3 A MACRO-ESPACIALIDADE DA ESCRAVIDÃO: UMA ANÁLISE
4.1 Charqueada São João: a micro-espacialidade da Escravidão 138
4.1.4 Outras materialidades escravistas: trabalho, disciplina e resistências 156
4.1.4.5 Materialidades da resistência: Oratório, hibridismo e a re-significação
Uma das formas mais presentes das resistências e das expressões simbólicas dos escravos nos trabalhos arqueológicos dizem respeito a temática da religiosidade e do processo de hibridismo cultural e crioulização que os escravos foram submetidos na diáspora.Diante disso, apresentar-se-á neste tópico a manipulação sincrética feita em uma gruta/oratório em homenagem à “São João”, junto a charqueada de mesmo nome em Pelotas (fig.19).
Figura 19 – Gruta/Oratório em homenagem a São João, com elementos sincréticos. Fonte: Banco de Dados LEICMA, 2016;; e http://www.franciscofariascharqueador.blogspot.com.br.
A gruta/oratório está localizada no pátio externo entre a Casa Grande e a Senzala/galpão. Relatos orais remontam sua construção ao período escravista. Fato curioso deste símbolo católico é que em meio a uma limpeza em sua estrutura, foram encontrados dois bonecos sob as conchas que ornamentavam a obra (fig.19). Estes objetos, alocados de forma furtiva em meio as conchas, representam elementos sincréticos das religiões católica e afro- brasileira. O boneco localizado a esquerda remete-nos diretamente a figura de um escravo, não somente pela cor de sua pele, como por sua vestimenta e os pés descalços64. O manejo da materialidade do oratório supõe um uso criativo dos espaços e dos objetos. Sua manipulação o constitui enquanto elemento sincrético, de expressão simbólica e diaspórica dos escravos. Um dos fatores relevantes de serem lembrados, é que provavelmente os escravos da família dos Gonçalves Chaves fossem obrigados a cultuar e a desenvolver a fé católica, como aconteceu em diferentes cantos do Novo Mundo65. Portanto, na ausência de uma capela junto à charqueada, esta gruta representasse a materialidade religiosa “institucionalizada”. Se tomarmos este contexto como plausível, a manipulação do oratório se torna ainda mais contestadora das imposições senhoriais por parte dos escravos.
Christopher Fannell (2013) demonstra como religiões dominantes freqüentemente têm o efeito de tornar "underground" (periféricos), outros sistemas de crenças religiosas (religiões tradicionais). Este é o caso da religião católica, expressa na figura de São João. Os bonecos escondidos da superfície visível do monumento ao santo sugerem o hibridismo e sua colocação enquanto símbolo instrumental subversivo ao tradicional (“central”) católico. As matrizes africanas desta manipulação são indicadas pelo boneco “negro”, alocado abaixo da imagem de São João. A supressão do exercício público e grupal de uma religião pelo impacto de outra dominante não significa que as invocações
64 É perceptível igualmente, que de 2011 (data em que a primeira foto foi tirada) para 2016, os bonecos sofreram fortemente a ação do tempo. Um dos detalhes marcantes é o “sumiço” dos pés descalços do boneco masculino, localizado a esquerda da fig. 37.
65 Em Demerara (na Guiana Britânica) este processo ocorre de maneira sistemática por meio da tentativa do governo britânico de evangelizar os escravos. Enviou-se inclusive, missionários evangélicos para esta obra (COSTA, 1998).
individualizadas da religião não dominante representaram os meros "escombros" daquele sistema de crenças.
Para discorrer mais a fundo a respeito das características do oratório, realizar-se-á comparações com outros estudos a respeito das expressões simbólicas e religiosas dos escravos no Novo Mundo. Kenneth Brown (2015) é um dos autores que procura apresentar evidências da incorporação de variadas crenças provenientes da África Ocidental, no interior das comunidades afro- americanas. Seu estudo comparativo é de longa duração (1770-1930) e abrange quatro senzalas de plantations e três ambientes urbanos. O argumento delineado no decorrer do texto é que o uso por parte dos escravos, de símbolos religiosos de origem africana, tem por objetivo regular comportamentos sociais em suas comunidades e promover normas compartilhadas de grupo.
Para Brown (2015) o uso de símbolos centrais de origem africana nos contextos americanos configura um mecanismo de controle social por parte dos cativos. Um dos principais símbolos escolhidos foi o cosmograma Bakongo (encruzilhada/crossroads). Nas relações espaciais, esse processo se materializa na construção de altares subterrâneos no interior das senzalas. O padrão material evidenciado nos sítios de senzala é a presença e dispersão subterrânea de altares, oferendas, materialidades religiosas, que se remetem ao conceito de cruzamento. Materiais encontram-se no geral, dispersos pelos quatro cantos da “cruz”.
Brown (2015) destaca que o cosmograma Bakongo (“encruzilhada”) é elemento disseminado nos contextos americanos. No entanto, o autor salienta que a cultura afro-americana é continuamente constituída (desde a viajem atlântica). Constituir símbolos centrais seria um mecanismo de integração dos recém chegados aos comportamentos e crenças das novas comunidades. O autor supõe que por estarem escondidos da visão, estes depósitos/altares subterrâneos deveriam ser conhecimento da comunidade escrava.
Estas informações trazidas por Brown (2015) são de fundamental importância para o entendimento da materialidade do oratório e de sua inserção na dinâmica das relações escravistas e da trans-formação identitária e religiosa que os africanos foram submetidos ao serem retirados de seus lares para
enfrentar uma nova vida nas Américas. De um lado o autor salienta como a manipulação do oratório e o esconderijo feito para os elementos simbólicos dos cativos era supostamente de conhecimento de toda comunidade escrava. Ou seja, eles estavam provavelmente escondidos da visão dos senhores, dos olhares vigilantes, mas não do “ambiente da senzala”. Pelo fato de estarem “fora da visão”, há a indicação de que essas práticas culturais não eram compartilhadas com os estranhos (exteriores a comunidade). A manipulação de artefatos como o oratório, os depósitos em cota negativa (escondidos) sugerem que os escravos desenvolveram uma vida espiritual elaborada para além da "fornecida" pelos senhores. Ressalta-se igualmente a importância da religião para reafirmações identitárias e para o desenvolvimento das resistências cotidianas.
O trabalho de Brown (2015) é um ótimo exemplo da criatividade dos cativos em constituir distintos espaços de resistência e em criar diferentes formas de expressar cosmologias e identidades. As manipulações dos espaços das senzalas e da materialidade do oratório constituem algumas das variadas formas de espacialidades da resistência. No entanto, deve-se ter em mente a necessidade de compreender que na maioria das vezes, as atividades e cosmologias dos escravos são tão sutis (nos registros históricos e arqueológicos), que se não estivermos atentos às nuances contextuais dos sistemas escravistas espalhados pela América e cientes das experiências diaspóricas a que africanos e afro-descendentes foram submetidos, informações importantes da experiência escrava no Novo Mundo podem se perder.
A apropriação e manipulação do oratório, enquanto um símbolo instrumental (privado) e a expressão de um “hibridismo” religioso de matriz africana é trazido no intuito de salientar questões e promover o debate a respeito das distintas práticas materiais exercidas pelos escravos para burlar a vigilância e cerceamento dos senhores ás suas práticas/expressões simbólicas e culturais. Apesar de o oratório estar alocado no pátio que divide a casa grande da senzala e da casa do feitor, onde se supõe que a vigilância fosse exercida de forma mais intensa, sua manipulação demonstra como os usos e significações das materialidades são distintas e dão espaço à re-significações e diversas interpretações.
4.2 A complexificação da espacialidade: as escavações arqueológicas na