A história do olho no que tange ao olho como fetiche, pois enquanto o olho em Bataille é um objeto de desejo sexual, transgredindo justamente pelo grotesco desejo de Simone de enfiar o olho do Toureiro morto pelo touro em sua vagina, em Mutarelli, o olho é um objeto inanimado que, mesmo brincando com o conceito de voyeurismo, não é sexualizado em si.

Em Bataille, o olho do morto traz a morte consigo em sua ressignificação e, dessa forma, o desejo sexual de Simone se torna um prazer no limite entre vida e morte que, se por um lado é transgressor e ofensivo frente à tragédia do toureiro, por outro se torna um retorno do morto, sinedóquicamente, à vida, ocorrendo simbolicamente pela sua inserção no órgão sexual feminino, num movimento oposto ao nascimento. Já o olho em Mutarelli é um objeto não orgânico, ele é uma prótese de vidro, sem vida, mas que para o narrador é injetada e mais viva do que os olhos dos indivíduos com quem se relaciona. Dessa forma, essa atração por este olho objeto é também significativa do vazio do protagonista de O cheiro do ralo e da sua incapacidade de se relacionar plenamente com outros sujeitos.

Desse modo, o olho objeto em Mutarelli se apresenta como transgressor e profano, mas sua presença é muito mais sombria, pois não oferece o poder de elevação do sujeito, visto que em O cheiro do ralo não há comunhão com o sol e, mesmo se houvesse um sacrífico aos deuses Astecas, o que ocorreria seria a perversão desse sacrifício em um evento de exercício de poder perverso. Por mais brutal que possam ser as cenas de Bataille, ou os sacrifícios ao olho solar Asteca, sua realização é ritualística, ou seja, essa brutalidade se vincula a princípios primitivos da humanidade.

155 Já o narrador Mutarelliano teria a capacidade de perverter tal sacrifício, o prazer em transformar a brutalidade primitiva em algo ainda mais assustador, dado que o sujeito sacrificado não se transforma em coisa e não cessa de ser sujeito, pois não há, no sacrifício asteca um motivo para o riso, embora possa haver um motivo para o belo, segundo Bataille, não há para o riso debochado. Por sua vez, em Mutarelli, o que resta do apagamento das identidades desses sujeitos explorados é o riso perverso do narrador, ainda mais perverso pela cumplicidade do leitor no jogo sádico que este protagonista encerra.

Desse modo, o olho se estabelece como uma dualidade entre as figuras do pai e do inferno, mas sempre sob o viés do perverso. Essa duplicidade entre pai e inferno evidencia a necessidade da presença paterna como limite ao desejo do protagonista assim, o olho, como figura do pai, é tanto o limite do interdito, quanto a autoridade que permite a ele se entregar aos desejos e isto só ocorre pela ausência do pai real.

Nesse sentido, o olho representa uma ordem simbólica do Fantasma, do pai fantasma, pois: “A transgressão precisa da lei para se pôr em ação, ao mesmo tempo é a transgressão que a funda. E não apenas para o perverso: pensemos no assassinato do pai como ‘ato fundador da lei’, no Totem e tabu de Freud.” (LIPPI, 2009).

Logo, para que exista a transgressão, é necessário que exista a lei, o limite; portanto, a figura paterna é tanto a repressão quanto a autoridade de poder transgredir e, por isso, a associação da figura paterna, pelo olho, ao ânus, cria uma complexa relação entre o limite da ordem simbólica e a borda em que se situa o abjeto (KRISTEVA, 1982) dois elementos fronteiriços, um limitador, o outro, transgressor.

Na obra de Mutarelli, o olho é apresentado como um pai que é também o transgressor, além daquele que vigia, porque o olho de vidro, imbuído de significados pelo protagonista, pode ser comparado aqui, tendo em vista as ressalvas já feitas, ao sol de Bataille, para quem o olho é ovo e é sol, ou seja, uma construção de metáforas que se ligam sobre os caracteres da circularidade e da potência entre o olhar, o nascer e a luminosidade. O sol e o olho tornam-se objetos de tensão, eles atraem e repelem, seduzem e destroem.

O olho de Mutarelli, assim como Bataille, é o olho do cu, visto que ele é o olho do desejo pelo dejeto, o olho do inferno, porém, para Bataille, a profanidade infernal seria criadora de mudanças, de reversões, enquanto em Mutarelli, o infernal é demarcado por uma maldade mesquinha do protagonista, interna, essencial, e é por

156 conta desta deturpação interna que o protagonista cria significações de maldade externas, pois dessa forma pode distanciar-se de si próprio:

Eu não vou tampar o vaso. Eu vou é abrir o ralo (...) O ralo é o olho do inferno. O inferno só tem um olho.

O inferno e meu pai. (MUTARELLI, 2011, p. 87-88)

O caráter edipiano da figura do olho como uma estrutura da ordem simbólica se evidencia plenamente no conflito que se estabelece entre o protagonista e esta ordem, um conflito edipiano que vai além do problema freudiano, na dualidade entre o indivíduo e o paterno, e se funda na instabilidade da psique do protagonista frente à estrutura simbólica. O olho é injetado, é agudo, como uma faca ou um amuleto, o protagonista o agarra.

Pego o olho. Analiso. É incrível. É perfeito. Injetado. Quero o olho para mim. A bunda e o olho. Lembro daquela capa de disco. Acho que era do Tom Zé. A bunda e o olho.

O olho do cu. (MUTARELLI, 2011, p. 36)

Essa potência recebida do narrador pelo olho possui o caráter duplo do signo no romance, o de ser o olho do pai e, por esta característica, o olho que atribui ao narrador a autoridade que na ordem simbólica apenas pode ser cedida pelo pai, assim como o de ser também o olho do inferno e o olho do ânus, ou seja, o olho que está fora da ordem simbólica.

A associação do olho, elemento ideal, ao ânus, elemento corporal, no romance, portanto, cria uma sensação da instabilidade do choque provocado pelo real, em seu sentido pleno, na presença do abjeto, das fezes, ou seja, do refugo, que evidencia a realidade da matéria corpórea do personagem, pois as fezes não se desligam dele, não são um objeto completamente externo, elas mantêm o elo de terem sido expelidas pelo corpo que se reconhece como sujeito:

Meu corpo se liberta, como se fosse vivo, daquela borda. Tais dejetos caem para que eu possa viver, até que, de perda a perda, nada reste em mim, e meu corpo inteiro caia para além do limite cadere, cadáver. Se fezes significam o outro lado da borda, o lugar onde eu não sou e que me permite ser, o defunto, o mais doentio dos dejetos, é uma borda que se espalhou por tudo. Não sou mais eu quem expele, “eu” sou expelido. A borda tornou-se um objeto. Como posso eu estar sem

157 borda? Aquele outro lugar que eu imagino para além do presente, ou que eu alucino de modo que possa, em um tempo presente, falar com você, conceber você – está aqui agora, esguichado, abjetado, para dentro de “meu” mundo. (KRISTEVA, 1982, 3-4, tradução minha)55

Dessa forma, o elo entre o olho e o cu, cria um elo entre o desejo e o abjeto, na medida em que a potência do olho flerta com o choque do real provocado pelo contato com as fezes, como o cheiro que inunda e que retorna ao espaço social do qual havia sido expulso pela acepção da privada e do encanamento, porque o abjeto retorna primeiro como cheiro, no trecho:

Vinha um forte cheiro de fossa que subia do ralo e invadia meu nariz. Invadia a sala toda.

Cheiro de merda, é do ralo, afirmei.

Acho que fiquei com vergonha de que ele pensasse que o cheiro vinha de mim. (MUTARELLI, 2011, p. 9)

Por consequência, aqui o cheiro é visto como a borda entre corpo e não-corpo, entre sujeito e objeto, essa borda que não é o sujeito, mas que não se torna objeto, que não se desliga, isto é o abjeto. O medo do protagonista é, justamente, essa identificação entre o abjeto, o cheiro de fossa, e a sua identidade como sujeito, pois o medo é o reconhecimento do abjeto como parte dessa identidade, medo comprovado no diálogo com o vendedor do violino, personagem que se mostra acima dos desejos do protagonista de submissão e que o confronta sem se deixar rebaixar a uma posição inferior de mercado. Este é o sujeito que além de não vender o objeto que possui por um preço de exploração, não regateia e afronta o narrador, ou seja, afirma-se como sujeito e não se deixa reificar:

Aqui cheira a merda. É o ralo.

Não. Não é não.

Claro que é. O cheiro vem do ralo. Ele entra e fecha a porta.

O cheiro vem de você.

Olha lá. Levanto e caminho até o banheirinho.

55 My body extricates itself, as being alive, from that border. Such wastes drop so that I might live, until, from loss to loss, nothing remains in me and my entire body falls beyond the limit cadere, cadaver. If dung signifies the other side of the border, the place where I am not and which permits me to be, the corpse, the most sickening of wastes, is a border that has encroached upon everything. It is no longer I who expel, "I" is expelled. The border has become an object. How can I be without border? That elsewhere that I imagine beyond the present, or that I hallucinate so that I might, in a present time, speak to you, conceive of you—it is now here, jetted, abjected, into "my" world. (KRISTEVA, 1982, 3-4.).

158 Olha lá, o cheiro vem do ralinho.

Ele ri coçando a barba. Quem usa esse banheiro? Eu.

Quem mais? Só eu.

Ele continua com o sorriso no rosto, solta:

E então, de onde vem o cheiro? (MUTARELLI, 2011, p. 18)

O cheiro vem do protagonista, ele é uma parte que, apesar de exterior, não se pode expelir completamente, a linha tênue entre sujeito e objeto, isto é, uma parte que evidencia a organicidade material da vida, um elemento do campo material que choca a psique precisamente por lembra-la da perda de sua relação com o material, revelando a fragilidade da ordem simbólica e imaginária eternamente perdida por se adquirir a linguagem.

Pensando no aspecto profano do abjeto, cita-se aqui Fabiano da Conceição Silva (2011),pois este discute a construção simbólica do inferno na narrativa de Mutarelli fazendo um paralelo do ciclo do romance com o percurso dantesco. Silva desenvolve as relações entre o demoníaco e o baixo corporal escatológico que compõem a estética do romance focando no aspecto de descarte e de não-pertencimento da escatologia, características definidoras do abjeto:

O retorno do que fora rejeitado, escondido, expurgado, dá ao romance o tom escatológico de que necessita para contradizer a assepsia organizadora da vida social. O descartado, por sua própria natureza, deve permanecer silenciado e distante da visibilidade dos olhares civilizados. Mas nada no romance parece mais disposto a perturbar a ordem do que o retorno do refugo em suas características olfativas (SILVA, 2011, p.45)

É nesse sentido que o livro explora o baixo corporal, em especial o ânus, não somente em seu aspecto sexual, como objeto de desejo, mas também em seu aspecto escatológico e é interessante notar que essas associações provocam uma dualidade entre a perdição do cheiro das fezes e uma ilusória salvação pelo desejo sexual anal, dado que, em ambos os casos, a bunda, o ânus e as fezes são elementos circundantes do conceito de abjeto (KRISTEVA, 1982), elementos excluídos, para fora da ordem e, exatamente por isso, elementos que se colocam como transgressores da ordem dentro do romance.

159 O abjeto, como elemento excluído, também se relaciona no romance com o profano, pois o narrador associa o ralo ao inferno, assim como o olho e, consequentemente, as fezes e o ânus, como abjeções, dejetos, são transgressores, incomodam a rotina por não possuírem lugar. Como apontado inicialmente por Fabiano, eles retornam, transgridem um espaço que não os aceita;

Dou a descarga. Tudo volta. O vaso se enche e transborda. Puta que pariu. Agora não tem mais o ralo. Como vou parar essa merda? Como vou limpar essa merda toda? Se eu chamar a mocinha, ela vai saber que isso tudo é meu. Não, não culpo você, olho da sorte. Foi descuido meu mesmo. Tiro as meias. A cueca. A camiseta que está sob a camisa, para evitar o vento no peito. Junto tudo a dois rolos de papel higiênico. Tento conter a vazão. Consigo. Tudo vira uma espécie de fétido papel machê. (MUTARELLI, 2011, p. 45)

O abjeto na figura das fezes, do cheiro do excremento, assim como o orifício do qual elas são expelidas, são signos que violam o espaço comum de aceitação social do mesmo modo que o profano viola a ordem do sacro. Isso é evidenciado pelo narrador em um comentário sobre as pinturas de Bosch56, no qual relaciona o ânus como paralelo ao inferno:

Bosch pintava um monte de coisas entrando ou saindo do cu. Eu lembro. Eu vi nos quadros de Bosch.

Eu sei.

Porque na Idade Média o cu representava o inferno. É isso. Eu sei que é. E o ralo é o cu do mundo.

O cheiro que aspiro vem do inferno.” (MUTARELLI, 2011, p. 34). O cheiro das fezes, portanto, é o cheiro do inferno, o cheiro infernal, o fedor do excremento é um elemento do aspecto primitivo humano, ou seja, do seu aspecto