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Capítulo 2 – CONTEXTUALIZAÇÃO

2.2. Os movimentos de reforma no papel do Estado

2.2.2. Inovações nos arranjos de gestão e governança no Brasil

Os movimentos de reestruturação econômica e política observados em países de todo o mundo não deixaram de afetar também a América Latina e o Brasil, em particular. Apesar de não ter atingido o grau de maturação que adquiriu nos países desenvolvidos, o Estado do Bem-estar Social, ou Estado Desenvolvimentista, característico do período de crescimento industrial latino-americano, também entrou em crise na década de 1980 e seu aparato técnico- burocrático passou a ser revisto, sob a ótica então dominante. Segundo Diniz (1999, p. 15),

De agente promotor do desenvolvimento, o Estado passou a ser encarado como o principal entrave para o desencadeamento de um novo ciclo de crescimento. Dada a exaustão do modelo baseado no intervencionismo estatal inaugurado na década de 30, a recuperação da matriz liberal seria apontada como a solução para os impasses do presente e para a construção de uma nova sociedade nas próximas décadas. Assim, observa-se no Brasil, como em outros países, uma mudança de rumo na política interna, cuja nova pauta passou a ser dominada por temas como desestatização, reinserção no sistema internacional, abertura da economia, desregulamentação e privatização (DINIZ, 1999). Em substituição ao modelo de Estado Forte, implementado na década de 1930, e fundamentado na concentração do poder decisório, no acúmulo de prerrogativas e no controle sobre recursos estratégicos, a reforma encaminhada a partir da década de 1980 gerou uma dinâmica de reformulação institucional, que resultou, de acordo com Diniz (1999, p. 19), em “um Estado fragmentado, caracterizado por alto grau de permeabilidade aos interesses privados dominantes”.

[...] a ascensão de governos conservadores em países de posição estratégica no jogo do poder mundial, como os Estados Unidos, a Inglaterra e o Canadá, criou condições para o predomínio do diagnóstico neoliberal, segundo o qual o gigantismo estatal e o excesso de gastos seriam o grande mal a ser debelado. Coerentemente com esse tipo de interpretação, a terapia proposta consistiu na drástica redução do tamanho do Estado, paralelamente ao esforço para restaurar a primazia do livre mercado nas decisões relativas à alocação de recursos (DINIZ, 1999, p. 178).

Num contexto mundial marcado por importantes transformações, o ambiente econômico brasileiro sofre grandes mudanças nos anos noventa. Dentre as principais destacam-se uma política de abertura comercial intensa e rápida, a priorização à

integração competitiva, reformas profundas na ação do Estado e finalmente a

implementação de um programa de estabilização que já dura três anos. Paralelamente, o setor privado promove uma reestruturação produtiva também intensa e muito rápida (ARAÚJO, 1999, p. 249-250, grifo da autora).

Araújo (1999, p. 245) discute a idéia de ‘desintegração competitiva’, ao trabalhar “[...] a hipótese da fragmentação espacial do país em tempos de inserção competitiva, mas sobretudo de inserção passiva do Brasil nos mercados em globalização.”. Segundo Araújo (1999), as questões em torno da concentração de investimentos em áreas já mais dinâmicas ou da desconcentração em favor de focos regionalizados fariam parte do dilema do Governo Federal em promover a integração competitiva do país. Porém, as estratégias formuladas no final da década de 1990 estariam revelando uma concentração dos esforços públicos em focos dinâmicos, seletivamente escolhidos pelos investidores privados, fortalecendo a atração exercida por áreas já estabelecidas e levando ao aprofundamento da crise em espaços não competitivos, mas significativamente já ocupados demográfica e economicamente. Para Bitoun (2001), o modelo adotado pelo Governo Federal representa uma parte do “ambiente externo” a ser considerado na análise da competitividade, que sob o discurso técnico da

integração competitiva, mantém ou amplia a concentração de investimentos de acordo com os interesses dos grandes empresários.

Nesse momento, “o foco da atenção recai sobre o empresariado, sobretudo em sua fração industrial, tendo em vista o papel que lhe caberia desempenhar na transição para um modelo cuja eficácia depende da pujança do mercado” (DINIZ, 1999, p.12). Diniz questiona, no entanto, a capacidade da classe empresarial para assumir um papel ativo no processo de reestruturação econômica e reordenamento institucional, apontando a condição de debilidade, típica da classe empresarial latino-americana. Essa situação refletiria, pois, para a autora, “um descompasso entre a adesão ideológica ao neoliberalismo e um padrão de comportamento pautado pela prevalência de práticas corporativas” (DINIZ, 1999, p. 13).

A adesão aos princípios neoliberais de administração Estatal, na condução da reforma política brasileira, estaria sujeita, portanto, aos condicionantes da relação histórica entre Estado e empresariado no Brasil, marcada pelo corporativismo elitista. É importante, ainda, destacar que, nesse período, o Brasil, bem como outros países da América Latina recém-egressos de ditaduras militares, passava por um processo de redemocratização do Estado, encaminhado no bojo das transformações gerais da política pública.

Nesse sentido a descentralização aparece como prerrogativa para o enfrentamento da crise fiscal do Estado e das críticas em torno da “[...] capacidade do Estado moderno de desempenhar suas funções a partir de estruturas centralizadas de decisão e operação [...]”, ao mesmo tempo, em que é apontada “[...] como um instrumento de democratização do processo decisório das políticas públicas, em direção a formas mais avançadas de participação social.” (ARRETCHE, 1996, p. 76).

A autora fala, ainda, da força com que a idéia de ligação entre os processos de descentralização e de democratização aparece nos estudos sobre o tema, citando o trabalho de Jordi Borja (1984). “Nesta visão, [...] a descentralização seria o processo institucional de viabilização da participação social, qual seja, uma forma mais avançada de democracia: não mais representativa, mas participativa.” (ARRETCHE, 1996, p. 77). Arretche defende, no entanto, que descentralização e democratização são processos distintos, apesar de possuírem relação entre si. Coloca que: “[...] a noção de democracia diz respeito à natureza do envolvimento dos indivíduos na gestão da vida coletiva. A descentralização, por sua vez, diz respeito à forma pela qual tal envolvimento pode ocorrer.” (1996, p. 78, grifo da autora). Ou seja, as reformas conduzidas no sentido da descentralização da administração Estatal,

baseadas na transferência de responsabilidades para os gestores locais, não implicam necessariamente em uma maior democratização do processo decisório.

A tendência à descentralização aparece, segundo Leal (2003), com o objetivo de reestruturar e redemocratizar o Estado, segundo duas propostas predominantes: uma de orientação neoliberal e outra de conotação progressista. Para a autora, na ótica neoliberal, “descentralizar significa transferir responsabilidades públicas para o setor privado, segundo a lógica da eficiência e do lucro [...]” (LEAL, 2003, p. 51). Já o debate progressista sobre descentralização, defende a idéia de democratização, com base no argumento de que “a descentralização pode favorecer o desenvolvimento de modelos econômicos mais equilibrados e socialmente mais justos, através da multiplicação de estruturas de poder (Massolo, 1988) e da redefinição das relações Estado/Sociedade” (LEAL, 2003, p. 51).

Assim, se por um lado, há um claro movimento de inserção do setor privado nos assuntos da agenda pública, por outro, evidencia-se também o interesse pelo incentivo à participação da sociedade na definição das metas coletivas. Ou seja, com a reforma da administração pública no Brasil, projeta-se, de certo modo, um movimento de construção das estruturas de governança locais.

Segundo Leal (2003), as inovações nas práticas de gestão e governança urbana, introduzidas nas experiências municipais, expressam hoje duas direções principais: uma de tendência democratizante, participativa, refletida em diversas práticas de descentralização e participação popular; e outra, presente nos planos estratégicos, derivada da necessidade de estabelecer novas formas de governança às cidades, tornando-as protagonistas do chamado empreendedorismo municipal.

Essa combinação de descentralização, democratização, empreendedorismo urbano e planejamento estratégico está inserida na construção do contexto maior em que irão se dar as experiências de reestruturação de áreas portuárias no Brasil e no mundo, impondo fatores indutores e condicionantes locais aos processos desencadeados em cada cidade. No Brasil, esses movimentos refletiram-se, por exemplo, em medidas visando à desregulamentação e a privatização dos serviços portuários (DINIZ, 1997), o que impõe de forma ainda mais acentuada a necessidade de reformas nas estruturas e nas relações entre portos e cidades. Além disso, as características da governança construída entre o Estado, o empresariado e a população (de um modo geral) no Brasil, irão refletir-se na condução dos processos de reestruturação de áreas portuárias em nossas cidades, seja induzindo a determinados modelos, seja dificultando a aplicação de outros. Voltaremos a discutir esse tema no capítulo três.