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3. O CHEIRO DO RALO.

3.6 A caricatura como procedimento

As linhas carregadas em um desenho como procedimento estético, assim como o uso desses desenhos carregados para se criar críticas à sociedade são características comuns à caricatura, ou charge. O termo, como se nota, possui duas determinações específicas, charge e caricatura, as quais possuem dois locais de origem distintos. Segundo, CRUZ (2010), “As origens remotas da caricatura podem ser encontradas desde a pré-história, onde há registros de desenhos com intenção satírica.”, contudo, é do italiano que surge o termo caracaturas, derivado dos desenhos de faces, assim como o verbo caricare, o qual significa carregar, acentuar, ou seja, mais próximo da essência do que é a caricatura como estética.

Já na Inglaterra, o termo deriva etimologicamente do verbo “to charge”, com os significados de atacar e enfatizar. Srbek (2005) destaca a importância do papel da charge na criação das gravuras tipográficas e, posteriormente, no desenvolvimento das narrativas gráficas conhecidas como quadrinhos.

Portanto, a invenção do que hoje chamamos de “charge” (imagens cômicas de intenção política e caráter jornalístico), feita por artistas

175 revolucionários como Hogarth, e a disseminação do estilo caricatural (que se caracteriza por distorções, hipérboles e hibridismos visuais de apelo cômico), consagrado pelo talento de artistas como Gillray, foram fatores decisivos para a popularização das gravuras e mais tarde das publicações ilustradas, que, por sua vez, foram laboratórios nos quais se ensaiou o surgimento dos quadrinhos (SRBEK, 2005, p.21)

O gênero, portanto, apesar de dever muito às caracaturas italianas, para Srbek encontra seus dois primeiros mestres nas figuras de Hogarth e Gillray, na Inglaterra, mas deve-se adicionar aos apontamentos de Srbek também a figura proeminente de Daumier na França, cujas gravuras influenciaram em muito o pensamento de Baudelarie sobre a caricatura, pois é tendo em mente as gravuras de Daumier que Baudelaire (1998) classifica a caricatura como um estilo de composição, mais do que como um gênero próprio, a qual está presente não apenas em desenhos, mas em outras artes plásticas, como a pintura. Ao se conceber a caricatura como uma estética de composição, pode-se também pensar em seus usos em outras formas de arte, como a literatura e o cinema.

Ainda de acordo com os escritos de Baudelaire, há uma forte interligação entre a caricatura e o grotesco na hierarquia do cômico, pois, para o poeta, o grotesco é uma parte essencial do que ele concebeu como cômico absoluto. Ele afirma que o grotesco está acima da comédia de costumes, a qual seria uma caricatura básica, porque o riso grotesco para ele “é a expressão da ideia de superioridade, não mais do homem sobre o homem, mas do homem sobre a natureza” (BAUDELAIRE 1998, p21).

Nesse sentido, a obra de Lourenço Mutarelli apresenta algo dessa caricaturarização e, também, da estética do grotesco que compõe o cômico absoluto. Isto pode ser percebido em seus trabalhos mais agressivos, aqueles em que se nota uma maior crítica à condição humana na sociedade moderna.

Obras como “Three Blind Mice” (MUTARELLI, 1998), apresentam os elementos mais fortes dessa estética do cômico absoluto, dado que esta narrativa presente no livro Sequelas (1998) conta a história de três cegos ratos humanoides, cada um com um órgão humano diferente anexado em suas costas (olho, nariz, orelha), que estão sendo caçados pela mulher do fazendeiro. A história é escrita simultaneamente em inglês e português e parodia uma história infantil permeando-a com um forte senso de violência e desespero.

Tal elemento temático, como apontado por Líber Paz (2008), é recuperado na narrativa Diomedes (2012), na qual o detetive homônimo encontra um rato com uma

176 orelha humana em seu escritório e fica extremamente enojado. No entanto, essa recorrência é realizada mais brandamente em Diomedes e perde o seu caráter agressivo, mais virulento, próprio do cômico absoluto.

Esta característica estética é mais forte e explícita nos primeiros trabalhos do autor e podem ser percebidas em Transubstanciação (1998), álbum no qual há uma forte semelhança com as caricaturas de Goya, em especial com Ya van deplumados. Outro exemplo visível está nos romances gráficos Desgraçados (1993) e A confluência da Forquilha, nos quais além da mistura corporal entre animal, humano e vegetal, há ainda a fusão do corpo humano com plástico e metal em próteses que poderiam ser compreendidas como um pós-grotesco, no qual a natureza é substituída pela máquina e pelo mundo de plástico da contemporaneidade.

Não é surpreendente, portanto, que as caracaturas tenham surgido na Itália primeiramente como retratos satíricos individuais dos aristocratas e da nova burguesia, desenhadas no ateliê da família Carraci, as quais evidenciavam deformações singulares de modo a enfatizar o ataque social. Essa técnica é recuperada pelo romance de Lourenço Mutarelli ao transformar a deformidade da parte na deformidade do todo, visto que a bunda se torna a mulher, o chapéu se torna o homem, a mônada se torna o sistema.

É por isso que na estética de Lourenço Mutarelli pode-se ver que o riso é um produto da absurda existência humana e do patético do cotidiano frente a uma sociedade de consumo. Aqui há uma relação importante com a concepção de Baudelarie, visto que o poeta ao conceber o cômico absoluto como um conceito, tinha em mente o homem da metrópole, o ser humano como um produto de um gigantesco centro urbano, pois apenas nestas sociedades metropolitanas se encontra o material exato de perversão e corrupção. Esta é a caricatura presente em O cheiro do ralo, porque é por meio da estética caricata que se desenvolve a narração de um indivíduo perverso e corrupto de um grande centro urbano, um indivíduo que, durante a leitura, também nos corrompe com o riso.

O grotesco, no entanto, não é estabelecido dentro do romance de forma explícita, dado que o mesmo pode ser percebido nas comparações da boca do sapo com a boca da mulher casada, mas a caricatura em sua maximização não é grotesca no sentido de fusão corporal, ao contrário, a caricatura base do romance em questão se dá por meio da caracterização e descrição da personagem Bunda, pois a parte homônima do corpo da

177 personagem é vista como autônoma pelo narrador, o que faz com que a personagem em si seja descrita pela parte de seu corpo e não por si mesma.

Ela vira. Essa é aquela calça que ela usou certo dia. A calça que desenha e modela, com extrema precisão, cada detalhe. Cada saliência e reentrância, num esplendor magnífico só capaz de existir nessa terceira dimensão. Sua bunda é imensa. Sua bunda é redonda e farta. E parece ainda maior em vista da fina cintura. (MUTARELLI, 2011, p.169)

E nessa descrição percebe-se que sua bunda é disforme e exagerada, carregada de carne, enquanto a face melancólica da mulher que a possui cessa de existir para o narrador quando este se defronta com a bunda. É como se a bunda, para este, possuísse vida própria, fosse ela mesma um corpo à parte, ou mais propriamente, uma fusão de duas entidades autônomas, como gêmeos siameses, sendo a bunda a única entidade de interesse para o narrador.

Percebe-se aqui que isto aproxima a estética de Mutarelli das caricaturas em forma de retrato desfigurado, pois nestas os detalhes, ou seja, as partes, sobrepõe-se ao todo, destacam-se no desenho de forma a criar um novo todo. Do mesmo modo, a bunda deixa de ser apenas uma parte e se torna, pelo destaque dado a ela pelo narrador, um outro ser, ganhando a evidência da caricatura do retrato, sobrepondo-se à mulher que a carrega.

É por meio da estética caricata que Mutarelli explora a deformidade humana, evidenciando na pele, ou seja, na aparência externa, os demônios que são escondidos pelas máscaras sociais. O traço caricato, assim como o uso da caricatura na literatura trazem à tona as barbaridades da civilização e por meio delas provocam o riso tão destacado por Baudelaire. O riso da caricatura é devastador, pois é o riso de nós sobre nós mesmos, e o riso da obra mutarelliana é o riso daquela “caricatura bem atraente para nós, densa de fel e rancor, como sabe fazê-las uma civilização perspicaz e enfadada” (BAUDELAIRE, 1998, p.13).

A caricatura é uma arte que causa o riso por meio da perversão, da desconsagração e não uma desconsagração gratuita, mas aquela que é o produto da bile e do rancor moldado e aquecido no ambiente urbano, a bile e o ódio de uma sociedade na qual “[t]udo o que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.” (MARX e ENGELS, 2012, s/p. Versão Kindle).

178 De qualquer modo, além da manipulação da realidade operada pelo narrador em sua criação das ilusões fetichistas de salvação, a bunda revela mais acerca do narrador do que sobre si mesma ao ser narrada, simplesmente por ser o foco do desejo e da atenção deste narrador, pois a bunda representa o sexo sem o risco de aprisionamento familiar, já que ela é não reprodutiva, estando completamente desconectada dos aspectos de procriação que levariam ao advento de um possível círculo familiar. A bunda representa o sexo por si próprio, o sexo por prazer, e a escatologia a que pode ser associada apenas reforça sua forma orgânica transgressora.

É importante lembrar que, para além da liberdade individual encontrada pelo narrador na objetificação da bunda sexualmente, há no Brasil um longo histórico de opressão escravagista marcado pelo abuso de mulheres negras, escravas, por senhores brancos que realizavam o sexo anal como forma de se evitar que estas ficassem grávidas, portanto, para além do fetiche erótico, a bunda feminina também está associada a uma herança de dominação da mulher pelo homem e principalmente, das mulheres negras por homens brancos.

Uma herança que se associa a uma forte imagologia que rodeia as nádegas femininas no Brasil e que se estende à imagem da mulher brasileira para os estrangeiros, afinal, a sociedade transforma o corpo feminino em mercadoria e vende a sua imagem estereotipada por meio das partes corporais eróticas. Esta fetichização é visível na enorme exposição midiática da televisão brasileira, pois em qualquer canal desta se verifica, em programas de auditório, a presença de “chacretes”, “hulketes”, “paniquetes”, “tiazinhas”, etc., todas tendo suas bundas exibidas em enormes close-ups.

Além da exposição do corpo feminino na sociedade brasileira, nota-se que o narrador do romance se apresenta como um exemplar do brasileiro médio, pertencente a uma classe média abastada, letrada, arrogante e preconceituosa, porque todos os que ele encontra e que estão em uma situação abaixo da sua financeiramente, ou que prestam algum tipo de serviço a ele devem ser humilhados e lembrados de que são inferiores, de que são serviçais.

O narrador age dessa maneira com os encanadores que contrata, com a sua secretaria e segurança da loja, por isso é que o riso do leitor, provocado pela exploração dos pobres e fracos pelo narrador, causa um sentimento misto derivado de comicidade e estranhamento.

Da mesma forma, ri-se de sua paixão pela bunda, pois tal paixão inusitada e absurda é completamente cômica, assim como é risível a impossibilidade do narrador de

179 se conectar a outros seres humanos, sua falta de empatia e sua loucura, mas o que é absolutamente cômico, para citar Baudelaire, no que tange à caricatura ácida, é que esta risada é o riso do patético sobre si mesmo, porque ao rir do narrador, o leitor ri de si próprio, visto que o narrador é o estereotípico brasileiro médio.

O maior sucesso do livro, contudo, não é o fato de rirmos de nós mesmos, ou de replicar com acurácia e crueldade de descrição nossa sociedade, mas de transpor o desejo de consumo para sua estrutura, porque, como o livro é escrito em sentenças curtas, como cortes cinematográficos de um filme frenético, interligando cenas distintas e diálogos rápidos, assim como inserindo trilha sonora na forma de paródias humorizadas, ele se torna um texto que está pronto para ser lido por uma sociedade bombardeada visualmente em seu cotidiano, ele se torna consumível por leitores que trocam os livros pela narrativa visual e o faz sem perder sua qualidade literária, pelo contrário, ele a enriquece visualmente e explora o texto como uma imagem a ser exibida. É uma questão de devoração das novas estruturas, de forma a se adaptar aos novos leitores, o romance se reinventa em novas formas. Pode-se pensar no termo em inglês novel, o qual, além de significar romance, também possui o significado de novo, e o romance de Mutarelli apresenta fortemente essa característica de inovação e, justamente por isso, ele renova a forma do romance brasileiro contemporâneo.

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