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Capítulo 2 – CONTEXTUALIZAÇÃO

2.2. Os movimentos de reforma no papel do Estado

2.2.1. As novas políticas de desenvolvimento urbano

Os movimentos de reforma política encaminhados segundo a tendência neoliberal afetaram profundamente o modo de atuação dos governos sobre as cidades, implicando em um conjunto de alterações no formato de condução do planejamento urbano. Uma nova concepção de ação sobre as cidades, apoiada em novos modelos e padrões de intervenção, começou a se impor como resposta dominante para a necessidade de renovação no formato de atuação do poder público de acordo com os imperativos da globalização. Enquanto no campo cultural, esse movimento corresponde a uma mudança de estilos (do modernismo para o pós- modernismo); na esfera política, ele se traduz como uma reorientação no perfil de envolvimento do Estado com os assuntos da realidade urbana (ênfase no nível local) e com os direcionamentos do desenvolvimento urbano (associados à escala global).

Silva (2004) fala do estabelecimento de novos regimes urbanos em todo o mundo, a partir da emergência de novas coalizões de interesses articulados em nível local (a partir dos anos 1980), e da constituição de novos arranjos políticos locais, em que se destacariam as parcerias público-privado. As novas tendências de ação sobre o urbano estariam refletidas, segundo o autor: a) na idéia de projeto urbano, dominante em países como a França e a Itália; b) na visão de planejamento estratégico, difundida em países da Península Ibérica e América Latina e; c) dentro da ciência política britânica, na associação dos conceitos de governança urbana e regimes urbanos, apoiada no sistema de parcerias público-privado. Esse processo adviria, entre outros fatores, do reconhecimento do potencial de mobilização representado pelos estabelecimentos dos “regimes de governança local” e pela constatação da existência de uma tendência, no campo da gestão urbana, de multiplicação do número de atores intervenientes, assim como de uma complexificação dos arranjos institucionais e das interações inter-atores (SILVA, 2004, p. 7). Estaria se configurando, portanto, numa análise mais geral, uma reorientação do formato de atuação sobre as cidades, refletido no nível local, e de acordo com as especificidades dominantes, em novos regimes urbanos.

As cidades norte-americanas tornaram-se pioneiras nesse processo de reorientação, e suas soluções para o encaminhamento das mudanças almejadas, passaram a constituir um modelo amplamente difundido e apropriado em diversos lugares do mundo. A conjuntura política do país naquele momento ajuda a esclarecer as direções tomadas.

Segundo Compans (2005), nos Estados Unidos, a reorientação da política urbana que marcou a década de 1980 acompanhara o esgotamento do modelo de desenvolvimento fordista e a crise fiscal do Estado. A reação do governo norte-americano a essa situação

prenunciaria uma mudança de rumo na política urbana do país. O governo de Richard Nixon (1969-1974) teria marcado o início do processo de desmantelamento dos sistemas nacionais de combate à pobreza e de desengajamento do governo federal na oferta de habitações públicas. Em seguida, Gérald Ford (1974-1976) decretaria a substituição dos programas públicos de renovação urbana que eram conduzidos pelos governos municipais por subvenções ao desenvolvimento local geridas pelo setor privado – como as Community Development Block Grants e as Urban Development Action Grants. Ronald Reagan (1981- 1989), finalmente, redirecionaria radicalmente a política urbana norte-americana, em uma reforma administrativa que rompia com o compromisso político do pós-guerra ao prever medidas como: contenção dos gastos públicos, e nomeadamente, dos gastos sociais, desregulamentação do mercado de trabalho, redução de impostos e privatização de empresas estatais (COMPANS, 2005).

Essa nova política implicou para as localidades em uma perda substancial da receita proveniente das transferências do governo federal num momento em que se ampliavam as responsabilidades dos governos subnacionais, em busca da descentralização administrativa. Esses fatores impulsionaram os governos locais a assumir o papel de promotores do desenvolvimento econômico, como forma de assegurar a manutenção ou o aumento do nível de emprego. E como solução para a crise então vigente, propunha-se a implementação de um sistema gerencial de governo em substituição ao burocrático. Para Bresser Pereira (2001, p. 21), a administração pública gerencial aparece num momento de crise do Estado como “estratégia para reduzir o custo e tornar mais eficiente a administração dos imensos serviços que cabiam ao Estado”. Em nome dessa busca por eficiência, recorre-se, então, aos mecanismos de atuação das empresas privadas e ganha força a idéia de “gerenciamento público empreendedor” (OSBORNE; GAEBLER, 1995). Essa nova forma de governo é descrita por Osborne e Gaebler (1995, p. 19) como inovativa, imaginosa e criativa:

Assume riscos. Transforma as funções da cidade em fontes de receita, em vez de pesos sobre o orçamento. Despreza as alternativas convencionais, que se limitam a oferecer serviços básicos. Trabalha de acordo com o setor privado. Usa noções comerciais sólidas. Privatiza. Cria empresas e operações geradoras de recursos. Orienta-se pelo mercado. Focaliza a avaliação de desempenho das suas ações. [...] Faz com que as coisas funcionem e não teme sonhar o grande sonho.

Diante desse quadro, novos paradigmas são criados: descentralização e afirmação do poder local, parcerias entre os setores público e privado, competitividade interurbana, empreendedorismo, entre outros. As mudanças no modelo de administração estatal contribuem para o surgimento de novas formas de planejamento, que se pressupõe que sejam

adaptadas às necessidades e exigências atuais. E, segundo Maricato “[...] esse processo está sujeito às mesmas influências de produção ideológica de idéias que mascara o conflito político” (2000, p. 133).

Assim, foram criados programas com o objetivo de estimular o emprego no setor privado através de diferentes formas de parceria público-privado. O investimento privado passou a ser visto como única fonte de financiamento disponível para a renovação urbana, implicando em uma vinculação mais estreita da política urbana com os objetivos de crescimento econômico (COMPANS, 2005).

Com efeito, os governos locais norte-americanos ampliaram extraordinariamente o uso de instrumentos fiscais para estimular as atividades privadas em novas construções – como concessão de empréstimos públicos, renúncia fiscal e financiamento em leasing –, passaram a oferecer contrapartidas em terrenos, infra- estruturas e regras mais flexíveis para viabilizar empreendimentos em áreas consideradas estratégicas para a economia local – como por exemplo, nas Enterprise

Zones, como eram chamados os distritos de negócios que gozavam de regime

jurídico-urbanístico especial –, e lançaram-se na formação de ‘parcerias’ com empresas privadas para a promoção de projetos de desenvolvimento (COMPANS, 2005, p. 84-85, grifo do autor).

A prática de “parcerias público-privadas”, embora já tradicional nos Estados Unidos, foi diversificada e intensificada com a crise do financiamento público dos anos 70 e 80. “Ela se transformou no principal fundamento da política urbana norte-americana, dada a natureza agora privada de seu financiamento” (HARVEY, 1996; FAINSTEIN; FAINSTEIN, 1994, apud COMPANS, 2005). A forma privilegiada de parceria público-privado nesse período foram as agências de desenvolvimento, que não integravam a administração municipal, mas eram mantidas por esta, sendo seu presidente escolhido pelo prefeito. Obtinham financiamentos mediante contratos e seu conselho de administração era composto por profissionais oriundos do setor privado. Cabia-lhes escolher terrenos apropriados aos novos empreendimentos, definir programas financeiros, melhorias da infra-estrutura e vantagens a serem acordadas com os investidores, e com estes negociar contrapartidas como a manutenção do nível de emprego, a formação profissional de trabalhadores ou ações concernentes à preservação do meio ambiente (FAINSTEIN; FAINSTEIN, 1994, apud COMPANS, 2005).

Para Compans (2005, p. 86, grifo nosso), uma das conseqüências desse tipo de parceria reflete-se na mudança de escala do planejamento, que

[...] em vez de buscar ordenar os elementos espaciais dispostos em amplas zonas, voltou-se para projetos circunscritos a áreas específicas – tais como a revitalização de áreas centrais, a renovação de antigas zonas industriais e portuárias, a construção de teleportos etc. –, nos quais se poderia assegurar uma rentabilidade atraente para o investimento privado.

Essa busca generalizada pelo financiamento privado estaria caracterizando a passagem de uma política nacional de renovação urbana para uma outra baseada no “mercantilismo local”. Nela, a relação entre Estado e mercado estaria sendo profundamente alterada pela prioridade do primeiro na “facilitação” do segundo antes do que em sua regulação (COMPANS, 2005).

No caso dos países da Península Ibérica, as mudanças no formato de atuação sobre as cidades se dão mais internamente à esfera Estatal, não sendo delegado ao mercado um poder de interferência tão amplo sobre os assuntos da agenda pública. O exemplo da Espanha, e em especial, da cidade de Barcelona, tornou-se paradigmático desse processo de readequação das políticas públicas urbanas, orientado pela visão de planejamento estratégico.

Segundo Capel (2005), após o restabelecimento da democracia na Espanha, Barcelona passou por uma fase de “urbanismo de urgência”, que tratava de atender às reivindicações populares mais imperiosas em matéria de equipamento social. Em seguida, deu-se lugar a um urbanismo de regeneração do centro da cidade, com a intervenção em ruas e praças, e de requalificação da periferia. “En una primera fase predominaron las operaciones puntuales, las intervenciones en algunas plazas seleccionadas, como sectores de estímulo a la rehabilitación, con la pretensión de que tuvieran efectos difusores sobre el tejido urbano circundante […]” (CAPEL, 2005, p. 14). Essa linha de atuação teria resultado, segundo Capel (2005), em 150 operações de recuperação do espaço público na década de 1980, e teria gerado uma tensão no debate entre a concentração e a dispersão dos investimentos.

A partir de meados dos anos 1980, com o regime democrático consolidado e uma situação econômica mais estável, entrou-se numa fase de operações mais ambiciosas, com grandes intervenções, abertura de ruas, etc. A candidatura de Barcelona a sede dos Jogos Olímpicos, concedida em 1986, “permitió activar una serie de proyectos de intervención en la ciudad y desencadenó una fase de ritmo intenso de construcciones, con apoyo de inversiones públicas” (CAPEL, 2005, p. 15). As ações em torno dos Jogos Olímpicos se traduziram num processo de reconversão da cidade. Ao mesmo tempo, a localização da Vila Olímpica foi integrada como parte do processo de recuperação do setor litoral, de abertura para o mar; esse processo foi continuado posteriormente a partir dos investimentos públicos da Generalitat e do Estado, visando à realização do Fórum das Culturas em 2004.

Capel (2005, p. 22) coloca que uma série de fatores teria contribuído para o sucesso do novo sistema de planejamento urbano implantado em Barcelona, mas que

Todo ello supone la existencia de un medio local dinámico, con aptitud para la innovación y el crecimiento, con una administración pública local y regional bien organizada, redes de cooperación entre empresas y organizaciones, talante emprendedor; es decir, ha habido precisamente todo lo que hoy se valora al hablar de los factores del desarrollo endógeno.

No “modelo Barcelona” parte-se da convicção de que a melhora do espaço público é relevante para a resolução dos problemas econômicos e sociais, e o objetivo priorizado seria estimular e garantir o crescimento econômico (CAPEL, 2005).

Ha habido en ellos [nos planos estratégicos elaborados] una preocupación por la competitividad internacional en el proceso de globalización, apoyando la reconstrucción productiva, las grandes infraestructuras, los grandes proyectos, y la negociación con los agentes privados, a la vez que la idea de un planeamiento flexible y abierto, con énfasis en la gestión y la concertación (CAPEL, 2005, p. 30).

Em resumo, o processo de recuperação urbana e econômica de Barcelona, que fez com que o modelo de planejamento estratégico ganhasse repercussão mundial, estaria apoiado, segundo Compans (2004, p. 25) numa conjuntura política marcada “[...] por compromissos sociais estabelecidos entre governo local e coletividade, por um projeto estratégico de inserção competitiva na economia globalizada e por um extraordinário aporte de recursos públicos em função da realização dos Jogos Olímpicos de 1992”. E esse modelo de atuação transformou-se em referência para os países latino-americanos, tendo inspirado diversos planos de municípios brasileiros.

Dessa forma, percebe-se que as reformas de Estado encaminhadas segundo a ideologia neoliberal refletem-se claramente na forma de atuação dos governos sobre as cidades, criando uma visão paradigmática de desenvolvimento urbano, cuja influência não se restringe aos países desenvolvidos. De fato, os novos formatos de atuação sobre o urbano aplicados nos Estados Unidos ou em países da Europa, criaram modelos de planejamento importados por diversos países, e em especial os latino-americanos, como solução para a inserção na economia globalizada. Vejamos, pois, como isso se reflete na realidade brasileira.