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PARTE II DEMOCRACIA, COMUNICAÇÃO E ESPAÇO PÚBLICO

3 R ÁDIOS LIVRES NA E UROPA E NA A MÉRICA L ATINA : UMA RETROSPECTIVA HISTÓRICA

3.3 As rádios livres na Europa e na América Latina

A proposta de uma comunicação indenpende de poderes locais, criativa e autônoma em relação a modelos culturais padronizados seria uma das linhas de justificação de uma radiodifusão local, de alcance restrito, não comercial, voltada para o tratamento de realidades locais específicas. Essa perspectiva orientava o movimento de rádios comunitárias nos anos 1970, período de grade difusão das rádios livres na Europa e América Latina.

3.3.1 As rádios livres na Europa

O movimento das rádios livres na Europa, nos anos 1970, esteve inscrito em um contexto internacional vinculado às iniciativas de comunicação participativa e à procura de políticas públicas de comunicação que dessem lugar a grupos sociais e culturas minoritárias. No cenário mundial da situação de controle centralizado dos meios de comunicação, as rádios livres pareciam propor um modelo próprio de transversalidade do processo de produção e distribuição de informações em cada país. Então, rapidamente, essas mídias foram associadas a instrumentos para expressão de movimentos sociais e culturais na sua diversidade, com a missão de colocar em prática iniciativas em direção à paz, à amizade entre os povos, a expansão da democracia, e ao desenvolvimento de uma ética referenciada na Declaração Universsal dos Direitos do Homem, sobretudo no que concerne ao direito de todos de informar e ser informado48. De acordo com o artigo 19 da Declaração: “Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, 1948).

O historiador Jean-Nöel Jeanneney (2001) conta que um capítulo importante da história da mídia na Europa foi o desenvolvimento das rádios livres enquanto instrumentos de comunicação portadores de um espírito de liberdade de expressão. A Europa conheceu a

48 Aluízio Ferreira (1997) esclarece que direito à informação tem como faculdade receber informação e é pressuposto do direito à comunicação, que, por sua vez, corresponde às faculdades de procurar, receber e difundir informações. O autor ainda ressalta que a liberdade de expressão refere-se ao direito de transmitir livremente qualquer informação e emitir publicamente suas opiniões, atribuído a todo povo, mas institucionalizou-se nos veículos de massa, mas trata- se de um direito de todo cidadão, não apenas das empresas de comunicação.

experiência desses meios de comunicação a partir dos anos 1970. O ancestral das rádios livres européias é a Rádio Véronique, uma estação holandesa que começou a fazer emissões em 1960 ao longo da costa do País Baixo. Mas, segundo Jeanneney, foram os britânicos, em 1964, com a Rádio Caroline que começaram a experiência de difusão de programas em antena livre.

O termo rádio livre, enquanto mídia privada de expressão livre criada em meio à sociedade civil, nasceu na Itália nos anos 1968-69. Nessa época, o Grupo Danilo Dolci emitia clandestinamente na Sicília a partir da cidade de Partinico denunciando em praça pública as injustiças das quais os cidadãos do vilarejo de Belia eram vítimas. Mas, foi em meados dos anos 1970 que as rádios locais privadas italianas se desenvolveram, apesar do monopólio estatal sobre os meios de comunicação audiovisuais. De acordo com Hugues Lepaige (1977), o movimento das rádios livres na Itália começa, de fato, em 1975. A criação da rádio livre Alice, em 1974, na cidade italiana de Bolonha se tornou um marco histórico da difusão das emissoras alternativas de caráter político-cultural. Nos termos de Guattari, “A originalidade de Alice era a de ultrapassar o caráter puramente ‘sociológico’, digamos assim, das rádios independentes, e de se assumir como projeto.” (GUATTARI, 2005, p. 200).

Uma outra emissora emblemática no quadro das rádios livres italianas é a rádio Popolare, criada por militantes de diferentes facções políticas e sindicais da esquerda italiana, em 1976, na cidade de Milão. Essa rádio funcionou desde sua origem a partir de um sistema de gestão cooperativa e “se impõe como uma das importantes entre as centenas de rádios de esquerda dedicada à informação ...” (LORRAI, 2006). As rádios italianas se enquadravam em três tipos elementares: rádios comerciais; estações criadas por amadores e rádios alternativas, ligadas ou não a grupos políticos. O caso italiano é também emblemático porque se trata do primeiro país da Europa onde as rádios livres foram regulamentadas. Em 28 de julho de 1976, a Corte Constitucional italiana se pronunciou para reafirmar o monopólio da empresa estatal Radiotelevisão Italiana - RAI sobre o plano nacional, mas reconheceu o direito de existir às rádios e televisões locais abertas a todos os cidadãos, não somente aos grupos e às associações.

A última onda de rádios livres no continente europeu se deu nos anos 1990 na região dos países que formavam o bloco socialista até a queda do Muro de Berlim. O desmantelamento da ex-União Soviética e o declínio dos regimes socialistas na Europa do Leste favoreceram um cenário político para o desenvolvimento de experiências de rádios comunitárias, especialmente na Ucrânia, Bósnia e Slovênia (SOLERVICENS, 2006).

3.3.2 As rádios livres na América Latina

Como mencionado, as rádios livres, compreendidas também como piratas, desde sua origem na Europa, oscilam entre finalidade publicitária, como negócio rentável, como um veículo para divulgação de mercadorias e suas marcas, como também são percebidas pelas suas atribuições sociopolíticas e culturais, vinculadas a movimentos sociais, protestos coletivos, comprometidas com o questionamento do monopólio estatal ou privado dos meios de comunicação, inspiradas na perspectiva do exercício direto da democracia. Na América Latina, o movimento das rádios livres é marcado pela história pós-colonial da região e está fortemente associado a movimentos pelo desenvolvimento social e humano dos países pobres latino- americanos.

As rádios locais surgem, em geral, nesse continente como porta-vozes de povos marginalizados, como indígenas, trabalhadores rurais, mineiros, operários nas cidades, para servir a propósitos educacionais (alfabetização de crianças e adultos), revolucionários (difusão de manifestos de guerrilhas), sindicais, mineiros (luta por melhores condições de trabalho, salários), contraposição a ditaduras, reconhecimento de culturas, contra-informação e outras motivações (GRIBERG, 1987).

A aventura das rádios livres latino-americanas desponta já na década de 1940 com a rádio Sutatenza, na Colômbia, inaugurada em 1947, com o propósito de atuar como mídia a serviço da educação a distância. Fundada pela Igreja Católica, a rádio tinha como principal objetivo a alfabetização de populações campesinas, inicialmente no povoado de Sutatenza e depois suas emissões alcançaram Bogotá e Medelin. Essa emissora recebia suporte financeiro de organismos internacionais e igrejas católicas européias e contava com o apoio da Unesco.

No início da década de 1950 surgem as rádios guerrilheiras em Cuba. A rádio Rebelde49, criada por Che Guevara é o ícone desse gênero de emissoras que se disseminaram pela América Central naquela década, especialmente na Nicarágua e em El Salvador. Essas rádios são porta- vozes de diretrizes ideológicas voltadas para o discurso da transformação através de revoluções, cujos princípios estavam atrelados à crítica e à rejeição ao modo de vida capitalista.

49 A rádio Rebelde fazia emissões de caráter político-militar difundindo por todo território nacional informações dos rebeldes a partir de uma abordagem não difundida pela mídia oficial cubana da época. Essa rádio contava, no final da década de 1950, com 32 repetidoras as quais formavam a “Cadeia Liberdade”, todas comprometidas com os ideais da revolução cubana.

Ainda nos anos 1950, surgem na Bolívia as chamadas rádios mineiras, criadas por trabalhadores da mineração, questionadores dos velhos partidos e sindicatos, funcionando como núcleo de aglutinação política e cultural desses trabalhadores. Essas mídias também tinham fortes vínculos com movimentos revolucionários que se espalhavam pela América Latina na época e se constituiam em instrumento alternativo de intervenção política (rádio Vanguardia, rádio Sucre, rádio Bolívar). No início da década de 1970, se formou uma rede com 26 emissoras sindicais mineiras espalhadas por toda Bolívia (CAMACHO, 1987). As rádios mineiras exerciam dois tipos de atuação nos distritos onde funcionavam. Em tempos de paz eram mídias participativas, a serviço da população que utilizava as emissoras para os mais variados propósitos, desde informes locais à difusão de eventos. Em momentos de conflitos, eram as únicas fontes de informações extra-oficial, não controladas pela ditadura militar instalada na Bolívia. Essas mídias foram financiadas, mantidas e operadas pelos próprios mineiros, sendo “Esta uma das razões pela qual elas são, ou foram, tão únicas.” (DAGRON, 2005). O declínio dessas emissoras bolivianas se deu na década de 1980 com o esfacelamento dos sindicatos e mudanças de rumos econômicos no país que promoveu a decadência da mineração como atividade econômica fundamental para exportações bolivianas.

Na década de 1960, se destacam as chamadas rádios-escola no México, seguindo os moldes da rádio Sutatenza colombiana. A primeira emissora comunitária educativa mexicana foi a rádio Huayacocotla, criada em 1965, com o objetivo de promover educação básica a distância em regiões de difícil acesso. A emissora era financiada pela Igreja Católica e tinha o apoio de entidades internacionais como Unesco e Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC). Huayacocotla foi a pioneira de uma série de experiências de escolas radiofônicas que se difundiram pelo país atingindo o número de 126, em 1969. A rádio Huayacocotla passou por várias etapas de estruturação, sem perder sua identidade educativa e participativa, gradativamente se tornou portadora das mensagens e línguas de povos indígenas e da luta pelos direitos humanos na região (RUIZ, 1995). Em 1995, foi lacrada pelo governo mexicano sob a acusação de contribuir para a luta zapatista.

Por último, no Peru, na década de 1960, surge aRadio Quillabamba. Também mantida por ordens religiosas, essa emissora teve como objetivo o desenvolvimento rural em uma localidade habitada por índios, a partir da organização comunitária (LOPEZ e HOEBERICHTS,

1999). A emissora ficou conhecida pelo seu comprometimento com programas de educação popular e lutas sociais em prol de populações andinas do sul peruano (MOORE, 1991).

No capítulo subseqüente, será possível perceber que as origens e trajetórias das rádios livres, conhecidas como mídias comunitárias no Brasil, não têm, em geral, vínculos com lutas revolucionárias, movimentos sindicais, projetos de educação popular financiados por organismos internacionais ou Igrejas. Embora as rádios brasileiras estejam, em grande parte, inscritas em contextos de pobreza e exclusão social, essas surgem por diversas motivações: práticas amadoras de comunicação livre, difusão de ideologias político-partidárias ou religiosas (ou as duas coisas juntas) ou estão atreladas a iniciativas de contestação de um modelo hegemônico de fazer comunicação, do sistema de concentração da propriedade dos meios de comunicação no país ao direito do cidadão de comunicar e atender sua comunidade com um serviço local de comunicação.

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