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2. A CAIXA DE AREIA OU EU ERA DOIS EM MEU QUINTAL

2.1 O romance gráfico e a interestruturalidade

79 O romance gráfico A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal foi publicado em 2005 e apresenta o retorno de Lourenço Mutarelli à produção de narrativas gráficas, pois este havia realizado uma pausa de cinco anos na escrita e desenho de quadrinhos após a produção de seu último trabalho publicado em 2000, A soma de tudo parte 2, narrativa que encerra a coletânea de romances gráficos conhecida como a trilogia de quatro, ou a trilogia do acidente. Embora a obra Mundo Pet tenha sido publicada em 2004, as histórias nela contidas já haviam sido criadas e divulgadas previamente entre os anos de 1998 e 2000 dentro do extinto website Cybercomix.

Essa pausa de cinco anos na produção de quadrinhos torna ainda mais interessante a presença desse romance gráfico como corpus desta tese, porque durante esta pausa o autor dedicou-se a produzir exclusivamente obras escritas, dentre as quais se destacam os romances O cheiro do ralo, publicado em 2002, Natimorto e Jesus Kid, ambos de 2004. Portanto, percebe-se que nesse período houve uma dedicação maior à escrita do que ao desenho, um período no qual o autor de quadrinhos se redescobre como romancista. É dessa maneira que Líber Paz destaca a escolha do formato do romance gráfico de 2005 como importante e, em grande medida, derivada da experiência do autor como novo romancista:

A aproximação de A caixa de areia com a literatura começa pelo formato da publicação: 14 x 21cm. O interior, em sua maioria, foi impresso em papel pólen, em preto e branco (exceção feita às páginas do prólogo e às duas últimas páginas). Essas características foram escolhas deliberadas do autor (MUTARELLI, 2007a) e buscam intencionalmente remeter ao formato básico dos livros de romances literários. (PAZ, 2008, p. 183).

Assim, um primeiro elemento de diálogo com a literatura é iniciado com a escolha do veículo da narrativa gráfica, visto que o romance gráfico A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal é apresentado aos leitores deliberadamente no invólucro do romance escrito. Nesse sentido, pode-se considerar esta escolha estilística de apresentação como uma forma de

interestruturalização, mais especificamente, como uma interestruturalização de formato

ou interestruturalização de veículo.

Nessa perspectiva incluem-se obras que se apresentam ao leitor/espectador de uma forma que recupera a estrutura visual e material de outra mídia, formato, ou gênero, algo que é feito pelo romance gráfico A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal, pois, em vez de utilizar os tradicionais formatos dos álbuns de quadrinhos europeus, ou mesmo o formato usual dos romances gráficos norte-americanos, Mutarelli desvencilha-se dessas medidas de formatos e incorpora em sua narrativa a formados romances de bolso ao adotar um suporte

80 que seja extremamente correlato, homólogo, dado o material escolhido e as dimensões do mesmo.

Esse formato, então, reúne tanto um valor estrutural quanto um valor superestrutural, estrutural no modo como converte a sua forma física em uma estrutura precedente no mercado para outro gênero e superestrutural, pois, ao converter-se fisicamente, apresenta esta conversão como um produto ideológico de uma escrita que está em tensão entre a literatura e a narração gráfica.

No caso específico da interestruturalização de formato presente em A caixa de areia ou eu era dois em meu quintal, a mudança para o formato literário pode ser vista principalmente como um experimento formal. Isto pode ser afirmado porque o público do quadrinista já o concebia, previamente, como um autor de romances gráficos autorais, de obras não massivas e não mercadológicas, ou, mais especificamente, no caso de Mutarelli, como um quadrinista underground, o que para a maioria do público é sinônimo de valor literário, de valor artístico.

No entanto, não se pode descartar a possibilidade de que há um reforço ideológico da literariedade do romance gráfico em questão, principalmente porque o autor não mais se apresentava somente como um quadrinista (uma arte que ainda sofre preconceito literário pela crítica), mas agora como um romancista de renome, cujas obras estavam sendo adaptadas para o cinema, logo, não era mais “apenas” um quadrinista produzindo um quadrinho, mas um romancista produzindo um romance gráfico que possui o mesmo valor literário que seus romances adaptados.

Problemas de ideologia de mercado à parte, esta narrativa gráfica apresenta uma composição diagramática surpreendente, a qual se relaciona com a narrativa cinematográfica na disposição das vinhetas na página. Isso ocorre porque no cinema as imagens são dispostas em painéis singulares que se sobrepõem na tela, enquanto nos quadrinhos várias imagens são dispostas em diversas vinhetas dentro da página, compondo uma narrativa que se organiza como um mosaico espacial e não como uma sequência alternada.

Schøllhammer (2007) levanta uma questão importante acerca da presença da imagem na literatura contemporânea: “Como ler literatura hoje sem levar em conta o predomínio da cultura da imagem?”. Isto, em se tratando de quadrinhos já está respondido, afinal, as narrativas gráficas são, predominantemente, gráficas, mas no que tange à exibição visual em si própria, remete às diferenças importantes entre as diversas artes gráficas: filmes, fotografias, pinturas, esculturas, desenhos, etc. Mutarelli, por exemplo, afirma em uma

81 entrevista que seu processo criativo é fortemente permeado pelo olhar da câmera cinematográfica:35

Nos quadrinhos existe um movimento inato, o movimento é construído com a seqüência e gosto mais desse tipo de interatividade. [...] Faço a estrutura, o enquadramento de minhas histórias, pensando nos ângulos, nos tempos, na direção da câmera em cada cena, como é feito no cinema. (2008)

Tendo isto em mente, se levarmos as palavras do autor seriamente, fica claro que a imagem, ou que a visualidade cinematográfica, mais especificamente, é parte integral da composição das narrativas gráficas de Lourenço Mutarelli, porém não há dúvidas de que esta afirmação levanta outro problema, pois a estética mencionada acima por Mutarelli como cinematográfica é bem próxima da criação do storyboard cinematográfico, contudo, o próprio storyboard é, em grande parte, similar à estrutura das narrativas gráficas e, provavelmente, deve algo de sua forma a elas.

O termo mais apropriado neste caso, para uma aproximação entre a obra quadrinística e o cinema, não se ligaria propriamente à visualidade, mas ao fluxo narrativo, ou ao ritmo imposto na sequência narrativa visual pela proximidade do corte narrativo entre painéis e do corte narrativo entre tomadas. Desse modo, pode-se pensar que A arte de produzir efeito sem causa cria um flerte com o ritmo do cinema antigo em preto e branco, mais lento, e não necessariamente com o cinema atual, muito mais veloz em seus cortes narrativos.

A diferença de velocidade entre o cinema em preto e branco e o cinema contemporâneo se dá, primeiramente, no nível técnico, pois as câmeras iniciais detinham uma velocidade de captação de fotogramas por segundo muito inferior ao que hoje é possível. Percebe-se essa diferença na comparação das câmeras utilizadas por Chaplin, as quais gravavam entre 16 e 18 fotogramas por segundo, enquanto hoje já se utilizam filmadoras que captam até 48 fotogramas por segundo, como se vê na trilogia de Peter Jackson adaptando o livro O Hobbit (1937) de Tolkien.

Além dos fotogramas, contudo, deve-se citar ainda a diferença gritante da montagem, pois esta, de manual passa a ser digital na contemporaneidade, o que estabelece um controle muito maior sobre a estreiteza desse corte entre os fotogramas e isto, somado ao fato do cinema contemporâneo possuir a mixagem sonora, torna-o ainda mais veloz em sua composição, pois o cinema em preto e branco, por ser mudo, precisava intermediar as cenas

35 Entrevista de Mutarelli para a revista Ide, Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0101- 31062008000200026&script=sci_arttext

82 com trechos explicativos em texto, o que evidentemente diminuía o ritmo narrativo, criando uma suspensão da ação que deixava de ser apresentada visualmente na imagem e passava a ser lida pelo telespectador no texto narracional.

Contudo, essa especificação de ritmo no cinema está se embasando na disposição do corte cinematográfico, cada vez mais agudo nas narrativas comerciais hollywoodianas e obviamente, deixa-se de lado desta caracterização de ritmo veloz os filmes autorais que propositalmente buscam romper com essa velocidade, como o cineasta português Manoel de Oliveira, conhecido pelo uso do plano sequencia longo em seus filmes, criando, dessa maneira, uma estética da estaticização da imagem.