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PARTE II DEMOCRACIA, COMUNICAÇÃO E ESPAÇO PÚBLICO

3 R ÁDIOS LIVRES NA E UROPA E NA A MÉRICA L ATINA : UMA RETROSPECTIVA HISTÓRICA

3.1 Panorama do movimento das rádios rádios livres no mundo

O movimento das rádios livres iniciou-se nos anos 1970 em várias partes do planeta, como iniciativas de liberdade de expressão de segmentos diversos da sociedade civil. O que caracteriza essas experiências de “comunicação livre”, na sua origem, é a perspectiva de uma “utopia concreta”, voltada para a ênfase em minorias sociais ou temas marginais na pauta da mídia oficial e da esfera governamental.

As rádios livres, em sua gênese, foram tentativas de constituição de espaços autônomos de manifestação da palavra pública fora da lógica das estruturas políticas hegemônicas, estatais e administrativas disseminadas na sociedade. “É bom que esteja claro, antes de mais nada, que o movimento das rádios livres pertence àqueles que o promovem, isto é, potencialmente, a todos aqueles – e eles são uma legião- que sabem que não poderão jamais exprimir de maneira convincente nas mídias oficiais.” (GUATTARI, em prefácio, MACHADO, MAGRI, MASAGÃO, 1987, p. 11). Para o filósofo Felix Guattari (2005), as rádios livres representavam, antes de qualquer outra coisa, uma utopia concreta suscetível de ajudar os movimentos de emancipação dos países onde se manifestavam e se reinventarem.

Apesar de já haver, em 1925, iniciativas pioneiras de gestão popular dos meios de radiodifusão em países como Áustria (emissoras sindicais), Holanda (União das Rádios

Operárias), Estados Unidos (estações da Federação do Trabalho), as rádios livres vão se firmar como movimento pela democratização dos meios de comunicação, de fato, na década de 1970, com as experiências emblemáticas surgidas na Itália. As rádios livres, inseridas em contextos de monopólios estatais no setor das telecomunicações, vão surgir no quadro de movimentos políticos contestatórios, estimulando as pessoas a passarem da condição passiva de ouvintes para a de protagonistas de seus discursos ao divulgarem publicamente suas idéias, seus desejos, suas músicas preferidas, suas críticas, prescindindo de qualquer autorização estatal para isso (CUNHA, 2005).

A rádio livre não é uma iniciativa restrita ao campo da chamada esquerda política. O movimento não pode se reduzir a um certo sectarismo. Isso equivale a dizer, no sentido de Guattari, que as rádios livres não têm significado por si só, o sentido dessas mídias está em sua capacidade de agregar coletividades em torno de um projeto de expressão de singularidades, especificidades de uma realidade local. Essas emissoras ainda podem ser compreendidas como vetores de contestação do sistema de representação política, de questionamento da vida cotidiana, do sistema de comunicação e cultura industrializado. Essas mídias alternativas são, nos termos de Guattari (2005), “revoluções moleculares” que tanto podem subverter a modelização da subjetividade consciente e inconsciente das pessoas como permitir a operação de transformações subjetivas nos homens e nos grupos sociais, a partir da reapropriação dos meios de comunicação. As rádios livres seriam embriões para uma chamada era “pós-mídia” (GUATTARI, 2005).

O fenômeno das rádios livres só toma seu sentido verdadeiro se o recolocamos no contexto das lutas de emancipação materiais e subjetivas. Na Itália e na França, ele foi um dos últimos florões das revoluções moleculares que se sucederam aos movimentos de contestação dos anos 1960. (GUATTARI, 2005, p. 205).

O movimento de rádios livres, para autores como Machado, Magri, Masarão (1987), Cunha (2005), Cheval (2003), questiona a estrutura de poder na radiodifusão comercial. Não se questiona a autoridade do Estado para decidir sobre concessões, mas se discute os critérios das outorgas de serviços de radiodifusão e uma legislação que contemple o direito à exploração do serviço de radiodifusão local, sem fins lucrativos. As rádios livres criadas nas décadas de 1970 e 1980 em vários países do mundo podem ser compreendidas como resultado do rompimento do estado de subordinação da sociedade civil em relação à estrutura organizativa da mídia oficial.

O princípio norteador das rádios livres era fazer com que o ouvinte se sentisse dentro e participante de um movimento: a qualquer momento (e sem que esse momento pudesse ser determinado a priori) ele poderia telefonar para a emissora para informar qualquer coisa que estivesse acontecendo à sua volta e ser colocado imediatamente no ar, sem qualquer censura, ou então se dirigir diretamente à emissora para dar o seu recado.(MACHADO, MAGRI, MASAGÃO, 1987, p. 30).

As rádios livres eram comumente chamadas de “piratas”, entre as décadas de 1950 e 1980, devido a sua condição de ilegalidade perante o poder público, no entanto essas rádios resultavam de iniciativas de segmentos organizados da sociedade civil, sem fins lucrativos, já as verdadeiras emissoras piratas estão a serviço da publicidade comercial.

As chamadas rádios piratas44, pioneiras na emissão de conteúdos sem autorização prévia, datam da década de 1950 e, inicialmente, são um fenômeno tipicamente inglês. São mídias que escapavam do marco legal para o setor de radiodifusão inglês e funcionavam sem permissão estatal, o que as colocava em um regime de existência ilegal. Outro aspecto importante é que essas mídias eram veículos de divulgação de publicidade comercial de grandes marcas notadamente norte-americanas. As rádios piratas inglesas e, depois, de vários países europeus eram financiadas por multinacionais como Ford, Lever ou American Tabacco que tinham interesse comercial no mercado europeu e precisavam fazer informes publicitários perfurando os monopólios estatais daqueles países que não permitiam veiculação de anúncios publicitários de multinacionais em seus canais. Além disso, as empresas americanas introduziam no mercado de radiodifusão da Europa um estilo radiofônico norte-americano e não somente europeu. (MACHADO, MAGRI, MASAGÃO, 1987).

No entanto, as rádios livres, de fato, foram reconhecidas nos anos 1980 como mídias de contra-poder, de expressão democrática, de pertencimento local, instaurando uma prática comunicativa alternativa e participativa. Essas rádios estão presentes em várias regiões do globo, na América Latina, na América do Norte, na África, na Europa e na Ásia. Em cada uma dessas

44 Na Europa, nos anos 1950, era comum algumas emissoras serem montadas dentro de barcos para emitir fora das águas territoriais dos países, como forma de burlar tutelas estatais. Isso acontecia com freqüência na Grã-Bretanha. A rádio Merkur, inglesa, por exemplo, emitia nas costas de Conpenhague (Dinamarca), a Nord nas costas de Estocolmo (Suécia) e outras adotavam o mesmo procedimento para funcionarem sem autorização do Estado. Nessas embarcações radiofônicas costumava ser erguida uma bandeira negra, como a dos corsários e esse ato simbólico remetia à pirataria nos mares dando origem por sua vez à expressão “rádios piratas”.

regiões receberam denominações de acordo com o contexto sociocultural e jurídico no qual cada país se insere.

Na América do Norte, como em alguns países na América Latina (Brasil e Colômbia), utiliza-se mais o termo “rádios comunitárias” para designar o pertencimento da rádio local a uma comunidade religiosa ou à sociedade civil, geograficamente limitada. Nos países de tradição legal anglo-saxão, a rádio local, também designada mídia comunitária, está atrelada ao significado do termo comunidade remetendo-se, assim, a um conjunto de pessoas que compartilham uma dimensão humana, um assento territorial e um poder de ação local. A rádio livre é o termo utilizado na Europa latina para colocar em destaque um espaço de liberdade da palavra fora das estruturas do Estado e da iniciativa privada comercial. As rádios educativas na África designam as experiências de utilização das mídias eletrônicas com finalidade de alfabetização e de desenvolvimento. Mas na América existem redes de estações educativas públicas, às vezes, ligadas a universidades. (LAFRANCE, 1995, p.40).

Na América Latina, esses meios de comunicação foram facilmente identificados como “rádios populares”, conhecidas por seu poder de demarcação e de luta face aos discursos autoritários difundidos nos veículos de radiodifusão tradicional. Essas mídias estavam, historicamente, atreladas aos movimentos de protestos coletivos contra o estabelecimento de poderes políticos e econômicos, como na época da ditadura militar nos países latinos-americanos, a “guerrilha” na Bolívia e na Colômbia. Algumas inspiraram-se na “pedagogia do oprimido”, de Paulo Freire45 (1971; 1997), o qual propôs a concepção da comunicação como diálogo, esclarecimento, educação, uma comunicação não transmissiva, distante da perspectiva dos meios de comunicação de largo alcance.

De alguma forma durante os anos 1970, as experiências das rádios locais eram compreendidas como um modelo de comunicação alternativa aos sistemas de radiodifusão centralizados pelo poder público ou pelas empresas privadas. Nessa época, as rádios livres não eram regulamentadas. Estavam à margem do sistema oficial de radiodifusores regulados pelo poder público porque não funcionavam a partir de concessões outorgadas pelo Estado para explorar oficialmente o serviço de radiodifusão na área onde atuavam. Mas, hoje, nos países onde

45 Comunicação é diálogo na medida em que não é transferência de saber, mais um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados (FREIRE, 1997). O conceito de comunicação dialógica, relacional, e transformadora de Freire perfila um modelo social comunicativo humano e libertador.

essas mídias contam com legislação, as rádios locais sem fins lucrativos se tornaram um modelo de comunicação previsto no quadro de políticas públicas adotadas pelo Estado para regular o setor de audiovisual.

A concretização da proposição de um modelo democrático para formular e implantar políticas de comunicação está associada a um movimento prévio de reformulação do conceito de tais políticas adotadas pelos Estados na execução de medidas regulamentares para organizar o mercado das comunicações. A perspectiva de um novo modelo de comunicação apoiado em um novo modelo de comunicação calcado na diversidade de vozes e de culturas é claramente enfatizada no Relatório MacBride (1983).