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As possibilidades da reforma agrária nos anos 1990: o contexto político

No início da década de 1990 as perspectivas de realização de mudanças na estrutura da posse da terra no campo não eram promissoras. O governo Sarney agonizava sob o peso de uma

186 inflação descontrolada, alimentada pelo fracasso das medidas econômicas de impacto que visavam combatê-la e, ao mesmo tempo, promover a estabilização da economia. Lançado em fevereiro de 1986, o Plano Cruzado, tal como foram batizadas estas medidas, começava pela substituição da moeda anterior, o cruzeiro, pela moeda nova, o cruzado, que era deflacionada, perdendo três zeros. Também incluía a criação do seguro-desemprego, um abono de 15% para o salário mínimo, e um gatilho salarial que deveria ser acionado toda vez que a inflação alcançasse 20%, a fim de evitar a corrosão dos salários. No entanto, a grande estrela do plano era o congelamento dos preços, tarifas e serviços. De modo geral, tais medidas entusiasmaram fortemente a população, que assistia, de forma inédita, a inflação cair, o seu poder aquisitivo se elevar e as possibilidades de consumo se expandirem (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p. 490).

Como consequência a popularidade do governo Sarney aumentou consideravelmente, potencializando o prestígio dos partidos políticos a ele vinculados de maneira mais direta. Inebriado com o sucesso inicial do plano, Sarney passou a administrá-lo eleitoralmente. No entanto, o boicote dos empresários ao Plano, desde que tinham suas margens de lucro reduzidas, minaram o congelamento dos preços. Sobreveio o desabastecimento, sobretudo de alimentos, e, consequentemente, o mercado paralelo de produtos, regido pelo ágio. Em novembro de 1986, após as eleições, sob o risco de agravamento dos problemas da economia, o governo reagiu e lançou o Plano Cruzado II. Aumentou o valor das tarifas dos serviços públicos, suspendeu o congelamento e autorizou o reajuste dos preços, represados artificialmente para favorecer eleitoralmente o PMDB. A conjunção dessas medidas reativou fortemente a inflação, e passou a ser conhecida como um dos primeiros “estelionatos eleitorais”, da história recente do país. Em seu melancólico ocaso, fustigado pela inflação elevada, pelo aviltamento político e por denúncias de corrupção, o governo Sarney naufragava definitivamente. Deixava, ainda, como uma pérfida herança, um amplo sentimento de rejeição dos políticos e de descrédito em relação às instituições em grande da parte da população, o que iria se refletir nos resultados das eleições presidenciais de 1989. Sem dúvida, a Nova República exauria-se precocemente e parecia que o processo de reabilitação política e democrática deveria começar de novo.

Foi justamente neste clima que se iniciaram as lutas políticas que deveriam encaminhar a disputa pela presidência da república no novo decênio. As tradicionais lideranças políticas estavam colocadas sob suspeição e o ambiente político se tornava favorável ao surgimento de propostas duvidosas de salvação da economia, que provavelmente teriam ampla receptividade no quadro de desesperança que medrava no país. E foi justamente o que ocorreu, em que pese

187 as aparências em contrário. Desafiando as potentes estruturas partidárias dominantes, um candidato de expressão política secundária, concorrendo por uma sigla irrelevante, o Partido da Reconstrução Nacional – PRN, mas utilizando de maneira habilidosa os instrumentos de marketing até então pouco usados na política brasileira, conseguiu galvanizar a opinião pública em torno de uma pregação moralista que prometia acabar com a inflação, combater sem tréguas a corrupção e desenvolver um programa de governo que conduzisse o país a uma condição semelhante à dos países capitalistas avançados. Mais uma vez, formava-se uma expectativa de se mudar tudo para, no final, não se mudar nada. Só que, desta vez, pela fraude.

Empossado em março de 1900, Collor lançou, de imediato, mais um plano de estabilização da economia. As principais medidas eram o congelamento dos salários e preços, o aumento das tarifas públicas e o bloqueio de grande parte do dinheiro existente em contas correntes, cadernetas de poupança e aplicações financeiras. Valendo-se da utilização de mecanismos que transferiam o ônus da crise para os trabalhadores, o governo de Collor acreditava que derrubaria a inflação de um só golpe. Contudo, tal como assinalado por Schwarcz e Starling (2015, p. 493-494),

Dez meses depois, a inflação estava de volta, a crise econômica tornou-se endêmica, e as lutas por reajustes salariais explodiam em todo o país. O governo ainda tentou um novo plano econômico – Collor II –, ao mesmo tempo que preparava a privatização das empresas estatais, fechava autarquias e fundações, e abria as portas do país ao mercado internacional. A política econômica seguia desnorteada: para cada subida de preços, o governo adotava uma medida nova, violenta e ineficaz – congelamento de salários, liberação de preços, aumento de impostos.

Diante desse quadro, tornava-se bem evidente que a reforma agrária não tinha um lugar no programa do governo. Longe disso, uma das primeiras medidas de Collor foi a extinção da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural – EMBRATER, uma estatal que coordenava o sistema nacional de apoio aos camponeses no país, que pela própria natureza de suas funções poderia desempenhar um papel de grande importância no caso da realização de um programa de reestruturação fundiária no campo. Assim, a sustentação da reivindicação da reforma agrária continuava a ser mantida principalmente pela atuação do MST.

Apesar do MST se expandir para todo o país, mediante a mobilização de trabalhadores rurais para o processo de ocupação de terras, em meados da década de 1990, a preocupação com os graves problemas da economia parecia ter apagado da agenda política a questão da

188 reforma agrária. O forte descontentamento com o governo3 levou à realização de manifestações populares que respaldaram as pressões políticas que resultaram no impeachment do presidente. Collor foi afastado em dezembro de 1992, sendo substituído pelo vice-presidente Itamar Franco. Conforme o relato de Schwarcz e Starling (2015, p. 496),

Itamar assumiu a Presidência da República com o Brasil atolado numa situação calamitosa. Com o PIB em queda, o desemprego atingia 15% da população economicamente ativa só na região metropolitana de São Paulo, e a inflação que Collor prometera derrubar se encontrava acima do patamar de 20% ao mês – e assim permanecia havia quase dois anos. A inflação atinge todas as classes sociais, mas tem efeito especialmente perverso sobre a população pobre – e não apenas porque ela está fora dos bancos e seu dinheiro não tem correção diária. Ela sabota o futuro, e seus efeitos colaterais são escassez, desemprego e violência – muita violência.

A Itamar Franco restava, portanto, dois anos para lidar com o maior problema que afligia o país: a inflação. Sua solução tornava-se estratégica para a criação de um horizonte confiável para a realização de investimentos, o pagamento da dívida externa e a retomada do crescimento econômico. Segmentos representativos das classes dominantes estavam convencidos de que duas medidas eram necessárias para debelar a crise: a elaboração de um novo plano econômico destinado a conter a inflação e a escolha de um político qualificado e confiável para administrá- lo na condição de Presidente da República.

Durante o breve mandato de Itamar ocorreu a regulamentação das definições sobre a reforma agrária aprovadas na Assembleia Nacional Constituinte, através da Lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, conhecida como Lei Agrária. De acordo com esta legislação ficava mantido que a propriedade que não cumprisse sua função social estaria passível de desapropriação, conforme os critérios previstos na Constituição. Ficava determinado, ainda, que as terras públicas nas áreas rurais seriam utilizadas preferencialmente para fins de reforma agrária. Por outro lado, a categoria de latifúndio era substituída por outra denominada como propriedade com mais de quinze módulos fiscais, para efeito de desapropriação.

No entanto, um dos aspectos mais importantes dessa lei foi o de tornar as desapropriações sujeitas a discussões judiciais, sobretudo no que dizia respeito aos requisitos relativos à função social e à deliberação de que as terras produtivas não seriam suscetíveis de ser desapropriadas. Mais ainda: no caso de desapropriações para a reforma agrária, não só o valor da indenização poderia ser discutido na justiça, mas o próprio mérito da ação. Isto colocava o poder judiciário em uma posição de centralidade para a apreciação de questões pertinente a despejos, valores,

3 Além dos graves problemas da economia, o governo Collor foi alvo de graves denúncias de um esquema de corrupção, do qual o presidente era um dos principais beneficiários.

189 etc. Neste sentido, a elasticidade dos recursos de recorrência à justiça por parte dos proprietários convertia-se em um importante instrumento de protelação das desapropriações, sem se falar da tendência do Judiciário de considerar a propriedade da terra como um direito absoluto, à exceção do usucapião (MEDEIROS, 2003, p. 41-43).

Vale salientar que a ausência de regulamentação dos procedimentos legais nos cinco anos que se seguiram à promulgação da Constituição estimulou a busca de opções para a obtenção de terras para a reforma agrária, por parte dos governos estaduais, de modo a fazer frente às pressões dos movimentos sociais, principalmente o MST. Isto se dava através das desapropriações por utilidade pública, do uso de terras dos estados e de aquisição de imóveis. Por outro lado, até mesmo no governo Collor já se buscava discutir a institucionalização de bolsas de arrendamento e parcerias, a fim de se promover o acesso dos trabalhadores à terra. Embora tal proposta não tenha se concretizado, deve-se destacar que ela já sinalizava para a realização da distribuição de terras por meio da utilização de mecanismos de mercado (MEDEIROS, 2003, p. 37-44). De acordo com esta autora, no período que se estende da promulgação da Constituição até a regulamentação de suas definições pela lei ordinária,

O debate sobre a reforma agrária cresceu mais uma vez e, após a aprovação da Lei Agrária, desencadeou-se um novo ciclo de demandas por terras e de ocupações. Num novo contexto pós-impeachment de Collor e com o vice-presidente Itamar Franco no exercício da Presidência, iniciou-se uma abertura de diálogo com os demandantes de terra, sendo nomeadas para a direção do INCRA pessoas com trânsito e respeitabilidade entre os movimentos sociais. Ao mesmo tempo, retomaram-se as desapropriações de terra para a realização de assentamentos. (MEDEIROS, 2003, p. 44)

Com base nesse depoimento, pode-se depreender que no governo de Itamar Franco ocorreu uma maior flexibilidade para o tratamento de questões relacionadas com a realização da reforma agrária, apesar do seu caráter provisório e de preparação para uma nova fase de encaminhamento de problemas nacionais. Entretanto, não se poderia deixar de entrever que se a Constituição de 1988 barrava uma série de propostas relevantes para a execução da reforma agrária, a regulamentação de suas deliberações mediante a Lei Agrária acrescentava outras dificuldades para o alcance dessa finalidade. Na verdade, o que se podia perceber era que o processo de luta entre os proprietários de terra e os camponeses e trabalhadores rurais que dela precisavam para produzir, manifestava-se justamente na descaracterização do PNRA, na colocação das travas jurídicas para dificultar o seu desenvolvimento e na continuidade da repressão policial-militar aos movimentos sociais no campo. De certo modo, promoviam-se muitas mudanças para manter a estrutura da propriedade da terra e de dominação política nas

190 áreas rurais praticamente nas mesmas condições em que se encontrava anteriormente. Nesses termos, portanto, o controle do Estado pelas classes dominantes constituía-se um elemento estratégico para dificultar a realização da reforma agrária, de modo massivo e distributivo, tal como era reivindicada pelos movimentos sociais, bem como de outras mudanças relevantes para o desenvolvimento e a democratização do poder, da renda e da riqueza no país, mesmo que nos limites da sociedade burguesa.

Daí a importância atribuída à escolha de um partido político e de um candidato que conciliasse e administrasse com eficiência e respeitabilidade os interesses das classes dominantes. Tal escolha recaiu sobre Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, professor e político pertencente ao Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, criado em 1988, como uma dissidência do PMDB, cada vez mais atolado no fisiologismo político. FHC, como viria a ser popularizado o nome de Fernando Henrique, pertencia a um seleto grupo de políticos intelectualizados, com propósitos democráticos, o que lhe conferia uma imagem distinta daquela observada na linhagem da escória política nutrida no criatório da ditadura.

Na verdade, a candidatura de FHC e os objetivos que ele deveria cumprir, no caso de ser eleito, não se constituíam em um fato político limitado ao Brasil. Decorria de uma onda de programas de reformas neoliberais que passavam a ser implementadas na América Latina e na maior parte de países localizados na periferia dos centros hegemônicos do capitalismo. Tais programas, por sua vez, faziam parte de uma estratégia de alinhamento dos países periféricos aos interesses do capital financeiro mundializado e das empresas transnacionais sediadas nos países capitalistas avançados. Sua implantação dependia, portanto, da constituição de coalizões políticas formadas por partidos e políticos neoliberais, que refutavam o desenvolvimentismo articulado, regulamentado e gerido pelo Estado, bem como por partidos e políticos de esquerda que tivessem participado de lutas políticas contra os regimes autoritários existentes no período da Guerra Fria, o que proporcionaria legitimidade política e eleitoral a essas alianças (FIORI, 2001). Conforme este autor, o papel desempenhado pelo PSDB trazia algumas novidades que diferenciavam o caso brasileiro:

A primeira, foi o grande peso que tiveram os intelectuais do eixo Rio-São Paulo dentro deste novo partido. A segunda, foi a convergência que ocorreu, nesse grupo, entre um número expressivo de marxistas e alguns jovens defensores do liberalismo econômico, agora reunidos e pacificados por um mesmo diagnóstico “internacionalista e internacionalizante” das transformações mundiais do capitalismo. Seu argumento comum era muito simples: a globalização era um fato novo, promissor e irrecusável que impunha uma política de abertura e interdependência irrestrita, como único caminho de defesa dos interesses nacionais, num mundo onde já não mais existiriam mais as fronteiras nem as ideologias. A terceira característica original do caso brasileiro é que esta pequena “fronda tucana”, formada basicamente por

191 professores e financistas, com fortes articulações nas finanças internacionais e no governo norte-americano, conseguiu reunir em 1994, em torno da candidatura do professor Cardoso, uma coalizão de forças de centro-direita extremamente ampla e heterogênea. Coalizão em que estavam presentes todos os setores da burguesia e das oligarquias regionais de poder, que haviam apoiado e usufruído os governos militares e do ciclo desenvolvimentista, e que se encontravam desunidos e desorientados sem a tutela militar depois do fracasso com sua aventura com Collor. (FIORI, 2001, p. 207)

Com efeito, o arranjo político que norteou a transição dos governos militares para a Nova República agonizava sob o peso de uma inflação descontrolada, do compromisso dos grupos políticos responsáveis pela gestão do Estado com o antigo regime e pela emergência de novos atores políticos na vida do país. A década de 1990 foi um período marcado por um expressivo avanço do MST e da afirmação de vários movimentos sociais urbanos. De modo geral, os grupos politicamente identificados com as aspirações da parcela mais empobrecida da população acenavam com realizações inspiradas na agenda da socialdemocracia europeia para a solução dos problemas existentes. Nisso incluía-se, evidentemente, a realização de uma reforma agrária, bem como programas para a redistribuição da renda, geração de empregos, melhoria dos sistemas de educação, saúde, etc. Para tanto, fazia-se necessário a revisão da dívida externa, que estrangulava a economia brasileira, o controle da inflação, que penalizava brutalmente os trabalhadores assalariados e os setores ainda mais pobres da população, além de uma atitude mais autônoma com relação à influência dos organismos multilaterais quanto à política econômica. O partido que comandava esta plataforma política era o PT e o seu candidato era Lula, que disputava a eleição para a Presidência da República pela segunda vez. Por outro lado, os grupos identificados com as transformações que se processavam na economia mundial, a partir dos países capitalistas avançados, genericamente designadas como globalização, apontavam para a modernização da economia e da sociedade brasileira, como o meio capaz de conduzir o Brasil aos elevados padrões de vida observados naqueles países. Na prática, tal modernização seria alcançada pela abertura da economia para o exterior, a desregulamentação dos mercados financeiros e de trabalho, um amplo programa de privatizações de empresas estatais e de extinção de órgãos públicos - que reduzisse o tamanho do Estado e lhe proporcionasse maior eficiência -, e, sobretudo, pelo controle da inflação, a fim de assegurar a estabilidade monetária e honrar, regularmente, os compromissos da dívida externa. O partido que apresentava um programa de governo baseado nessas ideias era o PSDB, e o seu candidato era FHC. Faltava-lhe apenas a criação de um fato político novo que alavancasse sua candidatura e assegurasse sua supremacia sobre os demais partidos e candidatos.

192 FHC venceu a eleição. Após assumir a Presidência da República, mostrou, de imediato, o tratamento que o seu governo dispensaria às demandas sociais dos trabalhadores, ao reprimir com inusitada violência, uma greve nacional de petroleiros. Nas áreas rurais os massacres de Corumbiara e de Eldorado de Carajás também revelariam a disposição para o emprego de práticas repressivas para tentar conter as reivindicações dos trabalhadores. Conforme relato de Medeiros (2003, p. 48),

Os massacres de Corumbiara e de Eldorado de Carajás foram pontos de inflexão na luta por terra, explicitando não só os níveis de violência que a acompanham como a precariedade dos instrumentos utilizados para lidar com os conflitos fundiários. No caso de Corumbiara, estado de Rondônia, em agosto de 1995, ao realizar uma ação de despejo num acampamento, a polícia agiu violentamente e ocorreram várias mortes. A ação foi realizada à noite, o que é ilegal.

Alguns meses depois, em abril de 1996, no estado do Pará, trabalhadores sem-terra que bloquearam uma estrada numa manifestação política foram cercados pela polícia. Do enfrentamento resultou a morte de dezessete deles. As cenas foram filmadas por um cinegrafista amador e não deixaram dúvidas sobre a brutalidade da ação policial. As imagens correram mundo e provocaram protestos de diversas entidades de defesa de direitos humanos e de organizações internacionais.

Com efeito, no projeto neoliberal do governo de FCH, grosso modo, não existia espaço para uma reforma agrária, tal como este processo vinha sendo pensado e reivindicado pelos movimentos sociais no campo. O processo de modernização tecnológica da agricultura encontrava-se bem desenvolvido, tratando-se agora de promover o “negócio agrícola”, expressão sucedânea para os complexos agroindustriais. A melhoria das condições de vida da população rural ficaria por conta do desenvolvimento capitalista que, ao expandir o assalariamento da força de trabalho, promoveria, em consequência, a ampliação da legislação trabalhista e da previdência social.