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As implicações dessa nova visão na Autonomia Privada

Como visto nas linhas precedentes, a grande transformação foi a mudança paradigmática, visando sempre o lado coletivo das relações, chamada atualmente de Autonomia Privada, a qual teve sua origem, basicamente, em dois institutos: o contrato e a propriedade.

Neste sentido, falando da relação intrínseca da Autonomia Privada com a Propriedade, Ana Prata assim se pronúncia:

A autonomia privada ou liberdade negocial traduz-se pois no poder reconhecido pela ordem jurídica ao homem, previa e necessariamente qualificado como sujeito jurídico, de jurisdicizar a sua atividade (designadamente, a sua actividade econômica), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos efeitos.43

Desta forma, Ana Prata entende que a autonomia privada tem o sentido de poder criar normas negociais. Mas, acrescenta que não designa toda a liberdade mas, apenas, a liberdade com aspecto negocial; constitui instrumento de atuação/concretização de tutela/defesa de interesses privados. Inclusive, a mesma autora aduz que o direito objetivo é elemento interno e estrutural do poder jurídico da vontade (direito subjetivo) e é, simultaneamente, seu limite externo, obstáculo intransponível à manifestação de vontade fora das tipificações definidas no ordenamento44.

Segundo Denis Franco Silva, a ideia da autonomia privada clássica derivaria da autonomia moral tão desenvolvida e estudada por Immanuel Kant, “no cerne da qual se encontra a afirmativa de que a moralidade, em si, se centra em uma lei que os seres humanos

43 PRATA, ANA. A tutela Constitucional da Autonomia Privada. Coimbra, Livraria Almedina, 1982, p. 7-11. 44Op Cit., p. 7-25.

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impõe, a si próprios, necessariamente se proporcionando, ao fazê-lo, motivos para obedecê-la, afastando-se concepções deterministas de caráter natural ou teológico.”45

Pietro Pelingieri critica o termo Autonomia Privada, pois, segundo o autor, o atributo “privada” poderia gerar sérios equívocos46, propondo o conceito de “autonomia (não

privada ou contratual, porém) negocial, mais aderente à dinâmica das hodiernas relações jurídicas, podendo descrever referido conceito como o poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento ao sujeito de direito público ou privado de regular com próprias manifestações de vontade, interesses privados ou públicos, ainda que não necessariamente próprios”47.

Luigi Ferri posiciona-se no sentido de que Autonomia Privada seria um poder normativo concedido ao indivíduo para a consecução de fins privados, no seu âmbito de validade e capacidade48.

Importante ressaltar que esse mesmo autor, de maneira peculiar, no estudo da autonomia privada, propõe antes um estudo sobre a norma jurídica, para concluir pelo poder normativo que a autonomia das relações privadas exerce.

Desta forma, a limitação dessa autonomia das relações negociais privadas tem como fonte as normas legais que devem ser obedecidas para o exercício do chamado poder normativo de forma individual, o qual é dirigido à criação de normas decorrentes dessa autonomia.

O exercício da autonomia privada, portanto, é a manifestação de vontade, num sentido lato.

E, conforme nos lembra Giovanni Ettore Nanni na obra Direito Civil Constitucional – Cadernos 1, sobre a Autonomia Privada sobre o próprio corpo, a autonomia privada existe em qualquer objeto, patrimonial ou não, que não ocorra restrição legal,

45 MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 135.

46 Isso porque, segundo o autor, o comportamento de um ente publico que decida agir e contratar com ente privado, também configura a realização da autonomia. Cf. PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Bras, 2008, p. 336.

47 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Bras, 2008, p. 338. 48 FERRI, Luigi. La autonomia privada. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1969, p. 112.

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manifestando-se também nos direitos da personalidade, direito ao próprio corpo, intimidade, imagem, dentre outros.

De forma elucidativa, Luigi Ferri comenta que a autonomia privada não é um poder absoluto e soberano. Deve sim, atender as limitações impostas pela lei, que é a fonte de validade das relações negociais.

Segue ponderando que o ordenamento jurídico não fundamenta os direitos subjetivos, simplesmente os reconhece como tutela49 sendo que os ordenamentos jurídicos positivos têm normas particulares que conferem aos sujeitos privados o poder de concluir negócios jurídicos, sendo o fundamento destas normas a validade destes negócios.

Assevera que o poder, no campo jurídico, é sempre um poder normativo e não pode se manifestar senão por meio de criações normativas, já que a atividade da norma não consiste em exercício de poder, sendo o direito, expressão da vontade geral 50.

É de seu estudo: “los negocios juridicos, em el ambito de la autonomia privada manifestan una voluntad (normativa) sometida o subordinada a las nomas emanadas por fuentes superiores y, por conseguiente, no originaria o soberana”51.

O mesmo autor, citando a conceituação de Santi Romano, assevera que a autonomia é o poder de criar um ordenamento para si próprio (autonomia diferente de heteronomia, que é a imposição de normas)52. A autonomia privada seria, na sua visão, o único poder que existe no campo privado, com características próprias que a distingue do direito público.

Enquanto no direito público há uma limitação positiva, já que os fins estão previamente determinados, onde os atos devem adequar-se às previsões normativas53, nos limites da atividade privada autônoma não há esta limitação, mas um caráter negativo54.

49 FERRI, Luigi. La autonomia privada. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1969, p. 115. 50 Op. Cit., p. 144.

51 Op. Cit., p. 121. 52 Op. Cit., p. 333/334. 53 Op. Cit., p. 349. 54 Op. Cit., p. 351.

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Luigi Ferri assinala que os limites da autonomia privada não são deveres, mas sim capacidades e, respeitar a esfera desses poderes significa condição de validade do ato. Contudo, há situações em que se verifica a limitação da autonomia privada que é imposta pela própria situação e guiado pela moral, sendo que a principal diferença entre autonomia privada e direito público reside na persecução do interesse público.

A autonomia privada é, portanto, o poder e a licitude de criar negócios jurídicos dentro dos limites das normas jurídicas. Segundo o Código Civil, os particulares têm liberdade de contratar, ou seja, tem autonomia para regular seus interesses, mas este poder não é absoluto, limita-se às normas jurídicas.

A possibilidade de se estabelecer uma noção ampla de liberdade e de equilíbrio implicou na necessidade de introduzir características de ordens pré-liberais calcadas na cooperação, participação e responsabilidade.

Nas palavras de Antônio Menezes de Cordeiro:

Nesta base, o assumir as críticas ao direito subjectivo liberal é aceitar a necessidade de, no seu nível significativo-ideológico, complementar a máxima da liberdade com os elementos necessários à sua materialização equitativa. O que implica, simplesmente, isto:introduzir, no próprio direito subjectivo, os elementos que, a nível macro-jurídicos, têm vindo a colorir as ordens jurídicas pós-liberais: igualdade e consideração social. Esta linha, seguida mais ou menos explicitamente por vários autores do pós-guerra, acrescentou (23), ao nível significativo ideológico do direito subjectivo, centrado na liberdade, por exemplo, a cooperação (24), a participação e a responsabilidade (25) ou a existência de deveres imanentes (26), de que a ch. função social é exemplo, pouco explorado, na prática55.

Aos poucos, a ideia de que os direitos subjetivos eram relativos, diante dessa nova ordem social, foi ganhando espaço, de tal forma que começaram a impor-lhe limitações em nome do interesse coletivo, da ordem pública e dos bons costumes.

A constituição traz limites para o agente do negócio jurídico. O princípio da autonomia privada atua em conjunto com os princípios constitucionais. Os princípios e direitos constitucionais norteiam a autonomia privada, criando limitações, direcionando a eficácia do negocio jurídico realizado.

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Colhe-se de Denis Franco Silva, no artigo “O princípio da Autonomia: da Invenção à Reconstrução”, que:

Certos valores consagrados constitucionalmente, como a dignidade da pessoa humana (art. 3º, I) e até mesmo a previsão de uma regra geral de liberdade (art. 2º, II) permitem apontar a autonomia privada como um valor fundante. Por outro lado, na concretização deste valor detecta-se, atualmente, uma tendência descrita como socializante, nitidamente identificável não apenas no plano constitucional (com a previsão de direitos sociais, no art. 6º, da proteção ao consumidor, no art. 5º, XXXII e principalmente, do valor social do trabalho como um dos fundamentos da República, em seu art. 1º, IV), mas também na própria estrutura de regulação da atividade privada consagrada no Código Civil de 2002.56

A autonomia da vontade, individualmente analisada no Estado Liberal, passa a ser vista com respaldo nos valores éticos e sociais, razão pela qual alguns autores a denominam, hodiernamente, de autonomia privada, consistente na integração de vontades individuais e liberdades coexistentes, exercidas em determinado ambiente social57.

Com a mudança do foco patrimonial para a pessoa, dando efetividade à igualdade entre elas, os Códigos deixaram de ser capazes de acompanhar o dinamismo e anseios da população, iniciando-se um novo processo58.

E foi através das leis especiais que o fenômeno da socialização do direito passou a ser inserido no ordenamento diante da necessidade de editar leis no ritmo da nova realidade social, inaugurando os chamados microssistemas normativos59 que, posteriormente, passou a ser um polissistema, diante da quantidade de leis, permitindo ao legislador acompanhar a dinâmica da sociedade.

56 MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 150

57 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. Vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 513.

58 Este processo de fragmentação do sistema foi chamado por Natalino Irti de “era da descodificação”, vislumbrando o chamado polissistema, onde existiriam universos isolados. In L’etàdelladecodificazione, Milano, Giuffré, 1976, p. 9 e ss.;Entendimento do qual perfilha Gustavo Tepedino. mas no sentido da existência de um direito fragmentado, com os microssistemas, reconhecendo que, embora o sistema esteja setorizado, “é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil”, in Temas de Direito Civil.p. 11/13,.

59Essa expressão “microssistemas normativos” foi criada por Natalino Irti, no livro L Età dela Decodificazione. Diritto e Ciertà, p. 629.

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Os microssistemas são leis especiais se comparados com o Código Civil e devem ser sempre aplicados. No entanto, diante das lacunas da lei especial, a harmonização entre as normas deve ocorrer pelos métodos de hermenêutica, utilizando-se da analogia, dos princípios gerais do direito e da equidade.

Tanto o Código de Defesa do Consumidor como a Lei 4.591/64, objetos de estudo deste trabalho, que dispõe sobre as incorporações imobiliárias, são microssistemas. Alguns criticam esse tipo de sistema por serem muitas as leis especiais em vigência60, o que poderia romper com a harmonização e equilíbrio do ordenamento jurídico. Outros entendem que o fato de reconhecer nestes microssistemas a importância de microssistemas normativos, não significa dizer que eles são autossuficientes. Neste sentido, Michele Goirdianni:

La legislazionespeciale, com tutti i suoidifentti e com i cattericheieri sono statiillustrati, puòeclissare parte del códice, ma non certo anullarlo, ancheperché per interptretarlalegislazionespeciale (intendo quellapiúriguarda parti del códice, o perché li abbiamodificati expressamente como novelle, o perché si riferisca ad institutidel códice), ocorre l’ausiliodel códice, cioédegliistitutiche sono disciplinatidal códice61.

Desta forma, diante de todo o estudo apresentado sobre a autonomia privada e as influências que devem ser levadas em conta nos negócios jurídicos atuais, de modo a atingir o bem social máximo, percebemos que essa nova era social instaurada pelo Novo Estado de Direito, fez com que as relações negociais não mais fossem feitas com base naquele velho brocado de que o contrato faz lei entre as partes, mas diante de um novo enfoque de proeminência calcado na boa-fé e na função social.

1.6. A importância dos princípios e cláusulas gerais no ordenamento – A