3 A MACRO-ESPACIALIDADE DA ESCRAVIDÃO: UMA ANÁLISE
4.1 Charqueada São João: a micro-espacialidade da Escravidão 138
4.1.3 As senzalas e as charqueadas: o incipiente estudo das senzalas
A complexidade em delimitar a senzala da charqueada São João é sintomática do que parece ser uma característica local das charqueadas pelotenses de forma geral: a multifuncionalidade dos galpões e seu uso enquanto senzala. Um dos exemplos desta característica é trazida pela descrição dos bens de raiz de Boaventura Rodrigues Barcellos. Em seu inventário, não constam “senzalas”, porém indica-se a presença de dois edifícios que serviriam um como galpão e outro como estribaria59. Interessante notar que na análise do inventário de sua nora Albana Rodrigues Barcellos, é que surge a multifuncionalidade dos galpões e o entendimento de como a tipologia das senzalas em Pelotas parece estar relacionada a esta característica destas estruturas. No inventário de Albana Rodrigues, constam: “um galpão de
charquear, com tafona e dois armazéns, para sal;; um outro galpão grande, que
59 APERS. Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. A: 409;; M: 28;; E: 06(140). 1º Cartório de Órfãos e Provedoria, Pelotas, 1856
compreendia, senzala, armazém, cocheira, estrebaria e diversos quartos” 60 (ROSA, 2012, p.108).
A multifuncionalidade dos galpões e seu uso enquanto senzala, sugeridas nos inventários post-mortem, parecem ter sido difundidos entre os charqueadores locais. Por isso é plausível supor, arqueologicamente falando, que o galpão fronteiro a casa senhorial na charqueada São João, constante no inventário de Antônio José Gonçalves Chaves, possa ser uma das senzalas do estabelecimento. Outro fator a ser considerado é que, do ponto de vista êmico, o galpão vem sendo tratado enquanto senzala pela tradição oral e por antigos moradores. Nesse sentido, a proximidade da senzala/galpão da casa senhorial e da residência do feitor é sintomática da relação de controle que se exercia sobre a moradia escrava na charqueada São João. Ademais, o fato de só haver uma saída do edifício da senzala, aliado ao gradeamento das duas janelas, sugerem seu exercício enquanto um dispositivo de controle dos escravos.
Deve-se salientar que as senzalas feitas com materiais perecíveis (madeira, barro), que na maioria das vezes, traziam elementos africanos em sua construção, não eram usualmente listados nos inventários. A historiografia local indica que os materiais construtivos podem ter variado entre estruturas de madeira/palha/barro e às de alvenaria (elementos cerâmicos), mudando de acordo com as intencionalidades dos proprietários (GUTIERREZ, 2001). Estes limites da documentação, só podem ser respondidos pelas escavações sistemáticas das distintas unidades produtivas, que ainda preservam suas áreas de produção e adjacências. Ademais, tendo em vista a bibliografia direcionada ao estudo das senzalas e as já indicadas nas discussões a respeito da configuração espacial das unidades produtivas (plantations), é possível que existisse próximo a área produtiva da charqueada São João, outra(s) vivenda(s) escrava(s), com materiais construtivos distintos aos utilizados na senzala/galpão (MARQUESE, 2005;; HIGMAN, 1998;; SINGLETON, 2015).
60 APERS. Inventário de Albana Rodrigues Barcellos. A: 406, M.28, E. 25. 1º Cartório de Órfãos e Provedoria,Pelotas, 1856.
No entanto, ainda que se avente esta possibilidade, o prédio da senzala/galpão indica, em termos de capacidade estrutural, que grande parte dos 36 escravos arrolados no inventário de João Maria Chaves, ligados diretamente ao trabalho na charqueada, pudessem estar alocados neste edifício. O estudo que daria bases para o entendimento e verificação da possibilidade de que esta fosse uma senzala doméstica ou geral do plantel, ficou limitado no momento em que a parte interna do edifício foi destruída para a construção de uma casa. Resta atualmente, somente a parede externa do galpão e a casa do feitor, ainda inteira, mas modificada (fig. 10 e 11).
Figura 10 – Foto da fachada da senzala/galpão à esquerda e da casa do feitor à direita. Pelourinho a direita da figueira (Charqueada São João). Fonte: Banco de Dados, LEICMA,
2016.
Figura 11 – Área da senzala/galpão com detalhe para a extensão do edifício e de suas aberturas (Charqueada São João). Fonte: Banco de Dados LEICMA, 2016.
Todavia, apesar da impossibilidade de acesso e análise do interior da senzala/galpão, é possível depreender algumas características do prédio, em termos de tamanho e divisões internas, por meio de mapa de implantação feito por Ester Gutierrez (2001) (fig. 12).
Figura 12 – Divisórias internas da senzala sugeridas em mapa de implantação (Charqueada
São João). Fonte: GUTIERREZ, 2001, p.198.
Nesta representação feita por Gutierrez (2001), provavelmente executada nos anos 1990, quando a autora atuou junto à charqueada nas escavações do espaço produtivo da São João, sugere-se pelo menos 3 divisórias internas na área da senzala/galpão. Uma de maior extensão. Outras cujas formas são quadrangulares. Apesar da dificuldade em interpretar as representações feitas por Gutierrez (2001, p.198), devido à falta de legendas explicativas, elas constituem-se em um “indício” de como eram os compartimentos internos da senzala/galpão, no período anterior a sua destruição.
A partir do desenho apresentado na figura 30 e das imagens de satélite da área da charqueada São João do ano de 2002, é possível constituir hipóteses da extensão da senzala/galpão, principalmente das medidas relacionadas à parte que foi destruída. É plausível supor que a estrutura tenha uma medida
aproximada de 10x35 (350 metros quadrados). O fato da estrutura possuir um desenho “retangular”, não a configura nem a relaciona, a priori, enquanto um dos exemplos do padrão de senzala retangular (grid-like-pattern), citado por Singleton (2015). Isto se dá, pelo fato já descrito, da impossibilidade de analisar as divisões internas do edifício. O único dado visualizável no presente é a existência de um espaço amplo e retangular. Um dos fatores interessantes da senzala/galpão da São João é que aparentemente ela possuía somente uma entrada/saída do edifício. Aliado a isto se constatam a existência de apenas duas janelas “gradeadas” no edifício. Estes elementos sugerem seu exercício enquanto um dispositivo de controle dos escravos61.
A preocupação com políticas higienistas e a disseminação de modelos construtivos com relação às senzalas (como aconteceram em Cuba e na região do Vale do Paraíba, a partir de 1840), não parecem ter ocorrido de forma sistemática pelos charqueadores na primeira metade do séc. XIX em Pelotas (MARQUESE, 2005;; SINGLETON, 2015). No contexto cubano anterior as políticas higienistas, escravos construíam suas casas (senzalas) de maneira típica, com materiais prontamente disponíveis: vime, barro, cal, placas de madeira, chão de terra e telhados de palha. Estas edificações eram ordenadas irregularmente sobre áreas comuns. Contudo, a partir de 1790 (período inicial do processo de higienização e reforma nas plantations) passou-se a dar preferência à constituição das casas de alvenaria, casas que compartilham paredes (muros) comuns.
O processo de modernização foi diferenciado nos contextos escravistas. Algumas localidades transformaram mais que outras as suas paisagens construídas, fazendo com que diferentes tipos de senzalas e edificações coexistissem (as novas e as antigas) (SINGLETON, 2015). Por estes fatores, não se deve descartar a hipótese de que tenham coexistido outros espaços habitados por escravos, além da senzala/galpão próximo a casa grande. Barry Higman (1998), ao citar exemplos de resistência as mudanças higienistas nas senzalas da Jamaica colonial, revela a importância do entendimento das
61 Maiores informações a respeito das características da senzala/galpão podem ser evidenciados no decorrer das escavações feitas ao lado deste edifício, que até o momento demonstram a existência de uma estrutura que pode ser anexa ou continuidade do prédio da senzala/galpão.
divisórias internas das senzalas e de como a análise do interior dessas estruturas, pode revelar uma série de elementos da vida dos cativos. O autor identificou arqueologicamente que uma das formas de resistência dos escravos foi à construção de divisórias para separar/repartir o espaço interior das senzalas de acordo com o gosto dos cativos. Este é um dos exemplos das distintas re- apropriações praticadas pelos cativos nos seus espaços de habitação e uma das formas de contestação dos escravos às imposições materiais dos senhores.