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No seguimento da discussão, o segundo conceito-chave que aqui discutimos apresenta-se no espaço inverso do anterior. Se previamente refletíamos acerca de um corpo ausente, propomos agora pensar sobre os domínios da presença efectiva. Isto é, o corpo visível do artista, que se apresenta e se expõe ao espectador, em busca de uma lógica relacional, tal como teorizou Nicolas Bourriaud, que situa a produção do artista indissociável da sua relação com a audiência.

De facto, segundo a análise de Bourriaud em 1998, Relational Aesthetics, deu-se uma significativa mudança na sociedade, particularmente a partir da segunda metade do século XX, por via de um crescente desenvolvimento dos meios de comunicação e de contacto social. Em grande medida, devido à expansão da Internet e da emergência das redes colectivas de comunicação, nos anos noventa. Com efeito, deu-se um aumento do colectivismo cultural, o que potenciou o carácter relacional das exposições e a integração do público no processo produção. Esta alteração veio, por conseguinte, transformar a prática artística num espaço de encontros; isto é, a arte enquanto um espaço que privilegia um modelo comunicacional. De facto, o autor francês vai mais longe e afirma mesmo que, depois dos planos homem-divindade e homem-objecto, a produção artística da década de noventa concentra-se numa esfera de relações inter- humanas.177

Desta forma, o presente módulo tornar-se-á mais consequente, na nossa opinião, se reflectido a partir de exposições – ou antes apresentações – colectivas, por entre outras propostas individuais. Isto porque, o modelo expositivo individual tradicional parece-nos afigurar-se como menos eficaz para a reflexão acerca de práticas correspondentes a uma lógica relacional. Primeiro, porque acreditamos ser de maior relevância e interesse o não-isolamento deste modelo de criação artística, ou seja, pela confrontação entre as várias formas de se pensar a mesma temática. Por outro lado, em busca de uma aproximação contextual do objecto de expressão artística, porque muitas das obras que aqui pretendemos apresentar se concretizaram por via da sua manifestação nas ruas, e não circundadas por quatro paredes. Por fim, porque nos seus domínios de concepção mais profundos, o corpo de obra que discute de forma mais

premente o anseio pelo real está inserido, sobretudo, num contexto social. Contexto que é, antes de mais, uma construção de ordem colectiva, no confronto com o outro: o outro autor e o outro espectador.

Tomamos como primeiro exemplo de reflexão uma colectiva de seis artistas, comissariada e discutida a sete. Entre os autores João Louro, João Tabarra, Fernando Brito, Paulo Mendes, Carlos Vidal e Miguel Palma, estava o produtor e organizador da mesma, Miguel Palma. Tratou-se de uma exposição sintomática e afortunadamente inovadora para o Portugal do seu tempo: Espectáculo, Disseminação, Deriva, Exílio:

um projecto em torno de Guy Debord. Realizada na antiga Metalúrgica Alentejana,

Beja, em 1995, as suas propostas procuraram criar um nova forma de produção, circulação e legitimação – o artista que, através da “auto-gestão”, procuraria fugir do espaço da instituição, dispensando (aparentemente) a crítica, o mercado e a galeria. Efectivamente, os artistas habitaram o espaço da exposição, uma antiga unidade metalúrgica abandonada e arruinada – um abandono que provocou a estagnação e a inactividade da comunidade local, já previamente deprimida e empobrecida por demais factores, como a grave crise da agricultura que se fazia sentir à época.178

A proposta expositiva deste “projecto em torno de Guy Debord” advogou, naturalmente, um afastamento de paradigmas formalistas, no ultrapassar de uma dimensão “meramente” estética da arte pela valorização de uma aproximação à praxis social e aos domínios do real, por meio da intervenção do espaço público.

Debrucemo-nos agora sobre um retábulo fotográfico de grandes dimensões (5x8 m, aproximadamente), intitulado A Invenção da Cruz e apresentado pela primeira vez em 1992, no Museu de História Natural de Lisboa e no Convento de Jesus em Setúbal. Foi esta a obra que André Gomes escolheu para responder ao convite dos comissários de Anatomias Contemporâneas (...), exposição realizada em 1997. Os painéis fotográficos, instalados num dos topos do eixo central de um espaço repartido por um estreito corredor que constituía o percurso principal para quem iniciava a visita, irradiavam o acesso às restantes alas da exposição. À medida que se caminha, o painel central do retábulo, composto por catorze imagens que constituíam a forma de uma

178 Crise que foi habilidosamente representada no readymade produzido por Fernando Brito,

constituída por um tractor a trabalhar em seco e paralisado, apoiado sobre um bloco de madeira num dos seus extremos. Confira-se o catálogo desta intervenção na publicação homónima de BRITO, Fernando, LOURO, João, MENDES, Paulo, PALMA, Miguel, TABARRA, João, VIDAL, Carlos, Espectáculo, Disseminação, Deriva, Exílio: um projecto em torno de Guy Debord [catálogo], Beja, Galeria dos Escudeiros, 1995.

cruz, ia-se desvendando ao espectador até que, finalmente, se revelava por inteiro. De cada lado desta cruz, onde se reconheciam representações de submissão e agonia, dois outros painéis, erguendo-se em duas colunas verticais, apresentavam, na sua composição, fragmentos de corpos em agitação, completando a arquitectura do Calvário. Convenientemente, no topo oposto do corredor estava patente a obra de Graça Pereira Coutinho. A ausência dos corpos feridos de War Zone II, definindo precisamente um percurso sequencial – quase estabelecendo um diálogo de causa-efeito – com a representação fotográfica crua e objectiva dos corpos em sofrimento de André Gomes. Num perturbante confronto, através do estreito e semi-obscuro corredor, as duas instalações, frente a frente, impunham uma clara dinâmica de comunicação: “O

Corpo em ascese do Calvário erguia o Corpo descido à Terra.”179 Esta dinâmica não seria apenas estabelecida por meio da relação visual que as duas obras eram capazes de convocar mas, essencialmente, por meio da interpretação pessoal do espectador, que se via diretamente, quase inesperadamente, confrontado com argumentos duros acerca de circunstâncias intimamente ligadas à cultura do seu tempo e a um corpo demasiado presente e cru, disponível à sua interpretação. Um trabalho determinado a múltiplos níveis de realidade, dos quais fazem parte o olhar, a interpretação, a decifração (por um individuo ou comunidade, qualquer que seja a sua cultura). Desta forma, a densidade da própria obra passa, necessariamente, pela lógica de relação entre cada um destes momentos.

Cruzando alguns dos vectores que assinalámos e, de certo modo, completando a sua sustentação, salientamos, numa outra via e agora num plano de produção individual, a exploração performativa de Rita Castro Neves naquela que é considerada a sua primeira exposição, no sentido em que corresponde já a uma fase mais amadurecida da sua actividade artística180. Não Ponham mais Palavras na Minha

Boca foi realizada na Escola Primária n.º 97 do Porto, exactamente no ano de 1997 e

em função do espaço que ocupava – a antiga escola primária da artista –, num impulso site-specific traçado pela própria181. O átrio do edifício, ocupado com uma

179 Citação de André Gomes, disponível em CUNHA E SILVA, Paulo, MENDES, Paulo, SEABRA,

Paulo, op. cit., p. 118.

180 Sugerimos a consulta de SANTOS, David, “Rita Castro Neves: o quotidiano tem destas coisas,

repetições e surpresas, in Arq./a, n.º 98-99, Novembro-Dezembro 2011, pp. 116-119.

181 Conforme atesta a artista, as suas obras têm analisado alguns gestos do quotidiano, rotina e

familiaridade numa tentativa de compreender e investigar uma visão mais interiorizada das nossas vidas. “Em cenários realistas, personagens comuns fundem-se nas suas paisagens – interiores ou exteriores – assim se apropriando e reconstruindo o seu surpreendente mundo exterior. Este realismo

instalação sonora, contrastava com o silêncio de uma sala de aula vazia, onde todas as peças de mobiliário, assim como as janelas, estavam envolvidas num tecido de algodão branco, hermeticamente fechadas e cosidas no local; por cima do tradicional quadro preto de ardósia, envolvido por um lençol, estava ainda a figura de Cristo na cruz, também ela envolvida por um pano e ladeada por dois pequenos pregos. A exposição podia ser vista por qualquer visitante, mas a artista fazia questão de organizar visitas-guiadas em grupos divididos por gerações, onde constavam professores, educadores e crianças daquela instituição e que, assim, constituíam o organismo vivo da própria obra. Aqui, a presença da artista é literal, não apenas por meio da convocação do seu passado naquele lugar, que encerra em si a ideia de uma memória constituída por elementos alegóricos, com vista a um retrato simbólico da artista; mas, sobretudo, pelo contacto directo que Rita Castro Neves mantém com o espectador deste espaço, que vai sendo construído ao longo do percurso realizado pela audiência e, particularmente, ao longo da comunicação inter-humana estabelecida entre a artista e o seu público.

“I want the public to be inside a brain in action.”182

Os objectos artísticos e os momentos estéticos que determinaram, no contexto português dos anos noventa, uma recepção de estranheza, acabam por ser, naturalmente, aqueles que melhor respondem à reflexão que encetámos no presente capítulo (à semelhança do que vinha sendo regra ao longo da História da Arte do Século XX). Esse choque da audiência manifesta-se como o elemento catalizador de diferentes intenções e possibilidades, é o momento em que a arte dilata fissuras na percepção linear do discurso da sociedade de espectadores. Tal como se verificou no momento em que a Society of Independent Artists recusa a Fountain de Duchamp.

Num sentido semelhante devem ser também encaradas as propostas experimentais que apelam a um cruzamento de linguagens por via da utilização do som,

pormenorizado e minucioso – por vezes absurdo, outras político ou ainda emotivo – é também um realismo mágico. A suspensão da realidade permite construir um tempo entre o tempo, atento a um conceito de espaço mental – ponto de partida para uma nova percepção desta nossa realidade flutuante. A narratividade (as séries em fotografia, o tempo sequencial no vídeo e no som…) é muitas vezes quebrada e não-linear. O quotidiano torna-se aqui a fonte quer das emoções, quer da perspectivação – e crítica – das situações e estruturas de funcionamento da sociedade.” Disponível em ritacastroneves.com.

da música e do vídeo. Esta são, aliás, propostas que não constituem dados inaugurais na arte do século XX. Na aproximação das artes visuais ao som e à música, por exemplo, é possível identificar, por entre um número inesgotável de exemplos, diversos casos que realçam este contacto. Tal como os filmes sonoros de Kurt Schwitters, as gravações em tempo real de Pierre Schaeffer, a pintura de Oskar Fischinger, concertos dos Velvet Underground organizados por Andy Warhol ou os happenings de Nam June Paik, entre muitos outros exemplos. Mas é nos anos noventa que, em Portugal, se desenvolvem algumas inovadoras propostas que procuram desafiar o espectador contemporâneo por meio da articulação de diversos códigos de linguagem artística. Nesta medida, importa destacar o trabalho que Carlos Roque (a par com Rui Toscano ou Rui Valério) tem desenvolvido, desde o início da década, em torno da cultura urbana e dos seus signos musicais. Se, por um lado, estamos perante uma produção que repõe uma articulação de técnicas que não é nova, é também importante salientar que o artista não se limita à repetição ou à mera representação de elementos que correspondem ao universo musical. Instrumentos como a guitarra, o amplificador ou as colunas surgem como objectos constituintes do processo de produção e são incorporados nas instalações sonoras, tal como acontece com a produção de Pedro Barateiro, dez anos mais novo que Carlos Roque.183

Tomando como exemplo um projecto que Barateiro desenvolve em 2003, convocamos novamente a questão da identidade presente no espaço ocupado pelo artista, patente na produção de Rigo ou de Ana Leonor Rodrigues, por exemplo, como já referimos. Desta vez, tendo por base a acção performativa em articulação com o som, diferente do modelo de “escultura sonora” de Roque, cujas instalações, ao incorporarem diversos dispositivos mecânicos, funcionavam autonomamente em relação ao sujeito.184 A instalação Ensaios para uma Pintura Sonora: um projecto para a Galeria Pedro

183

A respeito da relação que estes artistas estabelecem entre o objecto artístico, o gesto criativo e performativo e a experiência sonora, lembramos uma obra recente, publicada por ocasião de um projecto de residência colectiva realizada pelo Soopa no Momento #1 – Cruzamentos e Encenações do Laboratório de curadoria, Ciclo sobre Audiências, da Programação de Arte e Arquitectura da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, realizado entre 22 de Abril e 12 de Maio na Fábrica ASA e em outros locais da cidade: NETO, Manuel João, BREJON, Benjamin (coord.), Sonores: sounds/space/signal [catálogo], Guimarães: Fundação Cidade de Guimarães, 2012. Neste contexto, foram representados artistas como Micaela Amaral, André Coelho, Gustavo Costa, Pedro Tudela, entre outros.

184 Consulte-se a entrevista realizada a Pedro Barateiro por Sandra Vieira Jürgens, acerca dos seus

modelos de instalação, em JÜRGENS, Sandra Vieira, “Pedro Barateiro: o projecto moderno, entre a ausência e a presença das imagens, in Arq./a, n.º 84-85, Setembro-Outubro 2010, pp. 122-125.

Cera constituía-se como uma apropriação do espaço expositivo da galeria enquanto

espaço de trabalho. Com o apoio de três músicos, o artista apresentava-nos a sua vivência quotidiana, ali confinada ao lugar expositivo (ao invés do atelier). Nessa medida, durante os dias da exibição, o espectador era convidado a confundir a prática artística com a envolvência dos corpos dos seus intérpretes em demonstrações de cumplicidade e companheirismo, num contexto de trabalho e de diversão que se metamorfoseava, através da convocação de uma audiência, em obra. Nesta exposição, Barateiro recorreu a algumas práticas experimentais recorrentes nos anos sessenta e setenta que, paralelamente a obras de arte plástica, como é o caso da pintura, usam a música e a performance “para quebrar os limites de um espaço que, apesar de parecer

neutro, como qualquer outro espaço, não o é.” E continua: “Tornar um espaço galerístico num local passível de acolher uma intervenção menos formal, onde a produção da obra acontece in situ e onde se assiste à sua consequente transformação em imagem” era o propósito desta sua abordagem.185 De facto, Ensaios para uma

Pintura Sonora (...) só acabava quando todo o espaço voltasse ao seu estado inicial, à

semelhança do que existia antes da sua ocupação, reforçando o papel do corpo e da sua acção enquanto ferramentas indispensáveis para o século XX e, particularmente, para o modelo da participação. Aquilo que permaneceu, desta e de tantas outras performances, são documentos como a fotografia, o vídeo e, neste caso em particular, o registo sonoro, que permitem posterior reflexão e, talvez mais importante, a construção de história e memória dessa presença.

185 Pedro Barateiro citado em CUNHA E SILVA, Paulo, MENDES, Paulo, SEABRA, Paulo, op. cit., p.

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