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Os pescadores artesanais da Baía de Guanabara e a contínua precarização de suas atividades

A apresentação de alguns elementos da reprodução social dos pescadores da Baía de Guanabara requer uma contextualização para elucidar os termos e os sentidos de suas ações nos confrontos recentes, objetos deste trabalho. Também contribui para explicar as restrições 10 A mudança paradigmática e o aspecto fortemente crítico do movimento por justiça ambiental são representados no lema NIABY (Not in anybody backyard), em clara alusão ao conhecido movimento NIMBY (Not in my backyard).

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às ações coletivas que demarcaram a situação desses pescadores até o início da década de 2000. Para isso, importa descrever os dilemas vivenciados no ambiente da Baía de Guanabara, relacionados às proibições e restrições à atividade da pesca em virtude da degradação ambiental, da desconcertada gestão ambiental do território e das relações institucionais e cotidianas com os atores que interagem no mesmo espaço com diferentes e conflitantes interesses.

Figura 7 – Baía de Guanabara

Fonte: Imagem LANDSAT S-23-20_2000. Disponível em https://zulu.ssc.nasa.gov/ mrsid/mrsid.pl.

A atividade pesqueira na Baía de Guanabara é realizada ma-

joritariamente de maneira artesanal. A maior parte dos pescadores utiliza barcos a remo e alguns motores de baixa potência, sem meios para a conservação do pescado, usando como principais petrechos de pesca as redes, as garateias e os espinhéis. A comercialização é feita principalmente por terceiros que se dirigem aos locais de desembar- que, pois os pescadores não possuem meios de conservar a produção, tendo que se sujeitar a vendê-la a preços baixos.

Em face da precariedade do trabalho na pesca, é cada vez mais comum que os pescadores, sobretudo os mais novos, se empenhem em outras atividades. Na pesquisa realizada por Giuliani et al. (2005), 64% dos pescadores entrevistados que atuam junto à Área de Proteção Ambiental de Guapimirim tinham outra ocupação. Boa parte dos pes- cadores acumula, com a pesca e a captura de caranguejos, uma série de outras atividades, principalmente trabalhos temporários e ocasionais como biscates na construção civil, na coleta de garrafas plásticas e na venda de caranguejos e pescados. A situação de moradia desses pes- cadores é extremamente precária. Muitas vilas antigas de pescadores tornaram-se ambientes de moradias suburbanas ou favelas.

Figura 8 – ESEC Guanabara e APA Guapimirim

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Na região de Magé, Rio de Janeiro, Chaves e Sant’Anna (2003) avaliaram os processos de trabalho e a vida dos pescadores. Muitos deles apresentavam problemas de saúde, como doenças de veiculação hídrica e de vetores, além de transtornos mentais. Algumas enfermi- dades chegaram a ocasionar mortes. Para os autores, essas ocorrên- cias se devem basicamente às questões econômicas e à situação de total desamparo em que a categoria se encontra. Albano Silva, um dos informantes de nossa pesquisa, diz ser patente que a precariedade do trabalho e os resultados econômicos da pesca para os pescadores individuais têm ocasionado problemas de saúde pública. Rosa e Mat- tos (2010), que traçaram o perfil de parte dos pescadores e catadores existentes na Baía de Guanabara, sobretudo daqueles localizados no interior da baía, concluíram seu trabalho deste modo:

A pesca na Baía de Guanabara resiste apesar da intensa degradação e esses trabalhadores precisam de um esforço maior para compensar a diminuição do pescado e do caranguejo no mangue. Para isso, além de uma longa jornada de trabalho para conseguir o máximo de aproveitamento no mar ou no mangue, eles recorrem a outras atividades para buscar a sobrevivência. São atividades informais, como “bicos”, que complementam a renda desses trabalhadores da pesca. A realidade dura do dia a dia muitas das vezes não é recompensada, pois nem sempre se consegue pescar algo ou o suficiente para pagar o óleo e o gelo utilizados. São trabalhadores que não têm um horário definido para pescar. Eles sofrem com a precariedade do trabalho informal, sem garantias e sem direitos. Para 25% da amostra, o sonho é ter carteira assinada e, dessa forma, ter mais segurança, comprar a prazo, poder se afastar quando estiver doente ou acidentado.

O estudo de Giuliani et al. (2005) descreve que a grande maioria dos entrevistados (75%) tem baixa escolaridade, próxima dos níveis de analfabetismo. Há indícios de uma alta taxa de morta- lidade na infância e adolescência de filhos de pescadores da Baía de Guanabara. A maior parte dos filhos frequenta a escola, mas a partir dos onze anos, aproximadamente, passam a ajudar seus pais nas ativi-

dades de pesca e captura de caranguejos. Filhos e filhas representam, assim, um reservatório de aprendizes com forte tendência a seguir a ocupação dos pais. Apesar de aparecer constantemente nos discursos dos pescadores o desejo de que seus filhos não sigam a profissão em virtude do sofrimento contínuo e crescente, a pesca se apresenta ain- da como uma alternativa de renda, da qual populações em situação de vulnerabilidade econômica e social não podem abdicar por completo.

A pesca anda tão deteriorada quanto o ambiente da baía. Segundo Batista Neto (apud RODRIGUES, 2009), a Baía de Guanabara pode ser considerada um dos ambientes costeiros mais poluídos do Brasil. São muitos os impactos decorrentes da industrialização, do adensamento populacional e da precariedade da gestão ambiental. Sua degradação é sistêmica. Os pescadores que vivem dos seus recursos fazem parte desse sistema e estão de certa forma adaptados a ele – tal qual a experiência descrita por Guatarri (1995), em que Alain Bombard, na TV Francesa, retirou um polvo vivo de um recipiente com água proveniente do porto de Marselha e o colocou em outro com água límpida, e, para surpresa dos espectadores, o animal debateu-se e morreu encarquilhado. Os pescadores da Baía de Guanabara estão mais ou menos adaptados àquele sistema ambiental poluído e degradado e, surpreendentemente, conseguem expressiva produção de pescado11.

Obviamente, há inúmeros problemas. A pesca artesanal na Baía de Guanabara, quase totalmente de pequena escala, feita com pequenos barcos a motor e a remo, vivencia de forma mais direta a degradação ambiental. As consequências dessa poluição não se apresentam de forma indiscriminada, mas obedecem a uma classificação diferenciada, que tem como importantes critérios: as 11 A produção total de pescados descarregada na baía, no período de abril de 2001 a março de 2002, foi estimada em dezenove mil toneladas, das quais seis mil foram realizadas pelos pescadores artesanais (JABLONSKI, AZEVEDO & MOREIRA, 2006). A produção da Baía de Guanabara compõe, portanto, mais de 30% da produção estimada para o estado do Rio de Janeiro, que teve, entre 2002 e 2006, por média anual 62 mil toneladas. Ver Soares (2012).

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dificuldades para a captura dos peixes; a diminuição da quantidade e da qualidade do pescado, e os problemas de mobilidade geográfica.

Dentre os problemas que provocam efeitos diretos na oferta de peixes, pode-se apontar o crescente assoreamento de rios, de canais e do próprio corpo da baía12. Por isso são comuns reivindicações –

as quais surgem constantemente em fóruns, reuniões e encontros dos quais os pescadores participam – centradas na necessidade do desassoreamento dos canais e rios.

O lixo orgânico, proveniente dos vazadouros e dos esgotos do- méstico e industrial, é considerado um dos maiores agentes poluido- res, segundo os especialistas. É também percebido plenamente pelas populações usuárias das praias, que reconhecem e confiam nos siste- mas peritos de medição da qualidade da água e nos índices frequente- mente negativos de balneabilidade das praias da Baía de Guanabara. Entretanto, esse tipo de poluição não representa, segundo a interpreta- ção dos pescadores, um grave problema. Para eles trata-se de uma po- luição de baixa visibilidade, vista com conotações até positivas: alguns pescadores afirmam que funciona como “comida para peixe”.

O lixo sólido é de grande visibilidade para os pescadores, que em seus pequenos barcos se situam próximos do espelho d’água. In- flui diretamente sobre a pescaria, danificando os aparelhos de pesca ou atrasando os necessários deslocamentos – é frequente o pescador ter que parar o barco na baía para desligar o motor e retirar o lixo que emperra as hélices desse aparelho.

As fontes ligadas aos constantes derramamentos de óleo – não apenas aos acidentais de grande proporção, mas também àqueles frequentes e sistêmicos – configuram na maioria das interpretações o grande problema relacionado às reiteradas mortandades de peixes e ao sumiço de algumas espécies. Particularmente, o grande derrama- mento de óleo do ano 2000 é percebido nas representações comuns 12 Previsões talvez um tanto milenaristas como a de Amador (1997) descreviam o fim do espelho d’água da Baía de Guanabara para daqui a 50 anos, se os atuais índices de poluição nessa baía permanecessem.

como um “divisor de águas” na situação de degradação da baía, so- bretudo no que tange à reprodução da maioria das espécies de peixes. As lutas pela significação social desse desastre também são centrais nos conflitos aqui analisados. São habituais e evidentes os esforços a fim de rememorar relatos e declarações públicas da época13.

A Baía de Guanabara com seu estado de degradação merece atenção pública e compõe agendas políticas de longa data. Seus recursos, águas e beleza têm sido importantes elementos das agendas governamentais (SEDREZ, 2004). Atualmente, as línguas negras e outras manchas de poluição, além da mortandade de peixes, são constantemente noticiadas pela mídia local. Inclusive os índices de balneabilidade das praias são divulgados regularmente. O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), criado no início da década de 1990, tornou-se assunto público de grande circulação à época de seu lançamento, diferentemente do caso de outra baía vizinha, Sepetiba, cujo programa de despoluição, apresentado na mesma época, ficou praticamente desconhecido.

Todos esses fenômenos anteriormente descritos sugerem grande visibilidade social para a Baía de Guanabara, sobretudo no que tange às suas belezas naturais e à sua degradação. Mas, se por um lado o meio ambiente da Baía de Guanabara é objeto de atenção social, por outro lado o contingente de pescadores artesanais que sobrevivem de seus recursos tornou-se invisível socialmente ao longo do tempo: no campo das relações de trabalho, expressiva parcela desses pescadores permanece na informalidade e as políticas públicas para o setor ainda são deficitárias, insuficientes e precárias. Na cidade do Rio de Janeiro – a mais populosa e importante dentre as que circundam a baía – o universo da pesca na Baía de Guanabara ainda podia ser visualizado no mercado de peixes da Praça XV, mas 13 São frequentes, tanto em conversas informais, como nos poucos trabalhos existentes sobre os pescadores da Baía de Guanabara pós-ano 2000, a rememoração do acidente com óleo e a indicação da responsabilidade pela situação de degradação atual da baía. Ver Soares (2012), Giuliani (2005), Pinto & Torres (2010).

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no início da década de 1990 fecharam-se as portas para o mínimo contato entre o cidadão comum e o pescador. Ironicamente, a retirada do mercado de peixes da Praça XV ocorreu em virtude das obras de preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (UNCED 1992), a mais importante conferência internacional sobre meio ambiente, sugerindo a entrada em cena das preocupações ambientais paralelamente ao abandono dos pescadores artesanais, que então se invisibilizaram por completo na região da Baía de Guanabara.

O derramamento de óleo de 2000: espetacularização