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A narrativa dos pescadores

Na sequência, é apresentada uma breve sistematização dos problemas descritos pelos pescadores durante a realização das oficinas e a identificação de suas causas. Esses problemas estão exercendo impacto direto sobre a atividade pesqueira no estado.

Problemas Causas

Nos pesqueiros tradicionais (baía de Vitória e Vila Velha), hoje, não se pode mais pescar; Falta do pescado (cadê o peixe?).

Aumento do custo e do tempo para pescar pela necessidade de barcos maiores para ir mais longe ao mar.

Período do defeso não é adequado à reali- dade da pesca.

Dificuldade para ter a licença de pesca de camarão.

Dificuldades para tirar os documentos para legalizar a embarcação e a licença para pes- ca; falta de informação e divulgação quanto ao defeso e quanto à legislação ambiental frente aos modos tradicionais de pesca e coleta/processamento dos mariscos.

Prejuízo com o material de trabalho (pela danificação que o abalroamento de grandes navios provoca).

A dragagem do porto de Vitória;

A pesca predatória (traineiras) e os grandes empreendimentos tais como portos (construção e expansão, incluindo dragagem), extra- ção de petróleo e gás (incluindo plataformas e estudos sísmicos) e atividade portuária (movimentação de navios cargueiros). Situação é encontrada em Vitória, Anchieta, Regência e Linhares, além da ausência de fiscalização das traineiras e do esporte aquático. Impactos socioambientais (poluição dos mangues, assoreamento dos rios, lixo e resíduos metálicos jogados ao mar pelos navios cargueiros).

Praticamente todas as comunidades reclamaram do que conside- ram uma inadequação do período de defeso.

No caso da Ilha das Caieiras, na baía de Vitória, a lei ambiental proibiu a pesca para os pescadores artesanais.

Burocracia; falta de conhecimento (informações desencontradas e divergentes); rigidez da legislação ambiental; excesso de institui- ções e órgãos que atuam na pesca, como Capitania dos Portos (Mi- nistério da Marinha), IBAMA (Ministério do Meio Ambiente), SEAP (Secretaria Especial da Pesca – Ministério da Pesca e Aquicultura), Secretaria Estadual da Agricultura e Pesca, Iema (Instituto Estadual do Meio Ambiente) e Polícia Ambiental (MMA). O resultando disso são as práticas de desobediência às leis e às proibições, “ter que pescar escondido por não ter conseguido a licença”.

A atividade portuária e as atividades de manobra de navio quando a Petrobras faz as pesquisas sísmicas.

Não participação dos pescadores na pro- posta e no planejamento dos projetos de desenvolvimento e infraestrutura. Especula- ção imobiliária como a que está acontecen- do intensamente na praia de Itapoã.

Oposição do poder público à cultura da pes- ca artesanal e às condições de trabalho nela empregadas.

As propostas de urbanização não incluem a participação dos pes- cadores da praia de Itapoã, em Vila Velha. Assim, a modernização que os gestores planejam para a área não os inclui como mora- dores ou como trabalhadores do local. Por exemplo: confiscam as mesas de madeira onde os pescadores fazem a limpeza do pescado. A urbanização da praia de Itapoã inclui ciclovia, chuvei- ros e iluminação especial. Esses equipamentos são suspensos no trecho em que os pescadores moram.

Favorecimento dos grandes empresários da pesca.

Uso da associação para interesses pessoais (desmobilização das pessoas vinculadas à associação).

Aqui não se diferencia muito causa e resultado.

Descrença dos pescadores em resolver seus problemas por terem tido muitas gestões que não deram certo, lideranças que não representavam os reais interesses da comunidade; projetos que param com a mudança de governo; os novos líderes não dão continuidade e culpam a desarticulação da comunidade.

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Os pescadores narraram a dificuldade atual para encontrar o peixe. Falaram que “o peixe sumiu”, que “o peixe ficou mais esperto”, que não morde a linha facilmente, que têm que esperá-lo mais, etc. É comum essa narrativa ser contraposta a um tempo do passado em que havia muito peixe e era comum voltar com o barco lotado de peixe após uma pescaria de apenas algumas horas. Porém, também é comum a avaliação de que eles não tinham o que fazer com tanto peixe e que o peixe era muito barato porque não tinham como vendê- lo diretamente ao consumidor. Com a diminuição da quantidade de pescado próximo da costa, o caminho aos pesqueiros está ficando mais longo, mais demorado, mais custoso e mais perigoso para seus pequenos barcos. Estes, por isso, têm sido substituídos por barcos maiores e mais equipados.

As causas sugeridas por eles para explicar a diminuição do pescado nos pesqueiros tradicionais próximos à costa foram: a intensa movimentação de navios próximos aos pesqueiros da costa e da boca da baía de Vitória; a frequente dragagem para aprofundamento do fundo, e a atuação das traineiras próximas à costa.

“Nós tamo sofrendo porque tem uma draga ali que ela tá passando em cima do nosso pesqueiro, porque tá abrindo o canal na baía de Vitória, ela tá abrindo de ponta a ponta, então nossas pescaria passava por ali, né? Então ela tá passando por cima, tá quebrando todo o fundo [...]. Tem dois ano que a draga tá ali por cima, e depois que ela for embora, demora mais dois ano pra recuperação desse terreno. É muito difícil...(recuperar o fundo marinho...). Aí o pescador tem que procurar outro lugar pra pescar, entendeu?” Pescador, ES. 2012

“... isso (a dragagem) até já foi denunciado no IBAMA e o Iema, porque eles (a empresa de dragagem) tão pegando a lama toda ali do fundo, e estão..., sabe que primeiro tem que ter uma pessoa do Iema dentro (a fiscalização), é obrigatório, né? Mas não tem ninguém, então de noite mesmo, eles pega na baía de Vitória, e quando chega aqui na frente, eles joga tudo fora. E quando chega lá no lugar onde têm que jogar, ele (o barco) já tá fazendo curva pra voltar. Eles na beira, ali, já levanta tudinho (a lama). Isso aqui os

pescadores têm reclamado comigo direto,[...] (estão) jogando lama em cima dos pesqueiro, atrapalhando a coisa todinha... Impacto ambiental é essas duas draga dentro da baía de Vitória, que tá quebrando tudo.” Pescador, ES. 2012

“Lá em Aracruz tão fazendo aquele porto lá que é grande pra danar, nós não consegue parar nada, nós vai entrar com a ação e...” Pescador, ES. 2012

Para os entrevistados em Anchieta, as dragagens executadas pela empresa Samarco também interrompem e impedem a vida marinha (PEREIRA, 2014).

Para os entrevistados em Regência, ao norte do estado, as pesquisas sísmicas da Petrobras são devastadoras para os recursos marinhos, como já salientamos em outros trabalhos (TRIGUEIRO, KNOX, 2013).

Assim as atividades portuárias, com movimentação de navios e constantes dragagens, são apontadas como as principais causas para o desaparecimento dos peixes nessa região próxima à costa e para o problema da perda de material de pesca, como redes e outros apetrechos de trabalho. Além disso, a maioria dos entrevistados reclamou da presença das traineiras à margem da costa, burlando a legislação ambiental. Dizem que a fiscalização sabe da existência delas, mas, mesmo assim, elas continuam sendo usadas para pesca em lugares proibidos devido à falta de fiscalização. Referem-se às traineiras como sendo de propriedade de um “senador”. Essa informação não pode ser comprovada, mas o fato é que ela indica o poder político acima da legislação e, por isso, indica também a assimetria de poder existente entre os pescadores artesanais e a pesca industrial.

Para os pescadores, o defeso representa um problema, não uma solução. Isso porque eles raramente percebem, de forma concre- ta, um aumento de produtividade na extração do pescado no período seguinte ao tempo de proibição de pesca. No argumento utilizado, os pescadores comentam sobre a “extralocalidade” que a proibição tem,

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ou seja, sobre o fato de essa proibição não se referir especificamente às condições biológicas e geográficas daquela localidade e período. Por isso, não acreditam na eficácia da interrupção da extração. Com a ho- mogeneização do período do defeso independente da geografia regio- nal, o resultado esperado com a medida decresce em sua credibilidade. Talvez também seja a falta da mesma que diminua as possibilidades de que o defeso seja praticado por todos e em toda a sua extensão.

“Aqui nunca se bateu (a polícia não fiscalizava) na baía de Vitória. Os pescadores jogavam sua tarrafa aqui, jogava sua redinha... Aí daí eu conversei, vem cá, você sabe o que é impacto ambiental? Impacto ambiental é o cara pegar três carapebinha? Você acha que isso é impacto ambiental? O dia que parar de passar essas dragas aí, os peixe voltam tudo. O problema não é rede, uma tarrafinha que o cara joga não...” Pescador, ES. 2012

Essas narrativas nos permitem saber que houve um tempo em que se pescava nos lugares onde hoje é proibido. Tais narrativas, a partir do olhar do pescador, criaram a invenção da proibição da pesca e inverteram os verdadeiros causadores de impacto ambiental.

Dificuldades de toda sorte de exigência burocrática são rela- tadas. Ao que parece há uma divergência de normas e exigências en- tre agências fiscalizadoras, reguladoras e credenciadoras marítimas e ambientais.

“... olha, tem barco aqui..., nós temos. Sessenta por cento dos barcos não tem licença de camarão, porque eles (os órgãos responsáveis) não dão, tem mais de vinte anos que eles não dão... É a burocracia, tudo aqui é ruim...” Pescador, ES. 2012

Somando-se ao conflito de posições, regras e normas das agên- cias, há ainda a baixa escolaridade e a falta de acesso aos meios infor- mativos digitalizados e disponíveis na web. Por isso, esses trabalhadores fazem questão de enfatizar as dificuldades para ter a licença de pescador de camarão e para obter os documentos que legalizam a embarcação.

Eles reconhecem a falta de participação dos pescadores na luta pelos seus interesses e analisam que as causas desse problema se devem a um conjunto de fatores: falta de vontade do poder público para ouvir o que eles, pescadores, têm a dizer e a opinar; manipulação das questões que os envolvem por parte do governo e dos políticos, e má gestão das associações de pescadores, ressaltando a pouca vontade para o bem comum nas lideranças e a priorização de interesses individuais.

No município de Vila Velha, em relação à participação, por exemplo, os pescadores falaram da conduta de agentes municipais: estes, claramente, atuam contra a presença daqueles na beira-mar, desmobilizando-os, provocando divergências, cooptando lideranças, seja para expulsá-los de suas moradias, seja para impedi-los de vender diretamente o pescado ao consumidor nas barracas montadas na areia da praia, perto do calçamento. Não são mostradas alternativas. As ações que demonstram isso são o confisco das barracas, por exemplo, para impedir a atividade de venda do peixe, assim como a não urbanização da área em que moram, em frente à praia de Itapoã, como a não instalação de chuveiros, de ciclovia e de outros serviços instalados em outras partes dessa praia.

As narrativas em confronto: as mudanças nos