3 A MACRO-ESPACIALIDADE DA ESCRAVIDÃO: UMA ANÁLISE
3.2 A macro espacialidade da escravidão na Pelotas oitocentista: a gerência da
3.2.3 Locais de trabalho/sociabilidade e os usos criativos dos espaços 88
Para ser possível visualizar o que chamo de “uso criativo dos espaços” e conseqüentemente depreender um pouco da vida cotidiana e material dos escravos, em uma análise de documentos produzidos pela elite escravista pelotense, se faz necessária uma leitura a contrapelo das fontes, ou seja, na contramão dos discursos “hegemônicos”.Compartilha-se da opinião de E. P. Thompson (1978, p.157;; apud Beaudry, 2007, p.89) quando este afirma que: “[...] os documentos, mesmo aqueles produzidos pelos membros de classes superiores, podem informar, de forma não intencional, acerca dos membros [...] desprivilegiados da sociedade [...]”
Numa visão abrangente das poucas situações em que surgem indícios de outras formas de interação dos escravos com os lugares/espaços da cidade, é perceptível que os usos criativos dos espaços estão relacionados com alguns dos ambientes de trabalho dos cativos (ou à ambientes de transição).
3.2.3.1 Margens do Arroio Santa Bárbara: sociabilidades, trabalho e marginalidade
Um destes exemplos é a presença escrava na zona ribeirinha ao Arroio Santa Bárbara, por meio da atividade de lavagens de roupas. Nas Atas, esta referência surge em conjunto ao processo de normatização dos espaços praticado pela Câmara Municipal e seus vereadores, como se percebe na sessão de 10 de outubro de 1832
[...] observações feitas pelo vereador Mascarenhas [...] que se recomendasse ao fiscal, que não consinta edificarem-se prédios, ou fazerem-se cercos de hora em diante nas margens de Santa Bárbara,
que privem o uso das lavagens de roupa, por ser o único lugar que para esse efeito tem esta Vila [...]17
Mediante o processo de desenvolvimento do controle sobre o espaço, realizado pelas autoridades locais, faz-se visível um dos locais de trabalho dos cativos, uma vez que, as lavagens de roupas eram uma tarefaeminentemente realizada pela mão-de-obra escrava (feminina). O trecho demonstra outro aspecto da paisagem e da vida local: esta prática era realizada, até o ano de 1832, somente nas margens do Arroio Santa Bárbara. A nomenclatura de determinados lugares da Pelotas oitocentista, como os nomes das ruas da cidade, pressupunham as funcionalidades que eram desempenhadas nestes locais. Ou seja, as práticas e atividades cotidianas se inscreviam nos espaços e vice-versa. A nomenclatura da atual rua Santos Dumont, que era fronteira/limítrofe ao antigo curso do Arroio Santa Bárbara, como “Rua das Lavadeiras”é um exemplo de como a atribuição de significados a elementos “naturais” ou “geográficos” é sempre um processo culturalmente determinado (ASHMORE e KNAPP, 2003).
No contexto da Pelotas da primeira metade do século XIX, as margens do Arroio Santa Bárbara, possuíam outra característica aos olhos das autoridades locais: a de ser um reduto de escravos, vadios, e de correção (AL- ALAM, 2007). Segundo Caiuá Al-Alam (2007, p.130) esta pecha “marginal” sobre esta área da cidade, se desenvolveria em dois pontos: 1) devido a acentuada circulação de cativos pela região do Santa Bárbara;; 2) pelo fato de que a Casa Correcional foi erguida junto às margens do arroio, num intuito de se afastar da zona urbana os apenados que ali se encontravam, revelando uma preocupação tanto em relação à higiene (para evitar a propagação de epidemias) como pelo “saneamento moral”, onde a distância do núcleo da cidade asseguraria a não influência desses indivíduos. A imagem da área ribeirinha do Arroio Santa Bárbara enquanto um “espaço marginalizado” da cidade está intimamente ligado a prática desse espaço pelos escravos, haja vista a fala de Domingos José de Almeida (apud GUTIERREZ, 2004, p.255), onde o mesmo trata a região das
17 BPP. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Sessão Ordinária – 10 de Outubro de 1832 – Moraes 38 (Direita) – Anexo DPM-001.
margens do arroio Santa Bárbara como: “[...] foco de imoralidades, fundição (sic) de crioulos e entretenimento de escravos [...]”.
3.2.3.2 O uso criativo dos espaços: as cacimbas e os jogos de escravos
Outro local que relaciona os locais de trabalho, os espaços de sociabilidade dos escravos e os usos criativos dos espaços são as cacimbas de beber água. Esta relação se faz presente nas discussões da Câmara na sessão do dia 8 de janeiro de 1833
[...] O vereador Mascarenhas propôs. Primeiro. Que se nomeasse uma comissão de três membros, que se encarregassem de mandar abrir três ou quatro cacimbas de água de beber, em lugares próprios: Segundo. Que depois destas cacimbas servirem ao público, se cuide logo em concertar a que existe deteriorada, fazendo-a mais pequena, e desmanchando-se a guarita que ali se acha que só serve de refugio ou capa a indecências e a jogos de escravos [...]18
Fica claro na proposição do vereador Mascarenhas, a preocupação em manipular a materialidade das cacimbas, no intuito de tolher práticas “subversivas” dos escravos. Dito de outra forma, a ação reguladora do vereador, é no sentido de manter a vigilância sobre a atividade escrava.
Das discussões da Câmara presentes na base de dados documental, descrevem-se 34 menções relacionadas à temática das fontes de água (cacimbas, pipas e fontes no geral). Somente os anos de 1848 e 1836 que não possuem menções sobre as cacimbas. De maneira geral, em todo o período estudado (1832-1850), existe a reclamação da falta de fontes potáveis e o esforço por parte das autoridades locais em abrir cacimbas, principalmente em locais próximos aos limites urbanos. A abertura de cacimbas nas sessões da Câmara se apresentam ou como projetos de abertura de novas fontes potáveis ou como conserto das já existentes. Estas se localizam no decorrer da rua das Fontes (atual Almirante Barroso);; no final da rua das Flores (atual Andrade Neves), próximo ao Arroio São Gonçalo, na localidade denominada “Cacimbas do Mato”, e nas margens do Arroio Santa Bárbara.
18 BPP. Atas da Câmara Municipal da Vila de São Francisco de Paula. Sessão Ordinária – 8 de Janeiro de 1833 – Moraes 51 (Direita) – Anexo DPM-001.
Este contexto de rarefação dessas estruturas na cidade faz com que a probabilidade de contato entre os escravos nas imediações das cacimbas fosse alta. A tentativa de ampliar a vigilância sobre o trabalho escravo, através da destruição da guarita que inibia a visibilidade completa da estrutura, é uma tentativa de evitar o desenvolvimento das manifestações “culturais” escravas e vigiar os contatos e interações dos cativos no decorrer de suas atividades no espaço público.
Quanto aos jogos de escravos, não há maiores informações na informação do vereador, porém é possível aceitar esta atividade enquanto uma das formas de expressão cultural dos cativos. É provável que consistissem das danças e cantorias que os escravos realizavam e que eram prática comum no Brasil escravista. Fato é que os jogos de escravos, ligados ao uso criativo do espaço das cacimbas, pôs em destaque a estratégia de ocultação dos cativos da vigilância senhorial. Isto resultou no que James Delle (1998) cunhou como “espacialidades da resistência”.O exemplo presente nas sessões da Câmara demonstra o uso criativo dos espaços e a manipulação dos ambientes construídos por parte dos cativos, como uma estratégia de resistência. Cabe destacar as afirmativas de Nicole Branton (2009, p.56), a respeito das espacialidades do poder e os diferentes usos e práticas dos espaços/paisagens […] Frequently, subordinated groups manipulate their spaces in order to create private places where activities may occur outside of the view of the powerful. This issue of surveillance is an emerging issue in the spatiality of power relations in historical archaeology (Epperson, 2000)[...]
Este trecho resume o que se demonstrou no exemplo trazido sobre os diferentes usos e práticas executados nas cacimbas e traz um elemento a mais a discussão: o fato de que a materialidade do muro ou guarita, posta no entorno da cacimba precitada, foi manipulada e constitui-se em um espaço “privado”, onde as atividades/expressões culturais dos escravos ocorreram fora da visão dos senhores e autoridades públicas. Este evento em específico demonstra, outrossim, como as relações escravistas são negociadas e conflitantes, tanto nos espaços privados, das unidades produtivas, quanto nos espaços “públicos”.
3.3 Cerceamento da circulação de escravos: posturas normativas,