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PARTE II DEMOCRACIA, COMUNICAÇÃO E ESPAÇO PÚBLICO

1.2 Noções de democracia comunicativa

A comunicação, como facilitadora do diálogo, aparece nas formulações de teorias democráticas baseadas na participação como provedora de pressupostos e processos fundamentais para a criação legítima do direito, a força legitimadora da gênese e da consolidação democrática. No modelo habermasiano, exposto a seguir, a política permite a interação entre Estado e sociedade e ela não se encontra nem somente no espaço público político institucionalizado nem apenas na esfera civil. A política perpassa todos os espaços. Este pressuposto é o ponto de partida dos modelos combinados de democracia que transitam entre modelos diretos e indiretos de participação no governo de uma sociedade e se constituem com base na “política dialógica”. Na tensão contemporânea entre modelos mais participativos e representativos, como avaliam, além de J. Habermas, autores como Axel Honneth (2001); Iris

Marion Young (2001), Anthony Giddens (1996; 2001; 2005) propõem respostas reflexivas e dialógicas às assimetrias entre participação, pluralismo e política.

Diferentes autores constroem distintos modelos democráticos pautados em processos comunicativos como a concepção de “democracia enquanto cooperação reflexiva” (HONNETH, 2001), e a “democracia comunicativa” (YOUNG, 2001), entre outras denominações. O paradigma deliberativo encontra também algumas resistências como alternativa legítima para arbitrar processos decisórios e de formação de opiniões por partir da concepção de uma razão universal pura e neutra, deixando muitas vezes em segundo plano formas alternativas de comunicação e minimizando diferenças culturais nas quais se apóiam modos de deliberação (YOUNG, 2001)16. No entanto, a deliberação como base do paradigma participativo de democracia ainda é fonte de inspiração para modelos que seguem a linha comunicativa ou dialógica.

A proposta de uma democracia dialógica em Giddens, por exemplo, se inscreve no seu projeto político de democratização da democracia, a partir da crítica e não exatamente da oposição à concepção liberal representativa em uma ordem social reflexiva, pois “(...) a democracia representativa significa o governo de grupos distantes do eleitor comum e com freqüência é dominada por insignificantes questões de política partidária.” (GIDDENS, 1996, p.129). A “política de vida” desse autor está calcada em processos de autonomia da ação os quais capacitam o cidadão a questionar e rever decisões humanas. A sua proposta de política gerativa provém da reflexividade social e busca a realização por parte dos cidadãos e grupos de “fazerem as coisas acontecerem” e não esperarem soluções vindas do Estado ou do sistema político representativo para seus dilemas e aflições. Tal proposição se constitui em “defesa da política do domínio público, mas não se situa na velha oposição entre Estado e mercado. Ela opera fornecendo condições materiais e estruturas organizacionais para as decisões de políticas de vida tomadas por indivíduos e grupos na ordem social mais ampla.” (GIDDENS, 1996, p.23). Surge dessa discussão, a necessidade, identificada pelo autor, de construção de formas mais radicais de

16 Íris Marion Young (2001) propõe uma “democracia comunicativa” partindo da revisão do modelo deliberativo que na sua opinião está assentado no equívoco de considerar que processos de discussão que visam o entendimento entre as partes devem partir de um elemento comum de entendimento ou ter como objetivo um bem comum. Em seu modelo democrático, a autora postula que “as diferenças de cultura, perspectiva social comunicativa ou comprometimento particularista sejam compreendidas como recursos a serem utilizados na compreensão da discussão democrática, não como divisões a serem superadas.” (2001. p. 366). Além disso, Young defende a comunicação como saudação, retórica, narração, as quais se somam à argumentação na contribuição à discussão política.

democratização tanto de instâncias da vida pública como da vida privada. Na verdade, visa a inserção de práticas democráticas dialógicas para além da esfera política formal, em arenas da vida pessoal; em movimentos sociais e grupos de auto-ajuda; estruturas organizacionais complexas e em instâncias supranacionais.

O que Giddens propõe é uma democratização dos relacionamentos nos espaços institucionais e da intimidade, a qual permitiria o estabelecimento de um elo de confiança construído pelo diálogo a partir do momento em que os atores que participam do diálogo apresentem o grau necessário de reflexividade social e destradicionalização. O modelo de democracia dialógica não despreza a democracia como instrumento para representação de interesses, mas enfatiza o potencial inscrito em seu princípio de criar cenas públicas nas quais sejam dialogicamente tratados temas polêmicos, podendo se chegar a soluções que independem de formas de poder preestabelecidas.

O objetivo da dialogia nesses espaços é o alcance da conciliação entre autonomia e solidariedade e não necessariamente o consenso. O diálogo, então, se estabelece pela confiança na discussão e intercâmbio de idéias, se configurando assim uma “democracia das emoções”. Nos termos do autor, “Os indivíduos que têm um bom entendimento de sua própria constituição emocional, e que são capazes de se comunicar de maneira eficiente com os outros em uma base pessoal, provavelmente estão bem preparados para as tarefas e responsabilidades mais amplas da cidadania” (GIDDENS, 1996, p.25).

A democracia dialógica pode se configurar em atividades grupais de auto-ajuda, associativas e movimentos sociais, além da esfera da intimidade. Nesses contextos sociais manifesta-se uma abertura tendencialmente maior de diálogo com relação aos assuntos pelos quais se interessam. Um aspecto interessante que escapa aos pressupostos do espaço público clássico e moderno é que o domínio discursivo pode servir de palco para exposição de traços de conduta social, comportamentos e ações que antes se restringiram ao âmbito privado.

A proposta dialógica de Giddens se comunica com o modelo deliberativo de Habermas porque ambos se baseiam na valorização das interações sociais de forma comunicativa, no deslocamento da política das instâncias públicas oficiais para a sociedade e no viés comunicativo. No entanto, as duas propostas se diferenciam, sem necessariamente se contraporem, porque o cerne do modelo habermasiano está na valorização da dimensão espacial, dos procedimentos, das normas e da ética discursiva. Em Giddens, o fundamental é a abertura para o diálogo em âmbitos

tanto privado quanto público e não exatamente onde ele ocorre. Outro ponto de divergência entre os dois autores é que a democracia emotiva de Giddens não depende de uma situação ideal de fala (discurso), porque não está atrelada aos pressupostos de uma filosofia transcendental. “A democracia dialógica pressupõe apenas que o diálogo em um espaço público fornece um modo de viver com o outro em uma relação de tolerância mútua – seja esse ‘outro’ um indivíduo ou uma comunidade global de fiés religiosos” (GIDDENS, 1996, p.133). Giddens reconhece que nem todas as decisões ou conflitos podem ser superados por meio do diálogo, este é um meio para se estabelecer uma relação de confiança entre as pessoas e não tem a pretensão de proporcionar acordos ou consensos. “A confiança é um meio de ordenação das relações sociais no tempo e no espaço” (GIDDENS, 1996, p.133).

A proposta de Giddens de democracia parece menos pretensiosa do que a de Habermas porque este último realiza uma crítica mais incisiva em relação à concepção liberal representativa de democracia, além de resgatar e justificar a relevância da política para a dinâmica da vida pública como ação humana potencialmente propositiva e reestruturadora de um mundo que envolve interesses comuns. O potencial dialógico da política, enfatizado no pensamento de Arendt, reforçado no modelo de “política radical reconstituída” proposto por Giddens (1996), na sua concepção de “democracia dialógica”, está mais desenvolvido em Habermas, em sua proposta de democracia deliberativa, tornada possível pelo discurso e procedimentalismo. A liberdade de comunicação implícita no agir orientado para o entendimento é o pressuposto das bases sobre as quais repousam o modelo de democracia combinada de Habermas, o qual está atrelado aos pressupostos de funcionamento do espaço público, conceito fundamental para o delineamento de sua democracia deliberativa.