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1.3 Trajetórias políticas do campesinato para as sociedades capitalistas modernas

1.3.4 A singularidade do caso da Índia

Na Índia não ocorreu uma revolução burguesa, nem uma revolução conservadora, tampouco uma revolução camponesa. Dentre os inúmeros conquistadores do seu território, os mongóis, que precederam a ocupação britânica, estabeleceram uma burocracia agrária desfavorável ao desenvolvimento de uma classe comercial. Sua invasão se estendeu por grande parte do território, apesar dos reinos hindus do sul se manterem independentes.

Os mongóis adaptaram suas leis ao contexto indiano, mantendo um sistema político composto por um soberano que governava com o apoio do exército, sendo ambos sustentados pelos camponeses. A base produtiva deste sistema era formada por uma agricultura fraca e ineficaz, provavelmente por força do sistema de impostos e da organização das aldeias pelas castas.

O sistema de exploração dos camponeses era baseado na cobrança de impostos por funcionários designados pelo Imperador. Tais funcionários eram remunerados com parte da produção tributada na área sob sua responsabilidade. Desse modo, observava-se que se empenhavam em extrair o máximo de dinheiro dos camponeses que trabalhavam a terra. As tensões originadas pela forte exploração a que eram submetidos implicavam no abandono das terras e em revoltas frequentes. Por sua vez, as castas representavam uma realidade local, onde se observava a organização da divisão do trabalho e um sistema de controle social que praticamente abarcava todas as áreas da vida social, tornando supérflua a ingerência de uma autoridade central.

83 Para tornar tal situação ainda mais complexa, os funcionários encarregados da cobrança dos impostos, após a sua morte, tinham os seus bens revertidos ao Império, o que caracterizava a ausência do direito de herança. Deve-se salientar que grande parte dos imperadores achava importante governar e tributar através de autoridades nativas - os zamindars - que mantinham diversos graus de independência em relação à autoridade central. Diante da impossibilidade da transferência de bens para os herdeiros, o consumo e a ostentação eram amplamente praticados por esse grupo, além de estimuladas pelo próprio Imperador. Moore Jr. (1975, p. 374-375) assinala que:

O risco de amealhar riquezas e o impedimento de sua transmissão por testamento deu uma importância imensa à ostentação. Gastar, não economizar, era característica predominante da época. Esta parece ser a origem da magnificência enraizada na miséria que ainda impressiona os actuais visitantes da Índia e que muito impressionou os visitantes europeus na época mongol. O Imperador dava o exemplo de magnificância que deveria ser seguido pelos seus cortesãos. Este esplendor da corte constituía um sistema para evitar uma indesejável acumulação de recursos nas mãos dos que lhe estavam associados, embora, como veremos, também tivesse consequências infelizes sob o ponto de vista do governante. (...) Extraindo a maior parte do excedente econômico gerado pela população subjacente e transformando-o em ostentação os governantes mongóis evitaram, durante algum tempo, os perigos de um ataque aristocrático ao seu poder. Simultaneamente, um tal emprego desse excedente limitava seriamente as possibilidades de desenvolvimento econômico, ou, mais precisamente, do tipo de desenvolvimento econômico que teria acabado com a ordem agrária e estabelecido um novo tipo de sociedade.

A falta de dinamismo do sistema mongol levou ao seu enfraquecimento e posterior desaparecimento. Era um sistema incompatível com o crescimento econômico e com a formação de padrões políticos democráticos, sobretudo quando comparado com as condições históricas que precederam as mudanças ocorridas nos países ocidentais afetados pelas revoluções burguesas. Inexistia uma aristocracia agrária proprietária de terras que pudesse fazer frente à monarquia, bem como as condições necessárias ao surgimento de uma burguesia empreendedora. Restava, portanto, uma “burocracia predatória” empenhada na exploração do campesinato, o que trazia como consequência a multiplicação de revoltas e a fragmentação da unidade política. Isto facilitou a conquista do território indiano e sua submissão ao domínio estrangeiro (MOORE JR., 1975, p. 384).

Quando da ocupação do território indiano pelos britânicos, sua maior preocupação era a de sustentar sua ocupação e comércio com recursos extraídos dos nativos, o que os levou, inicialmente, a manter o sistema de exploração existente. Com a estabilização do seu domínio, os ingleses passaram de saqueadores comerciais para governantes mais pacíficos. Apesar de transformarem-se em uma burocracia governante, preservaram muitas práticas políticas

84 semelhantes às dos mongóis. Modificaram a forma de cobrança dos impostos e introduziram mudanças na propriedade da terra. Tratava-se, pois, de conferir estabilidade aos seus propósitos de promover a comercialização de produtos industriais. Desse modo, as exportações de seus produtos têxteis para a Índia liquidaram uma parte do artesanato, justamente aquela ocupada com a produção de artigos mais elaborados, concentrada nas cidades. Por outro lado, a apropriação dos excedentes produzidos pelos camponeses pelos senhores rurais e usurários, bem como a dissipação dos recursos obtidos com a sua comercialização em um modo de vida faustoso, impediu que tais excedentes fossem direcionados para o desenvolvimento industrial do país. Moore Jr. (1975, p. 397) comenta que:

Não se pode discutir o impacto dos ingleses na sociedade indiana como se fosse resultado de uma causa uniforme, actuando continuamente durante mais de três séculos. Algumas das mudanças mais significativas tiveram lugar durante o século que vai de 1750 a 1850. Em meados do século XVIII, os ingleses estavam ainda organizados no sentido de comerciar e pilhar, dentro da Companhia das Índias Orientais, e não controlavam mais do que uma pequena fração do território indiano. Em meados do século XIX, tinham-se tornado efetivamente senhores da Índia, organizados numa burocracia orgulhosa da sua tradição de justiça e lealdade. Sob o ponto de vista das modernas teorias sociológicas da burocracia, é quase impossível ver como se poderia ter dado esta modificação, uma vez que a matéria-prima histórica era tão pouco prometedora: uma companhia de mercadores que dificilmente se poderia distinguir de piratas, por um lado, e uma série de despotismos orientais decadentes, por outro. Pode-se, legitimamente, forçar o paradoxo sociológico e histórico; desse amálgama, igualmente pouco prometedor, emergiu eventualmente um Estado com direitos válidos a uma democracia!.

Procedendo dessa maneira, os britânicos evitaram que se formasse uma coligação de interesses entre as elites proprietárias rurais e uma burguesia fraca, tal como aconteceu no Japão e na Alemanha, impedindo o desenvolvimento de uma tendência que poderia levar ao fascismo. Desse modo, contribuíram para a formação de um sistema democrático, ainda que pouco vigoroso. O crescimento do movimento nacionalista a par do enfraquecimento do seu império determinou a sua expulsão.

As mudanças promovidas nas áreas rurais após a Independência não foram bem- sucedidas, contribuindo apenas para melhorar a condição dos pequenos senhores rurais e camponeses ricos. Por outro lado, os programas de melhoria tecnológica da agricultura alcançaram resultados muito limitados, haja vista que tal processo se desenvolvia sem o conhecimento da realidade dos camponeses, contribuindo para a rejeição das tecnologias ofertadas.

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