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“Os anos 80 nunca existiram”99, enuncia imperativamente Alexandre Melo. Desde logo, apontando para as mutações culturais e ideológicas que a década de oitenta comporta e cujas especificidades culturais são decididamente relevantes na transformação dos conteúdos artísticos ao longo do mesmo período. Se a década de setenta tinha sido marcada, politica e socialmente, pelo 25 de Abril e pela construção democrática, a década de oitenta seria fortemente dominada pela consolidação do regime democrático e de adesão à Europa, pelo crescimento acelerado do consumo privado e pelas constantes inovações dos novos centros de consumo. Transformações essas que, ainda assim, não deram origem à agrupação de movimentos, tendências ou correntes estéticas e formais suficientemente coesas para as demarcarmos como definidoras de um modelo característico para a época em questão. Podemos dizer que a performance, por exemplo, quando comparada com outros contextos, surge tardiamente em Portugal e decorre na continuidade de uma série de experiências dos anos setenta. Interessante, porém, é esse cruzamento de propostas – entre as correntes experimentais provenientes da década anterior e uma espécie de retorno à ordem (recorrendo à pintura), os anos oitenta foram, de facto, um momento de transição. Ainda assim, apesar de não se estabelecer como um período de ruptura, as idiossincrasias de oitenta constituem um marcar de passo necessário para a releitura da História.

Corroborando com os argumentos de Melo, consideraremos os artistas da década no que respeita à sua criação artística de intervenção cultural no meio português e não segundo um modelo artístico dos mesmos anos, isto é, segundo movimentos ou estilos de uma “arte dos anos oitenta”. Visto que esta última designação tende a sugerir a definição de um conjunto de artistas cujo trabalho – devido às suas características concordantes –, corresponderia a uma convergência estética comum e definidora de uma década, facto que não se verifica. Esta tendência não se manifesta apenas em Portugal, mas em todo o panorama internacional, sendo que é no caso português, devido à sua conjuntura política – coincidente com a solidificação da democracia e a demanda pela crescente integração europeia –, que o

99 Cf. MELO, Alexandre, “1980-1990: Anos 80 – Os anos 80 nunca existiram”, in Panorama da Arte

Portuguesa no Século XX, coord. Fernando Pernes, Porto: Campo das Letras/Fundação de Serralves, 1999, pp. 285-315.

paradigma de multiplicidade da arte de oitenta se manifesta mais nitidamente, como veremos de seguida.

Tal como na década anterior, nos anos oitenta emergiram um conjunto vasto de artistas e de agentes no campo das artes em Portugal100, numa contínua vaga de espaços expositivos e instituições de apoio às artes, assim como galeristas, críticos e académicos que contribuíram para a difusão do circuito. A inauguração do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em 1983101 desencadeou uma acção museológica generalizada e impôs, junto do grande público, um novo prestígio das obras de arte moderna e dos nomes do panorama artístico português do século XX. No que respeita à conjuntura da sociedade de então, é imperativo realçar o recente desenvolvimento do mecenato de empresas, o que fez eclodir apoios financeiros privados aos artistas, assim como a sede por capital estrangeiro. Entre estes parâmetros, cercando os intervenientes artísticos da década, começaram a valorizar-se peças pela assinatura do seu autor e, assim, algumas obras de arte eram assumidas enquanto um objecto de luxo. Ainda assim, não diminuíram as propostas por parte dos mais diversos artistas que, após uma época aparentemente dominada pelo conceptualismo e a experimentação do objecto no seus domínios performativos e espaciais, retornam à pintura e à escultura. Tal como é o caso de António Dacosta, que interrompera a pintura no final da década de quarenta, ou Alberto Carneiro que, depois de alguns anos dedicado a pesquisas em torno da land art, reaparece na Galeria Quadrum (1983) com trabalhos em madeira que evidenciavam o valor das superfícies e das suas texturas. A própria Bienal de Cerveira que, a partir de 1978, reunia um numeroso conjunto de artistas e visitantes e onde eram realizadas performances em contacto vivo com o público, sossegou. A participação “com o corpo todo” do espectador deixou de ser tão expressamente convocada pelas obras apresentadas em 1986, sendo que a Bienal passou, dois anos depois, a cingir-se apenas às artes gráficas e deixou de apresentar o carácter de convívio festivo que caracterizou as suas primeiras quatro edições.

100 Não discutimos, evidentemente, apenas artistas que se revelaram exclusivamente nos anos oitenta,

mas sim do cruzamento e sobreposição de obras de diferentes gerações que dão corpo a uma conjuntura particularmente dinâmica e diversificada, incluindo por isso artistas cujo trabalho e o reconhecimento foram alcançados anteriormente mas que, em oitenta, mantiveram uma renovada actualidade.

101 Sob a direcção de Sommer Ribeiro, este núcleo veio revelar-se como um instrumento

imprescindível para a propagação da cultura em Portugal. Naturalmente, no momento da sua abertura de portas, o CAM concentrou-se em divulgar os artistas portugueses pioneiros, sendo que o acto inaugural foi acompanhado por uma retrospectiva de Amadeo de Souza-Cardoso.

Fazendo eco do que seria o espírito dos anos oitenta, tanto na Europa como nos Estados Unidos, realiza-se em Lisboa, em 1983, a exposição Depois do Modernismo, coordenada por Luís Serpa102 e patente na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa103. A exposição introduziu em Portugal os temas e debates pós-modernos e correspondeu à instauração de uma situação plástica balizada pelo “regresso à pintura”, a transvanguarda, o neo-expressionismo, a bad painting e as novas figurações, o que se traduzia num predomínio da figuração humana, frequentemente exercitado num registo espontâneo. Neste contexto, segundo elementos que reportam à inspiração pop, é importante dar nota de alguns artistas que produzem uma obra significativa para a década de oitenta, mas cujo trabalho foi, desde logo, sobejamente importante na história dos anos setenta. Referimo-nos a figuras associadas ao Nouveau Réalisme e a uma figuração narrativa, tal como Lourdes de Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, António Palolo ou Eduardo Batarda, não esquecendo aqueles que se afirmam pelas práticas pós-conceptuais, provenientes da resenha concretizada na Alternativa Zero, de entre os quais Helena Almeida, Julião Sarmento ou Alberto Carneiro.104 Carneiro, nome que destacamos pela intervenção nas dinâmicas relacionais entre a arte, o corpo, a natureza e o próprio espaço expositivo em diálogo com o espectador.

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Luís Serpa foi um dos mais salientes agentes culturais que lideraram a transformação do panorama das artes visuais em Portugal. Desde 1984, fez da Galeria Cómicos (depois, Luís Serpa Projectos), em Lisboa, um espaço de forte dinâmica artística, cuja capacidade de afirmação internacional foi fundamental para a cena artística da época, conjugando sistematicamente projectos interdisciplinares. Alexandre Melo lembra mesmo que, até cerca de 1995, a Galeria Cómicos foi a única galeria de arte portuguesa capaz de dinamizar amplamente a dinâmica artística de oitenta e que, por isso, atingiu merecido reconhecimento num curto espaço de tempo. Nenhuma outra, segundo Melo, terá conseguido realmente afirmar-se em linha com o panorama internacional das galerias de arte contemporânea. Cf. MELO, Alexandre, Arte e Mercado em Portugal: inquérito às galerias e uma carreira de artista, p. 29-79.

103 Assinalamos, desde já, a enorme subtileza da expressão escolhida para título da exposição. “Depois

do Modernismo”, ao invés de Pós-Modernismo. De qualquer modo, os participantes vivenciaram a onda de pós-modernidade que se viveu nos mesmo anos, particularmente evidente no caso da pintura, com o Neo-Expressionismo.

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Apontamos ainda o trajecto de um outro conjunto de artistas que, apesar de fugirem à temática que constitui fundamentalmente a nossa reflexão, importam ser brevemente anunciados enquanto nomes relevantes para a cultura da época. Entre eles, Joaquim Rodrigo, que, tendo iniciado a sua carreira no pós-guerra seguindo uma estética abstracionista, se organiza, a partir dos anos sessenta, segundo um código de signos e regras de significação pictórica. Por outro lado, António Dacosta, proveniente da corrente do realismo histórico, volta à actividade nestes mesmo anos. Também Júlio Pomar vai desenvolvendo diferentes modos de organizar a figura do corpo e o seu movimento, tal como Menez e Paula Rego, esta última reconhecida por ter de facto revolucionado o seu método, assegurando o seu domínio autoral até à actualidade. Numa outra via, segundo abordagens que dizem respeito aos elementos formas e estruturantes da pintura – como o plano, a luz, a cor, o signo ou o traço –, reafirmam-se artistas como Ângelo de Sousa, António Sena, Jorge Martins, João Vieira, Manuel Baptista, Álvaro Lapa ou mesmo Fernando Calhau, Pires Vieira ou, numa primeira fase, Michael Biberstein – os três últimos, segundo um percurso mais intelectualizado e de carácter conceptual que os demais enunciados.

Também a fotografia enquanto plataforma artística é capaz, ao longo dos anos oitenta, de finalmente se integrar no domínio das artes plásticas e afirmar o seu valor junto do público.105

É no contexto da exposição de 1983 que se revelam artistas como Julião Sarmento, cujo trabalho de invenção e criação plástica deve ser entendido como uma dinâmica fulcral no processo de configuração do desejo nas suas infinitas modelações, onde a atitude dos artistas se manifesta na dualidade entre energia e tensão, assegurando assim a natureza infindavelmente aberta e em constante renovação da sua obra. Dirigindo-se à imaginação dos espectadores, coloca questões para as quais nunca dá uma resposta, criando assim uma interação constante entre a obra e a imaginação de quem a percepciona. Na mesma via podemos incluir Albuquerque Mendes, autor que desde os anos setenta se move entre a instalação, a performance e a pintura, cruzando um corpo de obra que questiona ironicamente a própria História da Arte. O artista pertenceu ao Grupo Puzzle (1976-1980), ao qual pertencia, também, Gerardo Burmester, e com o qual fundou a Associação de Arte Espaço Lusitano (Porto, 1982). Burmester, que seguiu um percurso semelhante ao de Mendes, passa, na década de oitenta, a utilizar o objecto e a instalação espacial como propostas de um teatro dos lugares por ela reinventados. Isto é, o artista vai aproximando e distanciando o espectador segundo jogos de sedução visualmente atractivos, tendo por base o uso de materiais como a madeira folheada, o alumínio polido ou o feltro industrial. Desta forma, ambos os autores transferem para a audiência a competência de acrescentar sentido à obra e finalizá-la. A constante animação cultural nos anos oitenta, dinamizada através de exposições e entrevistas aos seus intervenientes e a constituição de grupos de trabalho (como aliás vinha sendo modelo recorrente desde as décadas anteriores), determinou o aparecimento de um nova vaga de artistas, jovens nomes do panorama artístico português que rapidamente conheceram a autonomia individual que lhes permitiu estabelecer consistentes carreiras e atingir o reconhecimento público que se verifica actualmente, tal como foi o caso de José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis, Rui Sanches ou Pedro Calapez, entre outros.

105 Salientamos o trabalho de Paulo Nozolino, que se mantem numa área especificamente ligada a

componente documental sob uma concepção autoral, e de Jorge Molder que, recorrendo sistematicamente ao retrato, se desdobra em representações de mundo paralelos, num jogo enigmático e contra a corrente da ordem, entre a realidade e a ficção.

Com efeito, José Pedro Croft é um dos artistas que domina a dinâmica relacional entre obra, o espectador e, fundamentalmente, o espaço que acolhe ambos. O valor geométrico das suas obras, a modelação e a desconstrução no espaço, convocam o olhar e o próprio corpo do espectador, que se movimenta em torno da obra. Isto porque a questão espacial é, também, a questão do equilíbrio, equilíbrio que, mais recentemente, vem sendo apoiado na utilização de espelhos – complexificando a dinâmica da obra no espaço e a sua interacção com o observador; o espelho que direciona o olhar e que recria, de forma variável e imprevisível, o objecto. De facto, a acção criativa, “com a máxima economia de formas e de processos, de situações no

limite entre a estabilidade e a instabilidade é uma das características mais marcantes de Croft.”106 E é o mesmo que promove, fugindo de uma rigorosa esfera hierárquica da obra de arte, a incorporação de objetos de uso quotidiano (que fazem parte do real), para o meio expositivo – ainda que, paralelamente, o artista se mantenha fiel à evocação da simplicidade inerente às formas geométricas elementares, evocando a depuração material que lhe é desde logo atribuída.

Não podemos deixar de referir ainda a dimensão metafórica da obra de Pedro Cabrita Reis, cuja produção pode ser vista como um trabalho de construção formal da qual resulta uma emergência de significados inteligíveis. A sua produção pertence a um território livre de fórmulas exactas e que pretendem satisfazer “o absoluto desejo de

metáfora”107, expandido as suas possibilidades. O seu léxico nos anos oitenta, cujas pesquisas plásticas se verificam direcionadas para o exercício da pintura e do desejo, sofrerá posteriormente uma viragem na passagem para a década de noventa, dando lugar à produção de objectos, construções e instalações que, como veremos, intensificaram as dinâmicas de interacção – não apenas com a audiência, mas com a própria realidade. Do mesmo modo, também a dialéctica fundamental entre o geométrico e o orgânico instaurada pelas criações de Rui Sanches, que desenvolve uma análise estrutural das formas – tendencialmente geométricas –, é capaz de evocar, simultaneamente, modelos orgânicos, de fácil conexão com o corpo, os seus fluxos, as suas convulsões e circunvoluções. Com efeito, em ambos os autores observamos uma formulação sistemática que, longe de corresponder a um programa conceptual fechado,

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MELO, Alexandre, “1980-1990: Anos 80 – Os anos 80 nunca existiram”, in Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, coord. Fernando Pernes, Porto: Campo das Letras/Fundação de Serralves, 1999, pp. 311.

107 Pedro Cabrita Reis [sessenta e oito textos de Pedro Cabrita Reis] in Pedro Cabrita Reis, Lisboa:

é antes divulgada enquanto um jogo livre, aberto e em permanente constituição (construção, desconstrução e reconstrução) das infindáveis possibilidades de leitura a que o espaço ocupado pelo corpo convida.

Outro artista que inaugura a sua exploração plástica nos anos oitenta é Pedro Tudela, que apresentou sempre a materialidade do corpo, no que respeita às suas dimensões mais viscerais e orgânicas, como principal eixo de força do seu trabalho, que conjuga instalações multimédia com uma pintura claramente sensível. Também Pedro Casqueiro, por via da pintura, e Manuel Rosa, na escultura, se situam no mesmo contexto cronológico e cultivam até hoje a afirmação pública da sua produção, assim como Rui Chafes. Chafes, mais jovem que os anteriores autores enunciados, acompanha a criação escultórica com os seus registos em desenho e, particularmente importante, com uma produção textual fortemente marcada pela reflexão em torno do encadeamento com o espectador da arte contemporânea e os limites da relação da audiência com a obra que a convoca.

Fernanda Fragateiro, artista que destacaremos num capítulo posterior, parte também da prática do desenho, produz instalações de grande escala e impacto que estabelecem um registo íntimo de articulação com o espaço e o sujeito que o habita. A problemática do espaço permite-nos ainda evocar o trabalho de Patrícia Garrido – que nos remete para um lugar doméstico em contacto com o corpo –, ou o de Carlos Nogueira, que, do mesmo modo, articula na sua produção conceitos de espacialidade, circulando em torno do íntimo, do natural e do espaço construído.

De um modo geral, e como apontou Bernardo Pinto de Almeida108, verificou-se uma certa deslocação do centro de acção, surgindo uma nova categoria na cena artística, a art people. O plano deslocou-se do projecto para a forma e instaura-se uma espécie de creditação do autor independente do contexto, isto é, deixa de existir uma tendência artística de uma época e passam a existir os autores/artistas de uma época. O território artístico da década de oitenta verificou-se, por isso, bastante híbrido e algo impreciso, entre a frente de vanguarda e o Pós-Modernismo. O mesmo aponta José Bragança de Miranda, afirmando que a arte de vanguarda foi enfraquecendo e integrando em si os diversos objetos da vivência quotidiana; na obra de arte estavam imbuídos “todos os

fragmentos do mundo”, que serviam de motor económico e movimentavam os sectores

108 Cf. ALMEIRA, Bernardo Pinto de, “O Centro fora do Centro” in Artes & Leilões, n.º 3, Lisboa,

do marketing, dos museus e da crítica.109 Assistimos, nos anos oitenta, a uma nova orgânica disciplinar, nomeadamente no que respeita ao desfasamento das fronteiras artísticas e do território da criação, resultado deste processo de multiplicação formal e conceptual – um desdobramento de linguagens que representou uma transformação no olhar autoral, crítico e teórico110 e que se estende para os anos noventa, a par com uma atitude crítica face ao movimento de "retorno à pintura" que marcara o início da década anterior, como veremos de seguida.

109 Cf. MIRANDA, José Bragança de, “Uma arte bem instalada” in Revista de Comunicação e

Linguagens, n.º 30, Lisboa, Outubo 1001, pp- 35-44.

110 Como considera o próprio Ferreira Gullar, acrescentando que esta materialização diversa de

linguagens se verifica como uma “simples” mudança de paradigma, longe de se revelar, seguramente, como retrocesso ou evolução. Cf. GULLAR, Ferreira, Argumentação contra a morte da arte, Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, pp. 133-134.

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