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Acreditamos que o terceiro e último conceito que aqui apresentamos é aquele que, de uma forma mais imediata, se manifesta como intrinsecamente ligado a uma participação activa, com todo o corpo, e que é aquele capaz de, mais rapidamente, estabelecer uma relação essencial com o espectador contemporâneo. Não segundo uma lógica do objecto, mas antes segundo uma lógica abstracta e imaterial: o corpo enquanto matéria para atingir o invisível. Isto é, o corpo – do artista, do objecto, do espectador – enquanto elemento essencial à concepção, concretização e validação da obra de arte, que atinge a criação apenas no momento desse encontro. Assim funciona o modelo da performance.

Iniciamos a nossa abordagem com a apresentação, entre muitas outras obras possíveis, do projecto Sem Título de José Pedro Croft, por ocasião da Expo ’98186 e realizado no mesmo ano. Na rotunda – inteiramente relvada – do Rossio do Levante, no Parque das Nações (Lisboa), o autor fez plantar, numa malha ortogonal, um vasto conjunto de plátanos, dando a ilusão de que ali se formava um pequeno bosque, atravessado por um caminho de passagem de peões. Simultaneamente, lado a lado no mesmo espaço, instalou uma série de elementos verticais de diversos tamanhos, que emolduram uma superfície reflectora semelhante a um espelho, mas cuja geometria sugere o perfil de um mupi ou outdoor. No centro dos panos espelhados, e numa fonte gráfica de reduzido tamanho, surgem ainda inscritos os mais diversos nomes. Numa primeira impressão, e apesar da intervenção violenta no espaço verde e arborizado, desenhar-se-iam na nossa imaginação imagens publicitárias. Porém, a única imagem que nos é dada a ver é o nosso próprio reflexo.

186 O programa de arte urbana estabelecido por ocasião da Expo ’98 representa a soma de partes que se

foram afigurando enquanto elementos indispensáveis para a construção da actual paisagem. Não como figuras decorativas, mas como propostas artísticas integrantes de uma estratégia de desconstrução e reconstrução do espaço urbana que culmina com o recinto da Exposição Internacional de Lisboa. São vinte e quatro os artistas representados no conjunto de intervenções de arte urbana, sendo que “cada uma delas [as peças] faz parte de uma respiração mais vasta, que se vive em todo o recinto, à qual são sensíveis os olhos e as mãos, o corpo e a inteligência. Da forma como vivem, dir-se-ia que sempre ali estiveram, mas isso é ilusão de quem quer acreditar à viva força que tudo o que aqui está fica tão justamente aqui, que é como se sempre cá devesse ter estado.” – António Mega Ferreira no texto inaugural do catálogo referente ao programa de arte urbana da Expo ’98. Cf. OLIVEIRA, Sónia (coord.), Arte Urbana, Lisboa: Parque Expo ’98, 1998, s/p.

De facto, José Pedro Croft acentua, nos anos noventa, qualidades intrínsecas à escultura nas suas instalações – o peso, a densidade –, que são imediatamente expressas nas dualidades que a sua obra nos impõe entre estabilidade e instabilidade, corpo e leveza. No Sem Título de 1998, tal não é excepção. A exploração de ambos os binómios é conseguida por via da aparência robusta da estrutura dos painéis, constituídos em ferro, em paralelo com a fragilidade do vidro reflector do seu interior – sete, para sermos precisos. A estas características junta-se a exploração dos volumes na sua conexão com o espaço e a luz, assim como a incorporação destas superfícies espelhadas, detalhe que marca fortemente a sua produção subsequente e sobre a qual pretendemos refletir, à luz da sua relação com o espectador.

Desde logo, evidencia-se a introdução de uma nova dimensão: o jogo de duplicação ou multiplicação virtual das formas e a desconstrução – e construção – do objecto, assim como do próprio espectador. Espelhos que não apenas reflectem o espectador – tornando-o parte integrante da própria obra –, como também direcionam o seu olhar para variados pontos do espaço envolvente e, ao mesmo tempo, encerram esse mesmo espaço na própria escultura, segundo uma espécie de site-specific levado ao limite. Da mesma forma, a superfície reflectora e a velocidade com que o espectador se desloca em torno da obra, transforma estes sete outdoors em verdadeiras telas de cinema onde é possível ver-se os elementos que entram, que saem, que se movem – e movimentar-se com eles. José Pedro Croft constitui, com efeito, um jogo escultórico entre o visível e o invisível; a ausência e a presença; a repetição e a sobreposição, sugerindo possibilidades infindas por cada olhar e para cada interpretação.187 O espectador é, nesta medida, o actor/performer privilegiado e a sua envolvência participativa – verdadeiramente física, móvel – é fundamental.

Sem sair do mesmo contexto (ou zona geográfica), o Jardim das Ondas, em Lisboa, projectado por Fernanda Fragateiro – em parceria com o arquitecto paisagista João Gomes da Silva – no mesmo ano e por ocasião da Exposição Internacional, segue a mesma orientação performativa que os painéis de Croft, mas constitui-se segundo uma abordagem amplamente divergente188. Este projecto multidisciplinar,

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Abordagem que, de resto, é desenvolvida ao longo da sua produção. Consulte-se DIAS, João Carvalho (coord.), Paisagem Interior: José Pedro Croft [catálogo], Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007; ou CUBERNATIS, Helena, José Pedro Croft (1979-2002): retrospectiva, Lisboa: Centro Cultural de Belém, 2002.

concretizado na margem do Tejo, surge do diálogo entre a arquitectura e as artes plásticas e visou à criação de um espaço de lazer para os visitantes da exposição. Enunciando desde logo a sua sensibilidade estética, Fragateiro propôs-se a criar uma situação de experiência do espaço diferente daquelas que já estavam criadas no mesmo local – o actual Parque das Nações, em Lisboa. A artista optou, desde logo, por modelar o terreno e realizar um jardim atípico, totalmente revestido a relva, mantendo a mesma lógica de um espaço urbano e possibilitando o pisar da relva. Porque, aliás, os jardins tradicionais se constituem, na grande maioria das vezes, como espaços segmentados, trespassados por caminhos e zonas delimitadas, experiência redutora que Fragateiro não queria reproduzir. Inspirando-se directamente nas formas resultantes do movimento das águas, foi concebido o projecto para um jardim integralmente relvado onde o terreno seria estritamente modelado através de curvas de nível que simulassem o ritmo das ondas (na sua formação e ao rebentar). De facto, os próprios bancos contêm citações de Virginia Woolf, retiradas do livro As

Ondas (1931). O projecto que Fernanda Fragateiro propõe parte justamente de um

entendimento acerca da experiência do corpo como uma possibilidade do envolvimento do espectador, enquanto participante mas, particularmente, enquanto destinatário/utilizador do dispositivo.

Com efeito, Jardim das Ondas constitui-se como um projecto para o espaço público e não como uma proposta convencional de exposição. Do mesmo modo, é, por via da sua interdisciplinaridade, capaz de aglutinar um conjunto de questões essenciais à compreensão da produção artística contemporânea, como aquelas que temos vindo a enunciar ao longo do presente trabalho. Referimo-nos às noções de relação com o espaço; de convocação do real; de desmistificação do objecto; de participação na exigência do corpo e dos sentidos. Examinemos agora cada um desses domínios.

Desde logo, pelo seu carácter de intervenção urbana de acrescento ponderado à paisagem, o jardim de Fernanda Fragateiro impõe, imediatamente, uma relação com o espaço que o envolve. Tendo sido projectado de acordo com o contexto do lugar que ocupa e de acordo com a temática dos oceanos, associada à Exposição de 1998189,

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Da mesma programação fazem também parte intervenções no espaço público de artistas como Carlos Aguirre, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Alberto Carneiro, Pedro Casqueiro, Rui Chafes, Fernando Conduto, João Cutileiro, Ilda David, Ângela Ferreira, Antony Gormley, Carsten Höller,

constitui-se também, naturalmente, como uma obra site-specific e indissociável do real. Contexto que implica uma lógica de desmistificação do objecto artístico, em prol de uma relação nivelada com público, estando ao seu alcance directo como parte integrante do quotidiano. Consequentemente, Jardim das Ondas faz parte dos domínios da participação, não apenas sob aquilo que é a definição de espaço público, mas, particularmente, porque o diálogo com a audiência é exigido na validação da expressão artística. Logo, importa realçar a preocupação de Fragateiro por concretizar um jardim integralmente relvado, convidando o visitante a habitá-lo sem limites.

Operando num campo tridimensional e desafiando os contornos que podiam ainda existir entre escultura e arquitectura, Fragateiro potencia a relação do espectador com o espaço; o espaço torna-se habitado e o espectador constitui-se como o performer. Concretiza-se o encontro entre arte e vida. Tal como acontece com o projecto de 1999 – concebido para ser colocado sob a sombra de uma árvore, no espaço de um jardim público –, composto por duas peças e que se constitui como um banco de jardim onde pode ler-se Eu Espero, o título da obra.

“Esta peça é um lugar. Fala simultaneamente de tempo e de esperança. Pode ser um ponto de referencia na cidade. Um sítio onde as pessoas podem esperar por alguém, logo abrindo possibilidade de se converter num lugar de encontro. (...) Neste lugar nunca é a mesma pessoa que espera, ou por quem se espera, nem sempre se espera o mesmo, nem sempre se espera o mesmo algo. Assim este lugar revela-se e passa a existir verdadeiramente quando se cumpre o acto da espera ou o do encontro. Sucessivamente.”190

Ponto de Encontro191 é também, oportunamente, uma instalação portuguesa da nova geração de artistas dos anos noventa e uma das obras que mais nos parece satisfazer este domínio da participação através da acção física do espectador, só ele capaz de concretizar a obra por meio de uma envolvência conseguida através da

Frabrice Hybert, Pedro Proença, Rigo, Manuel Rosa, Rolando Sá Nogueira, Rui Sanches, Susumu Shingu, Jorge Vieira, Xana ou Amy Yoes.

190 Fernanda Fragateiro a 9 de Agosto de 1999, Lisboa, conforme citação no catálogo do Museu

Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso. Veja-se MOREIRA, Álvaro, CARNEIRO, Alberto, Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso – 1990-2015, Santo Tirso: Câmara Municipal, 2015, p. 92.

191 Sugerimos a consulta de RAMOS, Maria (coord.), Joana Vasconcelos: Ponto de Encontro

[catálogo], Lisboa: Ministério da Cultura/Porto: Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, 2000; obra publicada por ocasião da exposição organizada e patente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, de 7 de Abril a 28 de Maio de 2000.

interacção da totalidade do seu corpo. Referimo-nos a um trabalho da artista Joana Vasconcelos, realizado já em 2000. Este carrossel, propositadamente pensado para ocupar o espaço que lhe foi destinado no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, foi dimensionado para uma sala de reuniões projectada pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira – sala onde nunca chegaram a ter lugar quaisquer reuniões. A obra, concebida como um possível ponto de encontro para o conselho administrativo do museu, é composta por dez cadeiras com um design de produto direccionado para o contexto de escritório, mas, paradoxalmente, cada elemento do conjunto apresenta- se numa cor diferente – isto porque, na verdade, se trata de um carrossel. Um carrossel que roda a uma velocidade variável, conforme um impulso definido pelos movimentos dos seus próprios utilizadores e, portanto, sem qualquer mecanismo ou motor que o active. À audiência, consequentemente e como é desde logo perceptível, é exigido que trabalhe em equipa, sob um exercício de cumplicidade e sinergia entre os intervenientes que interagem com a obra e que são, forçosamente, essenciais para o seu funcionamento. Aqui se estabelece então uma relação directa de participação segundo uma dinâmica de acção/concretização. Apontando para um diálogo reciproco entre obra e observador, não só é imposto ao espectador-participante o desencadear da acção determinante para o funcionamento do objecto, como é exigido que este estabeleça uma relação com a restante audiência. Deste modo, podemos evidenciar que o projecto que Joana Vasconcelos desenhou para Serralves não apenas convoca individualmente cada um dos que se passeiam pelo museu, mas que, num movimento mais alargado, convida à participação de uma comunidade de espectadores, dispostos a concretizar a obra num impulso conjunto de performatividade.

Segundo um plano diferente, desenvolvendo um núcleo de trabalho que trata a adequação do carácter performativo potencial de um lugar e de um contexto face ao tipo de actividade humana circunstancial que no mesmo espaço ocorre, introduzimos prontamente André Guedes como parte da vaga de artistas que emerge na década de noventa. Entre inúmeras abordagens baseadas na acção performativa segundo diversos estímulos espaciais, os projectos que o artista realiza são, sobretudo, uma forma do mesmo se relacionar com aquilo que lhe é exterior; tal como sugerido em Just Before (projecto Art Attack192, Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, 1999), The Beauty

192 Sobre este ciclo de dinamização cultural realizado nas Caldas da Rainha, veja-se CAMPINO,

Sleep Experiment - Nightroom #1 (Galeria Sala do Risco, Lisboa, 1999), Woolmark - Nightroom #2 (Grupo Desportivo de Santos, Lisboa, 1999), Close - Nightroom #3 (Bar

Anikibóbó, Porto, 2000) ou Going - Nightroom #4 (Rua Ivens, Lisboa, 2000). Trabalho que continua a desenvolver nos dias de hoje, em propostas como Pleasure Gardens – realizada durante residência artística em Londres, ao abrigo de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian – cuja acção teve lugar, em 2011, na Galeria Kunsthalle Lissabon. Mas analisemos brevemente o ciclo Nightroom, realizado entre 1999 e 2000. Apresentado em diversos espaços e cidades (e quase sempre “fora de horas”), possibilitou um campo de investigação significativo, na medida em que se tratavam de propostas cujo carácter performativo era bastante vincado e explícito. Como tal, a relação que a acção do artista propunha ao espectador acontecia de uma forma bastante distinta daquela que se pode verificar num espaço de exposição mais tradicional, como uma galeria. O apelo pela participação da audiência e pela projecção do corpo do artista em diversos corpos performativos espalhados pela cidade revela, desde logo, a exigência de uma validação física do momento artístico, indispensável para o alcance da condição de obra de arte ou de experiência artística válida.

Segundo uma estratégia de ocupação de espaços nocturnos, Nightroom iniciou- se com a performance de The Beauty Sleep Experiment. Neste acto #1, levado a cabo num edifício pombalino, o artista apresentava, entre a meia noite e as duas da manhã, uma acção centrada num conjunto de mulheres a dormir. O mistério da cena causou diferentes tipos de reacção no espectador, que passavam quer pelo incómodo provocado pela invasão de uma intimidade alheia, quer pelo conforto no partilhar dessa mesma privacidade. Woolmark – apresentado no âmbito Festival Danças da Cidade – por sua vez, rasgando com a experiência do sono da “bela adormecida”, apresentava uma proposta desenvolvida em dois momentos. Num primeiro momento, a audiência observava três corpos presos numa teia de fios, numa sala escura do Grupo Desportivo de Santos; estes invólucros de lã, que se desfiavam, eram puxados para uma outra sala, enquanto se ouvia um ruído inclassificável, que se revelava posteriormente, quando o espectador se deslocasse para o espaço contíguo e inesperadamente descobrisse uma máquina que tecia uma nova camisola de lã, realizada a partir das roupas entretanto desfeitas. Desde logo, identificamos que o desenrolar dos acontecimentos ocorre segundo um movimento circular: a camisola que é desfeita e refeita, continuamente, para surpresa da audiência que é encaminhada a percorrer a obra. Por último,

apresentamos Close #3, obra que, novamente, nos remete para uma já referida revelação da intimidade. A escala do bar Anikibóbó leva o artista a optar por uma performance executada por 16 intérpretes, a partir dos quais se pretende confrontar os habituais frequentadores do espaço com a presença de outros e solitários corpos que ali chegam com a intenção de dormir – e que ali ficam à espera que a noite termine, numa espécie de estado sonâmbulo, de uma insónia que não se esgota. A estranheza da situação é acentuada pela crescente intromissão de um ruído que não chega a ser musical, elaborado por Manuel Mota e a cargo do DJ Tiago Miranda. Ainda, podemos convocar o título da performance, Close, enquanto invocação de proximidade a um corpo, embora seja de sublinhar, paradoxalmente, a distância entre os performers e esta audiência que não demonstra emoção, apenas estranheza (porque o que se passa no imaginário de cada um é indubitavelmente incerto). Tal circunstância de desconforto receptivo acaba por contribuir, decisivamente, para a eficácia estética da expressão performativa, pelo que é imperativo insistir num trabalho que envolva o espectador, “dando atenção ao pormenor, ao prestes a evaporar-se, não prescindindo de fazer de

cada projecto uma oportunidade para questionarmos como acontece uma obra de arte, onde e quando começa, onde e quando acaba.”193

Num outro pólo, o projecto Microart que, apesar de não ter sido uma exposição – na tradicional acepção da palavra –, revelou-se como uma mostra de circulação colectiva de objectos artísticos originais da autoria de 45 artistas portugueses. A obra decorreu em 2000, em cinco cidades – Lisboa, Coimbra, Porto, Castelo de Vide e Hannover – e passou por diversos espaços. Subordinado ao tema “Do livro e da leitura”, foi apresentado em quatro livrarias (Assírio Líquida, Livraria Barata, Livraria Buchholz, Bulhosa Livreiros – Lisboa); no Pavilhão de Portugal da Expo 2000 de Hannover, sob o mote “Portugal”; Em Coimbra, Porto e Castelo de Vide, com o tema “Arte e Farmácia”.

Fugindo aos códigos de exibição que até então se verificavam no contexto português, as obras foram apresentadas em máquinas de venda automática. Tratou-se de uma nova forma de exibição e de venda de pequenas obras de arte, apresentadas dentro de uma caixa numerada e assinadas pelos artistas. A 500 escudos cada, foram vendidos cerca de 3000 exemplares, o que demonstra não apenas a vontade, por parte

193 Cf. NICOLAU, Ricardo, André Guedes [catálogo], Lisboa: Culturgest/Chiado 8 – Arte

de coleccionadores e entusiastas, de adquirir obras de jovens artistas emergentes, mas também a aceitação de um original e totalmente inovador modelo de divulgação e exposição de arte contemporânea em Portugal. Uma arte que não apenas pretendia integrar o quotidiano na sua composição mas que, em si mesma, fazia parte dele – metamorfoseando-se, a própria obra de arte, num objecto de utilização comum, parte integrante da própria vida e em contacto directo com os intervenientes do real, noção indissociável da arte do século XX, como temos vindo a enunciar. Com base numa mesma orientação, importa também dar nota da mostra desAUTORizado 2, que teve lugar no espaço cultural Caldeira 213194, no Porto, em 2001 – organizada pelos membros do espaço –, e que envolvia directamente os habitantes e comerciantes da Rua dos Caldeireiros. Da mostra constavam objectos pessoais destas mesmas pessoas, dispostos pelas paredes, pelo chão e pelo tecto do espaço; havia de tudo: roupas e sapatos, instrumentos antigos, objectos de trabalho e outros mais pessoais, brinquedos. Mais do que uma análise da população ou das actividades que ocupavam esta rua, estava patente nesta exposição a aproximação a uma comunidade e o convite à entrada num espaço que lhe era estranho.

Deste modo, podemos admitir que, a partir da convocação da comunidade envolvente, a audiência não apenas participou activamente no momento da exibição, como passou a fazer, desde logo, parte do processo criativo, na sua concretização e na validação da obra de arte. Neste contexto, a Caldeira 213 tornou-se, também ela, membro da zona que a envolve, num jogo de relações recíprocas e segundo certeiros eixos de actuação, como é aquele que diz respeito à dessacralização do conceito de autor. Porque a exposição divulgava obras produzidas por todos os artistas, sem que, no entanto, se pudessem reconhecer as suas respectivas “autorias” – autoria que era, também, dividida com os demais habitantes da rua. Este anonimato autoral possibilita ainda que o espectador parta para a interpretação da obra sem conhecimento prévio e,

194A Caldeira 213 foi uma associação de jovens que reuniram os seus esforços em torno de um espaço de produção e exibição artísticas, na Rua dos Caldeireiros, na cidade do Porto, entre 2000 e 2002. Pode ler-se no seu site, ainda em-linha: “O sonho era antigo, remontava ao tempo em que muitos de nós eram alunos da Faculdade de Belas Artes e não nos identificávamos com as linguagens artísticas praticadas nas galerias de então (anos 90 no Porto). Não existia ainda o Museu de Serralves, apenas a Casa de Serralves, que era um lugar que frequentávamos mas nos era absolutamente distante. Imaginávamos um espaço colectivo, à margem dos espaços comerciais ou institucionais, onde

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