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4. A ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA

4.2 Os ex-votos como um elemento sinedóquico e metonímico.

A editora Companhia das Letras69 contratou Kiko Farcas e Mateus Valadares do Máquina Estúdio70 para criar o design gráfico do romance. Os designers, portanto, também merecem crédito pela significação visual que é um efeito da diagramação do material físico em questão, o livro.

No romance, os métodos de significação gráfica começam com a produção da capa, pois ela é o invólucro da narrativa e, por ser um invólucro, sua abertura, seu primeiro sinal, ela pode ser vista, ao primeiro contato, como um ícone e, após a narrativa ser lida, em paralelo com esta, a capa se tornaria um índice. (PEIRCE, 2000), pois no primeiro momento ela prenuncia a loucura de Júnior, anunciando-a e, após o contato do leitor com a história, ela se torna uma metáfora gráfica desta loucura, como se fosse, o próprio livro, os cadernos gráficos criados pela obsessão do personagem.

69Disponível em: < http://www.companhiadasletras.com.br/> 70Disponível em: < http://www.kikofarkas.com.br/>

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196 Para Rafael Martins (2014), o ícone é um elemento de composição no aspecto visual de A arte de produzir efeito sem causa, porque, segundo ele, o aspecto icônico dos diagramas que Júnior cria em sua obsessão, por uma decifração da frase misteriosa que o atormenta, incorporam o enigma da narrativa em sua própria forma. Para ele, o ícone une forma e conteúdo dentro da narrativa: “Os diagramas seriam, desta forma, um ícone do processo significante, no qual símbolos e elementos não verbais rodeiam a necessidade de decifrar a frase viral.” (MARTINS, 2014, p. 138-139).

Mas interessa aqui apontar que em A arte de produzir efeito sem causa a primeira decifração de Júnior frente ao mistério da carta ocorre diante da dificuldade de entender o significado linguístico da escrita em inglês, pois a primeira barreira que o personagem encontra no processo de decodificação é a necessária tradução linguística.

A tradução só aumenta a dor de cabeça. Que diabos seria Wm? Nem o dicionário sabe. Que raio de pistola é essa que o assassino herdou? (...) Procura refinar a tradução.

Porque alguém lhe mandaria essas coisas? Quem? Herdeiro de quê? O que é uma partida de Wm? (MUTARELLI, 2008, p. 44)

Frente à dificuldade da tradução linguística, o protagonista passa a tratar o enigma de uma outra perspectiva, por isso, após a tradução da matéria jornalística por uma amiga de Bruna, o personagem afirma que esta frase não é necessariamente uma charada cuja significação semântica possa ser compreendida pela tradução entre as línguas apenas, mas um enigma pessoal, privado, que só pode ser compreendido por ele mesmo.

Quanto à frase do jornal, no fundo, Júnior sente que toda essa descoberta de nada serviu. Para ele a frase continua sendo um mistério sem solução. Cada vez mais, tem a certeza de que a tal frase só fará sentido para ele. Há algo de particular nessa frase. Sua compreensão não é semântica, é abstrata. Quando enfim ele conseguir decifrar. (MUTARELLI, 2008, p. 123)

Essa tentativa de tradução da frase para a compreensão de um significado pessoal e abstrato resulta na transposição do significado alfabético para a construção do ideograma gráfico. Isso se expande para um desenfrear gráfico, no qual os significados textuais vão sendo cada vez mais expandidos frente ao horizonte do visível, pois a letra vai perdendo sua significação como palavra, mas expande-se como imagem.

197 Percebe-se que o ícone é, em seu caráter ideogramático, uma composição que transita entre a sinédoque e a metonímia. Isto pode ser percebido pela forma como os diagramas no romance são utilizados como ícones da desestabilização mental de Júnior, assim como paralelamente representam visualmente o poder icônico da frase misteriosa que se repete por todo o romance, a qual cessa de existir somente como palavra escrita e se torna o ícone em si, dessa forma, como representação da loucura, os ideogramas apresentam tanto a característica de efeito pela causa, quanto de parte pelo todo.

A sinédoque é parte da estética de Lourenço Mutarelli, como já foi dito na análise do romance O cheiro do ralo (2010), pela leitura das figuras do olho, do ralo e da bunda e, do mesmo modo, em A arte de produzir efeito sem causa, além dos ideogramas, outro elemento de caráter duplo entre a sinédoque e a metonímia relacionado à possessão também surge na narrativa, eles se expressam na imagem dos ex-votos.

Os ex-votos são um ritual católico que representa uma transação entre um ser divino e um ser mortal, no qual um santo ou anjo, ou outra figura menor serve como intermediário entre Deus e o pedido mortal. Nesse ritual, o mortal pede uma graça ou um milagre para si ou para outrem e paga um tributo que representa a experiência da cura. Entre as representações escolhidas como pagamento se encontram pinturas encomendadas aos artistas que recriavam a cena do momento da cura, fotografias do beneficiado pelo milagre ou mesmo o uso de próteses ou réplicas de cera que se referem à parte do corpo curada pela graça divina.

Todos esses artefatos são depositados como oferendas, como um tributo no altar do santo ou da figura divina que advogou a causa do fiel com a providência divina, dessa forma, os artefatos simbolizam o processo ritualístico da interferência miraculosa e se tornam prova do poder do intermediário. Como dito por Oscar D'Ambrósio:

Uma visita à Sala dos Milagres de Aparecida impressiona. Os devotos deixam todo tipo de objeto. É possível encontrar, lá, partes do corpo humano moldadas em cera, chumaços de cabelo, vestidos de casamento, fardas militares e camisetas de jogadores de futebol. Esses objetos constituem a galeria de ex-votos, expressão oriunda do latim que significa agradecimento a uma graça recebida. "É uma transação com o sobrenatural, que tem suas origens em objetos sumerianos datados de 3 mil a.C.", diz o crítico de arte João Spinelli, do Instituto de Artes da UNESP, campus de São Paulo. (D’AMBROSIO, 2001, s/p)

198 Como se vê, a prática dos ex-votos é, originalmente, um ritual profano, o qual, como muitos outros, foi absorvido pela religião católica de modo a converter mais facilmente os pagãos à religião. Embora os ex-votos sejam simbolizados por uma transação material, na qual o fiel paga o testemunho do poder divino com um objeto de fé, há outras formas de transação adotadas pela prática católica. A abstinência de algo que se gosta é um exemplo mais comum de transação, ou de moeda, com a qual se paga para receber uma graça, pedida por meio de promessas ou intenções, assim como as penitências realizadas pelo católico servem para pagar uma dívida com o divino e isto se repete nas peregrinações a locais sagrados tanto como penitência, quanto como pagamento de promessa.

Todavia, há algo de singular no conceito dos ex-votos que tornaram a prática extremamente popular no Brasil, pois introduzidos pelos católicos portugueses, eles foram rapidamente adaptados à cultura local e transformados de acordo com as necessidades específicas da sociedade colonial, principalmente em Angra dos Reis:

Dessa forma, embora não deixem de ser encontrados até na Suíça, são, ao contrário, os ex-votos pintados “anatômicos” que parecem constituir a originalidade de Angra e que sugerem que o sentimento espiritualizado, buscado pela Reforma católica, não chegou a enraizar- se ali, conservando-se a prática votiva muito próxima de milenares atitudes mágicas. (NEVES, 2009, s/p.)

Como se percebe no comentário de Neves, apesar da tentativa da Igreja de remodelar o rito dos ex-votos, no Brasil, essa mudança não vingou, guardando em si os aspectos milenares da iconização do corpo humano como prova do milagre, uma forma mais próxima, nas réplicas de cera e de madeira, de sua origem pagã do que a pintura, mais abstrata.

Hoje a representação mais utilizada para o rito ex-votivo é a fotografia. Um dos motivos disso é que a população considera que a fotografia possui maior proximidade ao real, logo ela seria uma prova factual do milagre, mas mesmo com o sucesso das fotografias, as peças em cera ainda são comuns na prática do rito e tomam conta dos altares. Em Aparecida, por exemplo, o olhar do visitante vai com certeza se focar nas peças de cera e prótese, pois estas chamam muito mais a atenção do que as fotografias. As peças de cera são interessantes porque elas representam o fiel não em um todo, mas pela parte de seu corpo, desse modo, por meio da sinédoque, a parte ganha o valor do