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1 O ENSINO DA PRODUÇÃO ESCRITA EM LÍNGUA ESPANHOLA

1.4 As práticas de letramento e a perspectiva social da escrita

Segundo Duboc (2012), os novos estudos sobre letramento surgiram entre o final da década de oitenta e início dos anos noventa, com o objetivo de ampliar os conceitos de letramento tradicional que vigoravam até o momento. O letramento em uma abordagem tradicional era entendido como o domínio de um conjunto de estratégias e técnicas individuais de leitura e escrita. Duboc (2012) acrescenta que, convencionalmente, o letramento referia-se à compreensão da leitura e escrita enquanto habilidades homogêneas e universais que, por sua vez, eram ativadas a partir de um processo individual e cognitivo, durante as atividades de leitura e interpretação.

Preocupado com o processo de aprendizagem de língua reduzido ao domínio de habilidades cognitivas e estratégias de leitura e escrita, Street (1995) funda um modelo ideológico de letramento com o intuito de contemplar os fatores sócio- históricos e socioculturais que influenciam diretamente a produção de sentido dos textos. Neste modelo, entende-se que o letramento deve ser observado a partir do contexto em que foi adquirido e utilizado, pois, em cada situação, leitores e escritores podem apresentar diferentes tipos de conhecimentos e práticas letradas. Por exemplo, pessoas que não conhecem a estrutura do gênero “carta oficial” podem apresentar dificuldades no momento em que são requisitadas para a produção escrita de tal documento. Como salietam Silva e Araújo (2012), as práticas de letramento são diferenciadas conforme os contextos em que se fazem presentes

porque cada evento de letramento exige práticas letradas que podem coincidir ou não com práticas letradas já vivenciadas pelos diferentes leitores e escritores.

As práticas de letramento estão vinculadas às concepções de leitura e escrita como atividades sociais de produção de efeito de sentido, influenciadas por diferentes contextos, propósito comunicativo, histórias de vidas, bagagens culturais, entre outros fatores (ROJO, 2009; MARCUSCHI, 2010; KLEIMAN, 2007).

As teorias relacionadas ao letramento reconhecem as diferentes práticas de escrita, nas suas mais variadas formas. Segundo Marcuschi (2010), o indivíduo, mesmo analfabeto, é letrado na escrita na medida em que identifica

o valor do dinheiro, identifica o ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas etc., mas não escreve cartas nem lê jornal regularmente, até uma apropriação profunda, como no caso do indivíduo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemática ou escreve romances. Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz um uso formal da escrita. (MARCUSCHI, 2010, p. 25)

Conceber, portanto, a atividades de escrita como prática de letramento implica em “adotar uma concepção social da escrita, em contraste com uma concepção tradicional que considera a aprendizagem de leitura e produção textual como a aprendizagem de habilidades individuais” (KLEIMAN, 2007, p. 1). Para tanto, faz-se necessário distinguir os conceitos de alfabetismo de letramento. Na concepção de Rojo (2009),

o termo alfabetismo tem um foco individual, bastante ditado pelas capacidades e competências (cognitivas e linguísticas) escolares e valorizadas de leitura e escrita (letramentos escolares e acadêmicos), numa perspectiva psicológica, enquanto o termo letramento busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.”), numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural. (ROJO, 2009, p. 98).

Nesse sentido, a escrita, na perspectiva do letramento, deve ser vista não somente como o domínio e emprego de técnicas, habilidades e estruturas formais e individuais para a produção de sentenças e orações, mas também como uma atividade ligada às estruturas culturais e de poder da sociedade (STREET, 1993 apud ROJO, 2009, p. 99). Ao produzir um texto, deixamos registradas nossas

crenças, posicionamentos diante do mundo, nossa história, em fim, a forma como lemos e interpretamos a realidade.

Segundo Bazerman (2007), o texto emerge de um processo interativo complexo e afirma “uma presença social num campo letrado da ação social” (BAZERMAN, 2007, p. 53). O autor ainda acrescenta que o que escrevemos traz consequências sociais, a partir das relações futuras que estabelecemos com uma determinada audiência. Portanto, não há como desconsiderar a dimensão social e discursiva da escrita e as experiências de letramento vivenciadas pelos indivíduos. Para o autor (2007),

enquanto escreve, o escritor se apoia nos recursos linguísticos obtidos ao longo de uma vida de interações com os outros. O escritor usa palavras, perspectivas, ideias, humores, formas e padrões organizacionais de interações anteriores, de forma que o texto atual incorpora muitas vozes com as quais anteriormente cruzou e às quais respondeu. (BAZERMAN, 2007, p. 60)

Compreender o texto como um processo de encontro de vários discursos, representações históricas, culturais e contextuais implica em considerar que a leitura e escrita não significa somente codificar, decodificar ou empregar um conjunto de ferramentas, técnicas, habilidades individuais ou tecnologias (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011). Para empreender e construir sentidos em textos escritos faz-se necessário entender a escrita como um processo de socialização de pensamentos, ideias, argumentos, intenções e participação social.

O letramento permeia vários campos sociais e as habilidades de letramento das pessoas influencia sua participação social (BAZERMAN, 2007). Nas palavras de Bazerman (2007), “o sucesso e a identificação satisfatória com diversos campos sociais exigem não só um letramento geral, mas um letramento adequado a cada tipo de esforço e uma posição social efetiva e desejável dentro deles” (BAZERMAN, 2007, p. 80).

O nível de confiança e a atitude do leitor em relação às diferentes situações comunicativas letradas são influenciados pelas histórias de experiências de escrita de um indivíduo (BAZERMAN, 2007). Assim sendo, histórias repetidas de sucesso na produção textual acarretam à atitude de segurança, coragem e otimismo do escritor, enquanto que situações de insucessos constantes, dificuldades, rejeições e humilhações no campo do letramento, podem ocasionar sentimentos negativos, ansiedade e aversão diante da tarefa do ato de escrever.

Faz-se necessário, então, compreender a complexidade do processo da escrita, os sentimentos que influenciam o ato composicional e entendê-lo como um processo interativo social de representação de histórias, crenças, discursos e experiências.

A escrita, dentro de uma perspectiva social e interativa, deve ser trabalhada de forma a propiciar experiências próximas da vida real dos estudantes, porque “letrar não é apenas ensinar a ler e a escrever para a escola, mas capacitar o aluno a agir em todas as instâncias, dentro e fora da escola, nas práticas exigidas pela sociedade” (KERSCH; GUIMARÃES, 2012, p. 540).

As teorias que fundamentam as práticas de letramento partem de uma concepção de leitura e de escrita como atividades discursivas, “com múltiplas funções, e inseparáveis dos contextos em que se desenvolvem” (KLEIMAN, 2007, p. 4). Essas atividades discursivas exigem o conhecimento e uso de diferentes mecanismos retóricos e discursivos por partes de escritores para a produção de textos adequados aos mais diversos tipos de gêneros textuais. Para tanto, “o aluno precisa se familiarizar com os textos dos diferentes agrupamentos de gêneros, o que implica oferecer eventos de letramento destinados a promover essa familiaridade” (KERSCH; GUIMARÃES, 2012, p. 540).

Há diferentes orientações de letramentos em função das inúmeras práticas de escrita da vida social. No contexto familiar, podemos escrever bilhetes, mensagens via celular, recados. Na universidade, produzimos resenhas críticas, resumos, monografias, artigos. Para os amigos, escrevemos comentários no facebook ou enviamos mensagens pelo whatsapp. Em função disso, há diferentes orientações de letramento (KERSCH; GUIMARÃES, 2012, p. 541).

Como o intuito de ampliar a visão da leitura e escrita enquanto atividades reduzidas às habilidades cognitivas e mentais individualizadas, estudiosos da área inauguraram uma nova corrente de estudos dos letramentos, denominada: Novos Letramentos. Segundo Gee (2009), esta corrente passou a compreender as práticas de letramento como um fenômeno social, uma vez que a leitura e escrita referem-se a formas de participação social e cultural, e não somente como uma conquista mental. Nesta perspectiva, o autor salienta que “o letramento deve ser entendido e

estudado em toda sua gama de contextos, e não apenas cognitivo – mas social, cultural, histórico e institucional” 19

(GEE, 2009, p. 2).

Os pressupostos teóricos que fundamentam o letramento crítico defendem a ideia de que a atividade de leitura e escrita não é individual e isolada, mas ao contrário disso, as pessoas “lêem e escrevem tipos específicos de textos de diferentes maneiras e estas formas distintas são determinadas pelos valores e práticas de diferentes grupos sociais e culturais” 20

(GEE, 2009, p. 5, tradução nossa).

Ao trabalhar as diferentes orientações de letramento nas atividades de produção escrita, o aluno se sentirá inserido em práticas de escrita socialmente relevantes. Os espaços de produção escrita a partir de situações linguisticamente significativas despertam maior motivação para a realização das atividades propostas.

Como a intenção de desenvolver práticas de escrita socialmente relevantes para os alunos do curso de Letras/Espanhol, participantes dessa pesquisa, a argumentação foi escolhida como tipo textual norteador do processo de ensino- aprendizagem da escrita nesse idioma, já que a atividade de argumentar se faz presente em diferentes instâncias da vida social e acadêmica.

É também importante enfatizar que este trabalho investigativo procurou articular o processo de ensino-aprendizagem da escrita argumentativa em língua espanhola a partir da perspectiva linguística, retórica e social da escrita. As propostas teóricas que fundamentam as práticas de letramento contribuíram para que o trabalho com processo da escrita dos participantes da pesquisa não ficasse reduzido ao ensino, aplicabilidade e análise dos elementos linguísticos e das estratégias argumentativas utilizadas pelos alunos em produções textuais. Interessou-me também compreender e analisar os fatores relacionados às crenças, ideologias, posicionamentos e valores apresentados pelos alunos em seus argumentos sobre os diferentes temas propostos para leitura, discussão e produção textual.

19 Texto original em inglês: “literacy needed to be understood and studied in its full range of contexts— not just cognitive—but social, cultural, historical, and institutional, as well.” (GEE, 2009, p.2).

20 Texto original no inglês: “ read and write specific sorts of “texts” in specific ways and these ways are determined by the values and practices of different social and cultural groups (GEEM, 2009, p. 5).

Diante do exposto, por um lado, reconheço que a análise referente aos aspectos linguísticos do idioma, aos mecanismos de estabelecimento da coerência e da coesão textuais e às regras de progressão textual, por si só, não traz informações significativas sobre as já mencionadas experiências, valores, ideologias, história e crenças que fundamentam as ideias e posicionamentos defendidos pelos alunos em seus textos. Por outro lado, defendo também o argumento de que estas experiências, valores, ideologias, histórias e crenças só podem ser apresentadas de forma mais clara, coesa, organizada e bem articulada se os alunos conhecerem também a estrutura do idioma, os mecanismos de estabelecimento da coerência e da coesão textuais, assim como as estratégias retóricas para defender seus argumentos.

Não pretendo com este argumento desconsiderar o caráter social, político e ideológico envolvido na produção textual, já que ao escrever o aluno compartilha ideias e posicionamentos a partir de experiências construídas ao longo da vida e de novos conhecimentos advindos de leituras e interações sociais. Entretanto, não podemos também deixar de reconhecer as dificuldades e obstáculos que os alunos enfrentam durante o ato composicional. Isto porque, como já foi anteriormente salientado, a escrita é uma habilidade complexa que exige a articulação de elementos de ordem cognitiva, psicológica, linguística, retórica e discursiva. Assim sendo, para que os argumentos, valores, crenças e posicionamentos defendidos pelos alunos possam ser compartilhados e compreendidos pelos leitores é de fundamental importância que o conteúdo do texto esteja claro, coerente, organizado e bem articulado. Enfim, considero tanto o domínio discursivo quanto o sistêmico essenciais para a produção textual.

Aspectos relacionados às dificuldades da escrita e a importância do conhecimento e trabalho voltado para o ensino-aprendizagem das regras de progressão textual e do uso de elementos coesivos para o estabelecimento da coerência textual serão tratados nas seções subsequentes.