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1.4 OS PRECEDENTES JUDICIAIS NOS SISTEMAS JURÍDICOS

1.4.2 As influências no Civil law

O sistema civil law ou romano-germânico, caracteriza-se como o resultado do desenvolvimento do Direito Romano, especificamente pela reestruturação do legado deixado pelo Corpus Iuris Civilis. O Direito Romano puro abre as suas estruturas para o ingresso de novas fontes, principalmente as provenientes do Direito Germânico, daí o sistema do civil law ser chamado de romano-germânico.

Destarte, tal sistema é o reflexo do Direito europeu continental, a partir da fusão de elementos pertencentes à cultura românica com outros elementos pertencentes às realidades jurídicas de vários Estados europeus, principalmente os Estados cuja realidade jurídica girava em torno da positivação e codificação das normas.

78

Ibidem, p.77. 79

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Op. Cit., p.134. 80

No civil law, a principal fonte do direito é a lei, porquanto o aludido sistema é baseado em preceitos previamente expressos. Desta forma, a fixação de direitos subjetivos e a imposição de deveres são previstas pelas leis, sendo que nenhum outro instrumento teria amplos poderes para inovar a ordem jurídica.81

Contudo, antes dessa valorização suprema da lei, o Direito em Roma experimentou durante muito tempo a estrutura jurisprudencial, na época dos jurisconsultos. A jurisprudência tinha tanta importância nesse período que as opiniões dos jurisconsultos eram dotadas de força legal.82

Assim, o Direito romano não surgiu com extrema distinção do Direito dos outros povos, posto que era tido como costumeiro e jurisprudencial. Todavia, a necessidade de expansão das fronteiras tornou propício o surgimento dos textos codificados, como forma mais célere de imposição e demonstração de poder.

Essa necessidade de codificação refere-se principalmente à noção de poder e foi realidade em dois momentos históricos: o primeiro, no período da chamada “grande expansão romana”, na Idade Antiga, em que os esforços de Roma eram direcionados à conquista de praticamente toda a Europa e regiões do Norte da África e da Ásia; o segundo período, aquele ocorrido durante a época do renascimento urbano e comercial, a partir da queda da Idade Média e da crescente ordem que se direcionava para a formação de uma sociedade novamente submetida a um poder soberano.

O Direito romano-germânico, devido às expansões marítimas promovidas pelos Estados da Europa continental no século XV, influenciou a formação do Direito de muitos territórios americanos, africanos e asiáticos, locais em que o direito escrito adquiriu força significativa.

Na América Central e Meridional, Espanha e Portugal levaram o seu direito, o que culminou na formação de Universidades de tipo europeu, no século XVI, como no México. Assim, no século XIX, em que pese o processo de independência de Estados na América, as tradições jurídicas das antigas metrópoles foram mantidas, permanecendo o modelo romanista de Direito.83Esse processo também ocorreu no Brasil.

81

SORMANI, Alexandre; SANTANDER, Nelson Luis. Op.cit., p.18. 82

Ibidem, p. 21. 83

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 2. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 206.

A França, por sua vez, tinha conquistado zonas importantes na América do Norte, contudo, perdeu o Canadá em favor da Inglaterra (1763) e vendeu a Luisiana aos Estados Unidos em 1803. Em que pese a realidade do common law nesses locais, duas regiões permanecem ligadas às tradições romano-germânicas: a Província de Quebec, no Canadá e o Estado da Luisiana, nos Estados Unidos.84

Em verdade, pode-se distinguir dois tipos de direitos romanistas fora da Europa: os tipos puramente romanistas (essencialmente civil law) e os tipos mistos, ou seja, aqueles pertencentes aos Estados que sofreram sucessivamente influências do sistema civil law e common law, tais como a África do Sul, Ceilão, Luisiana, Quebec, Filipinas, Porto Rico etc.85

De um modo ou de outro, o modelo romanista tinha nos códigos o centro das regulações jurídicas, sendo que o auge da codificação inserida na realidade romano-germânica, especificamente no Estado francês, ocorreu com a emissão do Código de Napoleão Bonaparte (1804).

O referido código fora estruturado de forma rigorosa e transparente, para não suscitar nenhuma dúvida exegética, trazendo uma inspiração jus-racionalista, que objetivava a formulação de normas imutáveis e dotadas de completude, sem que abrissem margens para lacunas, limitando ao máximo a atuação exegética dos intérpretes do Direito.86

O artigo 5º do Código Civil francês proibia os juízes de decidirem conforme as disposições gerais ou regulatórias. A função exercida pelos magistrados jamais poderia ser considerada como fonte normativa, posto que essa função era exclusivamente exercida pelos integrantes do Poder Legislativo, sendo que a criação de normas através da atividade judicante, poderia ser reputada como abuso da função judicial. Devia-se respeitar o primado clássico construído por Montesquieu de que o juiz nada mais era do que a boca em que a lei era pronunciada.87

Nesse diapasão, Celso de Albuquerque Silva ainda sustenta que:

84 Ibidem, p.206. 85 Ibidem, p. 207. 86

SORMANI, Alexandre; SANTANDER, Nelson Luis. Op.cit., p. 27. 87

[...] O sistema judicial francês rejeita tanto a criação do direito pelo juiz, quanto o instituto do stare decisis. Se aderência das cortes inferiores está relacionada apenas à convicção do acerto do precedente judicial, ou ao receio de que um decisão sua contrária poderá ser (e provavelmente será) reformada pela instância superior, podendo ser o juiz livremente desconsiderar a decisão de uma corte superior se superar essas duas condições, a jurisprudência na França, embora importante, possui apenas uma simples autoridade de razão e não deve ser considerada uma fonte formal do direito.88 Essa característica ficou marcada como principal atributo do sistema do

civil law, em que o legislador ao elaborar as leis escritas, delimitava previamente o

âmbito de interpretação da norma, porquanto possuía legitimidade conferida pela vontade popular.

Segundo Osmar Mendes Paixão Côrtes,

(...) a regra de direito do sistema romano-germânico tem pretensão de regular a sociedade no futuro, de perdurar no tempo, sem a preocupação imediata de resolução de um único caso concreto. Nesse contexto, observa-se que a fonte primária do direito, no sistema romano-germânico, é o direito positivado, que é interpretado e influenciado pelos juristas(...).89

Portanto, nesse contexto não há em que se falar de vinculação de precedentes judiciais. Em verdade, são poucas as exceções em que a teoria dos precedentes judiciais ganhou força e destaque nos ordenamentos jurídicos pautados no civil law, tais como no Direito alemão e no Direito canadense (especificamente na Província de Quebec).

No caso dos exemplos supracitados, na realidade alemã, a Corte Constitucional reconhece que o juiz possui competência para criar direito, estando o judiciário obrigado a desvendar os valores que são imanentes de uma determinada ordem legal fundada na Constituição, mas que não são encontradas em leis escritas.90

Desse modo, diversamente da conclusão que se pode extrair quanto à dinâmica jurisprudencial, situada como segundo plano no rol das fontes do Direito do

88

Ibidem, p. 159. 89

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Op. Cit., p.137. 90

sistema romanista, a experiência histórica alemã permitiu que os julgados do Tribunal Constitucional um dia pudessem ser dotados de força legal.91

Na realidade canadense, estritamente na Província de Quebec, cujo sistema do civil law foi herdado em razão da colonização, a doutrina do stare decisis é aceita em todo seu rigor, nas decisões proferidas pela Suprema Corte Canadense relativas à lides que envolvam o código civil da referida Província, na medida em que os precedentes adquirem efeito obrigatório, sendo considerados enquanto fontes do direito.92

Em que pese a exemplificação supra, observa-se a clara distinção com a

common law, principalmente no que diz respeito à teoria do stare decisis, posto que

os países integrantes da tradição do civil law partem da premissa essencial de que as leis são os caminhos que orientam a vida social, sendo o papel estrito do juiz a aplicação das normas e, em casos excepcionais, a possibilidade de que o mesmo adapte as normas abstratas aos casos em julgamento.93

Com efeito, na realidade do civil law, a função do magistrado nunca foi a de criar regras a partir de julgados anteriores, por meio do raciocínio indutivo, criando o Direito. A dinâmica desses representantes do Poder Judiciário sempre foi o da fiel interpretação das normas gerais para o caso concreto, num exercício puramente dedutivo.94

Ademais, ainda que as decisões anteriores dos órgãos judiciais e de Cortes Superiores tenham uma certa carga significativa de respeito, as mesmas, por

91

SORMANI, Alexandre; SANTANDER, Nelson Luis. Op.cit., p.30. 92

SILVA, Celso de Albuquerque. Op.Cit., p. 156. 93

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Op. Cit., p.139. 94

Cumpre destacar que o civil law recebeu muitas críticas em razão da extrema valorização da lei como sua fonte principal. Contudo, há defensores de renome que elucidam a existência de vantagens do legado romanista, como John Gilissen, a saber: “era um direito escrito, enquanto dos direitos das diferentes regiões da Europa eram, ainda, na sua maior parte, consuetudinários, isto é, não escritos, com todas as consequências que derivam da incerteza e da insegurança do costume; era comum a todos os mestres (com reservas de algumas variantes na interpretação); aparecia assim, e foi, aliás, reconhecido finalmente, como direito comum (ius commune) da Europa Continental; era muito mais completo que os direitos locais, compreendendo numerosas instituições que a sociedade feudal não conhecia (ou que já não conhecia) e que as necessidades do desenvolvimento econômico tornavam úteis; o direito erudito pôde assim desempenhar a função de direito supletivo para colmatar as lacunas das leis e costumes locais; era mais evoluído porque tinha sido elaborado com base em textos jurídicos que reflectiam a vida duma sociedade muito desenvolvida, na qual a maior parte dos vestígios das sociedades arcaicas tinham desaparecido; aparecia assim o direito útil ao progresso econômico e social, em relação às instituições tradicionais da Idade Média”. (Cf. GILISSEN, John. Op. Cit., p. 203).

questão de política judiciária, devem ser respeitadas, mas não possuem carga compulsória por regra, capaz de vincular os julgadores inferiores.95

Portanto, em que pese a existência de modificações na realidade de certos países, com certas inclusões de características do common law em países integrantes do sistema civil law, a teoria dos precedentes judiciais encontra resistências de ordem histórico-social para sua inserção, sendo perfeitamente compreensível, uma vez que as sociedades romanistas veem na lei o espelho do que há muito foi solidificado enquanto representatividade da segurança jurídica de um Estado.

1.5 A VINCULAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS NO ORDENAMENTO