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C) Histórico da 'Bolsa de Valores do Brasil' e a caracterização da participação do investidor pessoa física.

1. As iniciativas educacionais da BMFBOVESPA.

Como já sugerimos, a BMFBOVESPA tem uma atuação mais complexa do que as outras instituições que compõe o universo educacional dos pequenos investidores pois ela também atua na certificação e treinamento de profissionais para o mercado financeiro. Não obstante, educar o pequeno investidor e certificar/treinar profissionais de mercado são atividades que não se sobrepõe, como já afirmamos. No que tange o pequeno investidor, além das modalidades de cursos de

educação financeira promovidos gratuitamente pela BMFBOVESPA criou-se recentemente um outro curso presencial gratuito, o curso 'Como Investir em Ações'. Além destes cursos presenciais, o site da instituição disponibiliza três cursos online, integrando-se à nova moda da educação à

distância.

Desde 2002, a instituição também possuí o programa “Bovespa vai até você”, que consiste em palestras e atendimento itinerantes a leigos, realizados em locais públicos como praias, clubes, escolas, universidades, sindicatos e indústrias, tendo atingido mais de 460.000 pessoas no período e

62 Portanto, ao lado da BMFBOVESPA e das corretoras, os 'professores de bolsa' – e até mesmo as empresas desenvolvedoras de softwares para análise de mercado, como também veremos - evidenciam a complexidade de agentes, instituições e interesses que constituem o processo de expansão do pequeno investidor na bolsa brasileira.

gerado mais de 2.000 reportagens e menções na impressa escrita e áudio-visual, segundo dados da instituição. (BOVESPA, 2008) O site esclarece que qualquer instituição – como escolas,

sindicatos ou empresas - que reúna cerca de cem interessados em mercado financeiro pode encomendar gratuitamente uma palestra da BMFBOVESPA.

Como parte de uma ousada estratégia, anunciada ano passado, de decuplicar o número de investidores pessoa física – que assim deveriam passar de 500 mil a 5 milhões de indivíduos - até 2014, a BMFBOVESPA alocou parte de um orçamento de 20 milhões de reais, previstos para a consecução deste objetivo, para a produção de uma série de 20 programas televisivos exibidos, ano passado, aos sábados na TV Cultura sobre conceitos básicos de educação financeira63.

( ÉPOCAONLINE, 2009 )

É perceptível o fato de que o foco das iniciativas educacionais da instituição centra-se na apresentação das noções e conceitos básicos de educação financeira para um público extremamente amplo, ou seja, pessoas que eventualmente sintonizaram o programa da BMFBOVESPA na TV em um sábado de manhã, que tiveram sua escola, sindicato, empresa ou até mesmo praia e shopping center visitados pelo 'Bovespa Vai até Você' ou que se inscreveram, gratuitamente e 'sem

compromisso', nos cursos presenciais de educação financeira. Em suma, um público diversificado - que não parece se limitar aos topos da pirâmide social brasileira, como a escolha do horário para o programa de TV sugeriu – e que, no mais das vezes, não possuí prévias noções sobre investimento financeiro. Deste modo, as iniciativas da BMFBOVESPA devem focar as mais básicas questões de educação financeira, as questões prévias ao investimento, como planejamento financeiro, controle do orçamento familiar, incentivo à formação de poupança e desincentivo ao endividamento.

Este foi exatamente o tom que abriu o curso de educação financeira que acompanhei na

BOVESPA em Dezembro de 2007. O palestrante iniciou o curso argumentando que se não houvesse sobra de dinheiro, obviamente não haveria o que investir e que, logo, era preciso esforço e

planejamento para 'fazer sobrar', ou seja, para poupar. Fortes falas eram dirigidas contra o endividamento, o palestrante advertiu, por exemplo, que as pessoas deveriam se lembrar que o dinheiro tomado de empréstimo do banco era dinheiro do 'banco e não delas' 64. Também se

incentivava um constante espírito de parcimônia, um trade off entre consumo presente e futuro que deveria abordar até mesmo os menores gastos, como ilustrava o exemplo de que, ao abandonar o hábito de tomar um 'cafezinho' diário no bar de esquina durante dez, quinze ou vinte anos, a pessoa

63 Ao contrário do que poderíamos supor, o diretor da TV Cultura, Paulo Markun, esclarece na reportagem mencionada que o horário escolhido para o programa é muito assistido pela 'elite' das classes C e D. ( idem)

64 Ao meu lado, sentava-se um rapaz da minha idade com quem conversei durante os dois dias de palestra, ele era motoboy e concordou enfaticamente com estas falas sobre endividamento. Em um dos intervalos do curso, quando lhe perguntei porque estava lá, ele disse ' Passei minha vida inteira endividado, só trabalhando pro banco, agora é hora do meu dinheiro trabalhar um pouquinho para mim também.'

poderia economizar uma grande quantia de dinheiro que, se investida, tornar-se-ia ainda maior. O ponto alto destas invocações à previdência financeira e à parcimônia com gastos foi o preenchimento coletivo de uma detalhada planilha de gastos. O palestrante nos convidava a supor um jovem casal de renda mensal de 5 mil reais, Eduardo e Juliana. Item a item, sempre com piadas e de forma descontraída, o palestrante dizia, por exemplo, que Juliana gostava de ir ao salão de cabeleireiro e pedia às mulheres para dizer quanto Juliana gastava por mês no salão, dizia que Eduardo não abria mão de uma cerveja com os amigos na quarta-feira e pedia aos homens que lhe informasse quanto custam as cervejinhas do mês com os amigos.

Entre risos e a participação animada do público, os valores eram anotados na planilha e, quando finalmente foram somados, sem que este jovem casal tivesse cometido qualquer excentricidade, notou-se que os gastos haviam suplantado sua renda. O palestrante propunha então uma nova rodada de preenchimento da planilha em que certos gastos do casal eram cortados e outros eram substituídos: o cinema com jantar no sábado era trocado pelo aluguel de um DVD e a encomenda de uma pizza em casa, por exemplo.

Ao fim da segunda rodada, havíamos conseguido reduzir os gastos mensais do casal e os dotado de alguma capacidade de poupança. Finalmente, o curso poderia então adentrar a questão das opções de investimento. Neste momento, o palestrante passou a definir e explicar as opções de investimento que a pessoa física possuí: poupança, imóveis, fundos de renda fixa, títulos do governo até chegar propriamente ao mercado de ações.

Após definições básicas65 sobre o que é uma ação, porque empresas abrem capital em bolsa, como ocorrem a compra e venda de ações, o papel da bolsa na economia de um país etc., o

palestrante entrou na defesa, que vimos no capítulo anterior, do investimento acionário como uma interessante possibilidade de constituição de reservas para aposentadoria e/ou multiplicação do patrimônio ao longo-prazo, além de salientar seu papel positivo para o desenvolvimento e a modernização da economia brasileira como um todo.

A partir daí, o palestrante começou a apresentar e defender visões sobre o investimento

acionário que, além de se repetirem em palestras de corretoras que assisti posteriormente, também seriam enunciadas pelos entrevistados que se identificaram como 'conservadores' na bolsa, tema do capítulo seguinte. Desta maneira, é possível afirmar que o curso de educação financeira da

BOVESPA, além de argumentar a favor do planejamento financeiro e da constituição de poupança, apresenta o investimento acionário a partir de visões e premissas que compõe, como veremos, o estilo operacional 'conservador' na bolsa de valores.

Estas visões ou premissas são basicamente três: 1. preferência pelas grandes empresas, as blue

chips, no caso brasileiro, principalmente Vale e Petrobras; 2. expectativa de retorno do investimento acionário no longo prazo e crença na regularidade cíclica do mercado de ações; 3. limitação da quantia de dinheiro investido em ações, descrita como um dinheiro que não é imediatamente necessário no curto-prazo, ou que, se na pior das hipóteses, for perdido, não fará falta.

O palestrante explica que existem diferentes tipos de ações no mercado. Ele argumenta que as ações de grandes empresas nem sempre são as que oferecem maior rentabilidade, contudo, em geral, elas seriam mais estáveis e seguras que as outras ações do mercado, que podem oferecer maior rentabilidade, mas também apresentam, em geral, maior risco66, exigindo mais experiência e conhecimento por parte dos investidores.

Quanto ao foco de retorno dos investimentos no longo-prazo, o palestrante enfatizava que , no longo-prazo, o sentido das bolsas era invariavelmente ascendente. É verdade que as flutuações de mercado poderiam durar semanas, meses e até mesmo anos, mas, no longo-prazo, estas flutuação são dirimidas por uma trajetória de persistente ascendência, como o demonstraria um extenso gráfico, que causou impressão no público, a evidenciar que, entre 1960 e 2008, a trajetória do IBOVESPA , apesar de todos percalços do país, foi uma impressionante alta.

O palestrante explica, em linhas gerais, que a bolsa não 'anda em uma linha reta': para subir, ela precisa cair um pouco, depois recupera o nível anterior e vem a ultrapassá-lo, para depois cair novamente e reiniciar o processo, sendo caracterizada, portanto, por uma certa regularidade cíclica, cujo sentido no longo-prazo, é invariavelmente a alta, uma vez que, ao fim das contas, a bolsa refletiria a economia real cuja capacidade produtiva, se encarada sob o prisma do longo-prazo, cresce acompanhando fatores como o crescimento demográfico e a evolução tecnológica67.

A partir desta conclusão, o palestrante explicita que o investimento regular, mensal por

exemplo, de uma certa quantia de dinheiro em empresas grandes, focando o longo prazo, seria um investimento de pouco risco e com rentabilidade muito maior que a da poupança ou opções de renda fixa. Temos aqui, portanto, a defesa do uso da bolsa de valores como uma clara forma de poupança para o longo-prazo, uma prática que se coaduna àquele discurso que representa a bolsa como uma opção de constituições de reservas previdenciárias. De fato, o asseguramento da aposentadoria via investimento acionário é, como vimos no capítulo 2, amplamente abordado no mini-curso da

66 Nos tópicos delicados, como este da escolha de ações, nota-se o cuidado e o caráter, digamos, 'democrático' do palestrante: ele está sendo gravado e filmado pela BMFBOVESPA e não pode correr nenhum risco de ser acusado de favorecer esta ou aquela empresa, este ou aquele interesse. Em suas formulações, contudo, fica claro que para iniciantes a opção pelas maiores empresas do mercado seria a mais acertada.

67 Reforçando a crença no longo-prazo, o Professor Celso Grisi, da FIA/USP, argumenta em uma reportagem do site, especializado em mercado financeiro, INFOMONEY em 2009 ( INFOMONEY, 2009c): No longo prazo, a Bolsa é sempre um investimento interessante. Apesar das perdas ocasionadas pelas quedas[ de Outubro de 2008], ao

observarmos a trajetória do IBOVESPA em um cenário de longo prazo, percebemos que o índice está sempre crescendo. Quem se lembra, por exemplo, que, em 2003, o IBOVESPA rondava os 19 mil pontos?

BMFBOVESPA, comentando-se que esta seria a situação vigente nos EUA e também desejável para nosso país.

Frequentemente, aliás, os agentes e instituições interessados na popularização do investimento acionário no país recorrem ao exemplo norte-americano, invocando-o como um modelo ao país. Nesta invocação, argumenta-se, em geral, que a massificação do investimento acionário nos EUA deve-se a um 'hábito cultural', desenvolvido e transmitido desde a infância68, de se investir na bolsa para projetos de longo-prazo, principalmente para o asseguramento da aposentadoria. Esta defesa do modelo dos EUA parece estar em vigor mesmo depois das crise dos sub-primes e da queda das bolsas mundiais que provocaram grandes incertezas e prejuízos nas carteiras de ações dos norte- americanos que planejavam assegurar suas aposentadorias via bolsa de valores.

Outra recomendação presente no curso que acompanhei da BMFBOVESPA , recorrente nos materiais de educação financeira, é a ideia de que, se o foco do pequeno investidor deve recair sobre o longo-prazo, o dinheiro a ser investido na bolsa deve representar uma quantia que não será

imediatamente necessária ao investidor, mesmo no caso de alguma emergência69.

Em suma, enquanto as corretoras e os 'professores de bolsa' acessam, como veremos adiante, um público segmentado - de pessoas que, em geral, já possuem algum contato com investimento em ações – e oferecem a este público conteúdos mais especializados, como conceitos de análise grafista e fundamentalista, a BMFBOVESPA foca um público diversificado que, em geral, desconhece por completo a bolsa de valores e que varia em intervalos mais longos de capital econômico e

educacional que o público das corretoras e dos 'professores'. Assim, a BMFBOVESPA tem que orientar suas iniciativas pelo incentivo ao planejamento financeiro e à formação de poupança antes de tratar do investimento acionário: antes de formar investidores, ela precisa formar poupadores.

Ao falar de investimento em ações, as iniciativas da BMFBOVESPA promovem um estilo operacional – caracterizado pelo foco nas grandes empresas, crença no longo-prazo, na regularidade cíclica do mercado e na limitação do dinheiro investido em ações - geralmente reputado como 'conservador' no espaço das bolsas de valores. O curso que acompanhamos apresenta este estilo operacional como o mais adequado a maioria dos pequenos investidores, já que ele não exige conhecimentos mais sofisticados sobre o mercado e nem maior tempo disponível para

acompanhamento das bolsas.

68 O palestrante da BMFBOVESPA afirma que nos EUA seria comum o hábito de preparar, já ao nascimento do filho, uma carteira de ações no intuito de assegurar reservas para o financiamento de seus estudos universitário. Outros defensores do exemplo americano cometam que a aproximação com o mercado de ações dá-se na escola e defendem a inclusão da 'educação financeira' na grade disciplinar das escolas brasileiras.

69 Neste capítulo, apenas citamos a qualificação do dinheiro a ser investido em ações, esta, contudo, é uma questão absolutamente interessante e que parece possuir claros vínculos com a representação do mercado nos termos de um jogo. Logo, ela será trabalhada de forma mais detida no capítulo 6 da dissertação.