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As narrativas em confronto: as mudanças nos últimos anos

Nos documentos de uma década atrás, citados anteriormen- te, não há referência à dificuldade de encontro de peixes nos pesquei- ros. Porém, esses registros já continham reclamações sobre as ativi- dades sísmicas e a movimentação de navios na área de pesca. Nada foi feito para minorar essa situação, que, bem ao contrário, tem se intensificado à proporção que mais atividades sísmicas são realiza- das. O que tem sido feito são medidas compensatórias propostas por

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empresas. Porém, elas não chegam a solucionar o problema, visto que não há possibilidade real de a área explorada no fundo do mar voltar ao seu estado original.

Sobre o processo de negociação das compensações que en- volvem as associações das regiões impactadas e as empresas causa- doras de impactos, há uma série de dificuldades a serem contornadas. Percebe-se que a fragilidade da organização e as dificuldades inter- nas na gestão política dos interesses coletivos aumentam conside- ravelmente com o aliciamento e a manipulação que as instituições e empresas exercem sobre as lideranças.

Todos esses problemas, ao permanecerem inalterados por tantos anos, permitem depreender que essa situação é resultado de uma política pública pesqueira deficiente. Projetos como a proposta de criação de uma câmara de assessoramento da pesca até hoje não se efetivaram em todos os municípios litorâneos.

Apesar de os documentos conterem indicações de que os pescadores estavam aumentando a capacidade tecnológica e, portan- to, a possibilidade de realização da pesca mais oceânica, nota-se que a presença de grandes barcos/traineiras na costa afeta diretamente os pescadores artesanais. Além disso, a presença de moradias, de indús- trias e de portos à beira-mar, em quantidade muito maior, sem inves- timento em infraestrutura básica e planejamento adequado, provoca grandes impactos sociais e ambientais.

Percebe-se na análise dos temas elencados pelos pescadores a capacidade de mapear com clareza os problemas que circundam a atividade e a necessidade de fazer denúncias ao poder público para produzir efeitos significativos. Alguns depoimentos mereceram des- taque e foram citados no artigo.

Nota-se também a baixa exequibilidade das propostas de so- luções “estratégicas” presentes nos documentos oficiais para o setor pesqueiro e menos ainda para os pescadores artesanais.

Os pescadores reconheceram o forte impacto nos recursos pesqueiros devido à colocação de redes de espera de modo inadequado e irregular. E essa pode ser considerada também mais uma das várias causas para o decréscimo da quantidade de peixes próximo da costa. Consideram também que a crescente quantidade de barcos nos últimos quarenta anos pode ter provocado maior invasão na faixa costeira e ter produzido a percepção de menor quantidade de peixe pescado por barco. Como não há estatísticas de desembarque pesqueiro acompanhando essas últimas quatro décadas, não se pode conferir por meio dos dados disponíveis a percepção narrada pelos pescadores.

Os trabalhadores do mar comunicaram também que as informações contraditórias, divergentes e conflitantes entre os diversos órgãos que tratam do setor pesqueiro (Ministério da Pesca, IBAMA, Capitania dos Portos, Iema, Secretaria de Agricultura, as diversas secretarias ambientais e a polícia ambiental) prejudicam muito a difusão correta, ou pelo menos homogênea, de informações e fazem o “mosaico institucional” parecer mais caótico.

Complementando o quadrante institucional da pesca referido como caótico – visto que produz muita informação e muita burocracia, confunde mais do que ajuda –, há ainda na organização dos pescadores regionais a tendência de formar muitas agências de representação/proteção/credenciamento. Nesse sentido, há uma reprodução da complexa ramificação de instituições nas associações de filiação/representação dos pescadores para as atividades da pesca, tais como as associações de moradores e de pescadores, as colônias de pescadores e duas federações de pescadores – uma coligando as associações de pescadores e a outra reunindo as Colônias de Pesca.

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Apontamentos finais

Restam perguntas acerca do tipo e do sentido de desenvolvi- mento que se quer implantar e, a partir disso, definir onde empreen- dê-lo e como fazê-lo. Em primeiro lugar, o que se observa é que o de- senvolvimento é ainda uma ideia geralmente restrita ao crescimento econômico quantificado por indicadores econômicos como o PIB (ELI DA VEIGA, 2008; KLICKBERG, 2010).

No estado do Espírito Santo tem vigorado um modelo de de- senvolvimento econômico restrito quase exclusivamente ao cresci- mento econômico nas três últimas décadas. Apesar das críticas feitas pelos movimentos ambientalistas à ausência de um modelo de desen- volvimento sustentável, observa-se que os processos de implantação ou de expansão dos grandes empreendimentos no estado têm ocor- rido muito distantes da ideia de sustentabilidade, aproveitando-se, ao contrário, do grau de polissemia e fluidez que essa noção carrega para facilitar sua inclusão nos discursos dos agentes do desenvolvi- mento. Isso tem provocado, na prática, um número cada vez maior de impactos ambientais, além de um número equivalente de problemas sociais, pois o desenvolvimento econômico por si só não tem trazido o desenvolvimento humano, educacional e cultural, ou ainda a elimi- nação da pobreza. Por isso emergem problemas relacionados à alte- ração brusca de modos de vida e de condições de trabalho de popula- ções que, até então, eram reconhecidas como tradicionais.

O homem economicus moderno e racional – em oposição ao tradicional – criado no seio da sociedade capitalista tem caracterís- ticas determinadas pela expansão e dominação de outros mercados, assim como da natureza. Desse modo, a utilização da ideia do desen- volvimento ou da lei do progresso acaba se constituindo numa neces- sidade criada, tornando-se um instrumento ideológico.

Observa-se ao longo do litoral do Espírito Santo um tipo de desenvolvimento cuja finalidade é extralocal. Ou seja, os níveis de in-

teresse nacional e internacional de desenvolvimento sobrepõem-se aos interesses genuinamente locais.

A criação de territórios de proteção e exclusão na forma de unidades de conservação tem ocupado espaço considerável nos mo- vimentos ambientalistas regionais, os quais veem a criação de uni- dades de conservação como estratégias de barganha política para a conservação ambiental frente ao impacto dos grandes projetos. Origi- nalmente, os pescadores não consideravam essa uma boa possibilida- de, visto que o mar é considerado de todos (MALDONADO, 1994). No entanto, devido ao fato de o mar estar sendo dividido e apropriado, pode-se dizer que a criação de territórios começa a ser uma discussão entre os pescadores devido aos grandes desafios que têm enfrentado não só no estado do Espírito Santo – como acabamos de relatar –, mas em várias outras regiões da costa brasileira.

Os problemas anteriormente relatados ameaçam o trabalho e o modo de vida dos antigos residentes, promovem grandes e, mui- tas vezes, violentas transformações socioculturais locais e, em vários casos, a expulsão dos residentes nativos junto com a emergência de conflitos socioambientais – situações semelhantes às de alguns estu- dos realizados ao longo da faixa costeira brasileira (FUKS, 2001; RA- MOS, 2009; MORAES, 2004; MOTA, 2004; LIMA, 1997; KNOX, 2009) e às que serão mostradas ao longo deste livro.