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As sepulturas e as locuções da lembrança: continuidades e transformações da memória (mortuária)

2. AS AÇÕES DOS MORTOS NAS CIDADES DOS VIVOS: SEPULTURA E MEMÓRIA, LUGAR E TEMPO

2.1. As sepulturas e as locuções da lembrança: continuidades e transformações da memória (mortuária)

Talvez um dos documentos escritos mais importantes para formarmos uma ideia da dimensão da questão dos sepultamentos adjuntos aos mártires e santos da Igreja seja o opúsculo de Agostinho De cura pro mortuis gerenda. Opúsculo que surgiu a partir de uma epístola agostiniana. Na ocasião, por volta de 421-422,69 Agostinho, então bispo da cidade de Hipona em sua última década de vida, responde a uma carta70 de Paulino, bispo de Nola, sobre o seguinte problema levantado por seu correspondente: haveria alguma utilidade para o fiel em ser sepultado junto ao túmulo dos mártires cristãos?71 A mesma questão já havia sido realizada a Paulino por Flora, uma provável matrona residente na África,72 cujo filho, Cinérgio, tinha morrido enquanto estava na península itálica, nas proximidades da cidade de Nola. A pergunta de Flora não era desinteressada, pois acompanhava o pedido feito a Paulino de que seu filho fosse inumado junto ao túmulo de Félix, mártir de destaque da comunidade que estava sepultado na basílica de Cimitila, nos arredores de Nola (De cura. 1,1). Pergunta que traduzia, portanto, a vontade da ação de sepultar os entes queridos próximos aos mártires e o interesse na “validade” de tal ato.

Agostinho sabia da dimensão deste tema. Responder se os sepultamentos junto aos túmulos dos mártires trariam algum benefício ao cristão exigia um esforço argumentativo por

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A obra pode ser datada entre os anos de 421-422 por conta do lugar que ocupa em suas Retractationes. Nesse livro em que revê e retoma alguns de seus argumentos e suas obras, o De cura pro mortuis gerenda ocupa um lugar entre o Enchiridion e o De octo Dulcitii quaestionibus. Sabemos que o Enchiridion (ou o Liber de

fide, spe et caritate), um pequeno manual da fé cris tã endereçado a Laurêncio, não poderia ter sido escrito

antes do ano de 421, por conta da menção à morte de Jerônimo em 420. O De octo Dulcitii quaestionibus é endereçado a Dulcício, agente imperial irmão de Laurêncio, em resposta às suas questões propostas, que data entre os anos de 422-423. Nessa obra, Agostinho chega até retomar literalmente alguns trechos do De cura pro

mortuis gerenda, quando indagado sobre a utilidade das comemorações e sacrifícios junto aos túmulos . Sobre

a questão da datação do De cura pro mortuis gerenda, ver os trabalhos de Eric Plumer (1999, p. 259), Nair de Oliveira (2002, p. 141-142), quanto a datação do Enchiridion, ver John Cavadini (1999, p. 296-297).

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Carta que não chegou aos nossos dias. 71

De cura. 1,1: quaerens a me utrum prosit cuique post mortem quod corpus eius apud sancti alicuius

Memoriam sepelitur.

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Uma discussão recente sobre quem seria esta Flora e quais suas relações familiares é encontrada em Paula J. Rose (2013, p. 19-23), que argumenta sobre sua provável conexão com membros próximos ao imperador Teodósio.

demais delicado, pois tal pedido envolvia um sistema de crenças, de diferenciações e de privilégios que Agostinho havia sempre combatido nas discussões com dissidentes donatistas e pelagianistas (Lancel, 2002, p. 339-343). O pedido de Flora, assim como as práticas de muitos outros que foram – ou aqueles que almejavam ser ou ter os seus entes mais próximos – inumados junto aos mártires, chocava-se e rompia com os ideais agostinianos de uma Igreja “católica”, isto é, “universal”, marcada pelo ideal de comunidade, em que não havia uma elite de cristãos privilegiados e uma massa de cristãos comuns (Markus, 1997, esp. p. 53; Brown, 2005, p. 263-279). Colocava-se um dilema para o bispo, pois, embora fiel a seus princípios, sua resposta não poderia negar o poder de intervenção dos mártires em suas sepulturas e no reino dos céus, nem condenar a piedade cristã em realizar tais sepultamentos ad sanctos, sem contar que deveria lembrar-se dos fiéis que não podiam ter acesso a tais formas de sepultamentos, pois, como a inscrição de um fiel que conseguira tal feito deixava claro, este era um benefício “que muitos desejavam e poucos recebiam”.73

A crença na intercessão martirial, em especial na África do Norte, tinha uma tradição arraigada ao menos desde o início do século III.74 Podemos notar sua força em dois episódios marcantes. O primeiro é encontrado na narrativa do martírio de Perpétua, Felicidade e de seus amigos em Cartago. No texto apontado como escrito pela própria Perpétua nos momentos em que estivera em cárcere antes de seu julgamento, vemos como a mártir descreve seu poder de intercessão em favor de seu irmão Dinócrates em duas das visões em sonho que teve neste período. Ao recordar de Dinócrates e de sua morte precoce, aos sete anos com uma enfermidade descrita como câncer na face, Perpétua (Passio, 7) tem a primeira visão em sonho de como ele estaria para além desta vida: estava num lugar tenebroso, junto a tantos outros, sufocado pelo calor, sujo, pálido, e continha a mesma ferida na face com que morrera. Além disso, Dinócrates aparentava estar com sede, mas não alcançava a piscina cheia de água que estava a sua frente, devido sua baixa estatura. Ao acordar, Perpétua sabia que seu irmão estava cumprindo penas após a morte e, portanto, resolveu intervir: “tinha confiança de que

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Sepulchrum intra limina sanctorum (...) quod multi cupiunt et rari accipiunt. Trecho extraído de Orazio Marucchi (1974 [1912], p. 179, n. 166). Vale mencionar que a inscrição também é citada e discutida por Peter Brown (1981, p. 34) e Pasquale Testini (1980, p. 130).

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Sobre os cultos dos mortos praticados pelos cristãos e suas possíveis motivações no século III, ver o levantamento de fontes feito por Eliezer Gonzalez (2013). Sobre o contexto de composiç ão da narrativa de Perpétua e algumas de suas releituras posteriores, ver Brent Shaw (1993). A respeito das visões de Perpétua e suas inscrição e distinção dentro de uma tradição de visões de ascensão e do outro mundo, ver Eliezer Gonzalez (2014, cap. 8).

havia de aliviá-la, e não cessava de orar todos os dias (...). E fiz orações para ele dia e noite, com intuito de que por minha intercessão ele fora perdoado”.75 Na visão que obteve no sonho seguinte, eis que Dinócrates agora lhe aparece limpo, bem vestido, com a ferida cicatrizada e com a piscina d‟água disponível para sua altura, que bebia dela sem cessar. Ele estava bem, saudável outra vez. “Então percebi que havia cumprido sua pena”76 (Passio, 8). Perpétua nos narra, portanto, a crença de sua intervenção de cura em favor de seu irmão já falecido (Brown, 1978, p. 77-78). Seus poderes e os de seus companheiros de cárcere cristãos seriam reconhecidos por até mesmo o oficial encarregado de vigiar o cárcere, que ao reconhecer nos confessores uma “virtude grandiosa” (magnam uirtutem), deixava-os saírem do cárcere para se refrescarem e também serem visitados pelos demais membros da comunidade cristã (Passio, 9; Cooper, 2011, p. 695).

Se este primeiro episódio utilizado é narrado a partir de um possível ponto de vista privilegiado do interventor que invoca a mobilização direta de seus poderes em favor de seus próximos ou daqueles que lhe pedem auxílio, o segundo que selecionamos nos demonstra outra atmosfera nas relações entre mártires, Igreja e fiéis na África. O local ainda é o mesmo, Cartago; mas avançamos um pouco no tempo: este segundo exemplo é da metade do século III, durante as perseguições aos cristãos implementadas no tempo de Décio. Em uma carta escrita na primavera de 25077 e endereçada aos mártires e confessores, Cipriano (Ep. 15) nos permite observar a força crescente do poder da intervenção martirial. E isto diante de um tema espinhoso. Pois, é nesta carta que surge pela primeira vez o assunto que ocupará por muito tempo as atenções do bispo: a questão dos lapsi, os “caídos” ou “apóstatas”.78 Com o avanço da política de fazer com que todos os habitantes do império realizassem sacrifícios aos deuses ou ao culto do imperador, sob o risco de pena capital com sua negação,79 criou-se um número

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Et experrecta sum, et cognoui fratrem meum laborare. Sed fidembam me profuturam labori eius: et orabam

ro eo omnibus diebus (...). Et feci pro illo orationem die et nocte gemens et lacrimans ut mihi domnaretur

(Tradução nossa). 76

Tunc intellexi translatum eum esse de poena (Tradução nossa). 77

Seguimos aqui a datação fornecida por Julio Campos (1964, esp. p. 45) na introdução às suas traduções das obras de Cipriano.

78

A respeito das questões dos lapsi e a contextualização da perseguição segundo análise das obras de Cipriano, ver María del Mar Novás Castro (1995).

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Uma introdução às perseguições empreendidas no tempo de Décio pode ser encontrada em Graeme Clarke (2005, p. 625-635).

grande de mártires na Igreja nos tempos de Cipriano, que incluiu o próprio bispo, morto em 258. Em contrapartida, muitos cristãos capitulavam e sacrificavam em proteção às suas vidas ou mesmo porque poderiam muito bem não ver mal algum nestas práticas, mas poderiam se arrepender depois. Quando não sacrificavam, adquiriam meios de sua comprovação com a compra de certificados que atestavam este ato e que eram exigidos pelas autoridades locais. O que a carta de Cipriano nos evidencia é o modo como os lapsi dirigiam-se direto aos mártires e confessores no cárcere para pedir perdão e futura intercessão pelos seus atos. Tal perdão era concedido por meio de libelli pacis distribuídos pelos mártires e confessores80 (Ep. 15, IV), que garantiriam, assim, a remissão dos pecados cometidos, sua exomologese. Essas realizações não agradavam em nada a Cipriano (Ep. 15, II, 2), uma vez que, segundo sua visão, tal prática de mártires e confessores desafiaria tanto a autoridade e a hierarquia eclesiástica quanto demonstraria o desconhecimento que mártires leigos poderiam ter dos evangelhos. De qualquer modo, ainda temos como ouvir a posição de mártires e confessores contra o posicionamento de Cipriano (Ep. 22), reafirmando a autoridade e legitimidade de suas práticas em intercessão dos fiéis. O que demonstra que a prática, que por certo não havia se iniciado neste momento,81 não se interrompe com os apelos do bispo e, ao mesmo tempo, evidencia a crença contínua no poder de intervenção dos mártires, quer seja nesta vida ou após a morte do fiel.

Para além de toda esta tradição de intercessão martirial – mesmo que ainda fora do contexto específico dos sepultamentos ad sanctos –, Agostinho reconhecia a importância que seu interlocutor depositava nessas atitudes diante dos mortos. Os sepultamentos junto aos mártires eram atos de piedade e afeição de validade extrema para Paulino. Exemplo mínimo disto era o fato de que seu filho estava sepultado junto aos mártires Justo e Pastor em Complutum, na Hispania (Brown, 1981, p. 27; Lancel, 2002, p. 464). E Agostinho faz questão de trazer seu reconhecimento do modo como Paulino observava a prática de depositio ad sanctos em seu texto:

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Presentes também na carta de Luciano a Celerino, presentes no epistolário de Cipriano (Ep. 22, II, 1): Sed et

omnes quos Dominus in tanta tribulatione arcessire dignatus est, uniuersi litteras ex conpacto uniuersis pacem dimisimus (Tradução nossa).

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O que é possível ver tanto na narrativa do martírio de Perpétua e Felicidade, no fato do grande fluxo de membros da comunidade cristã que as visitavam no cárcere, quanto em Tertuliano (Ad Mart. I, 6).

Estimas, como me dizes, que não é coisa vã o sentimento que leva pessoas religiosas e fiéis a prestarem esse cuidado para com os seus defuntos. Acrescentas, ainda, que não é sem razão que a Igreja universal tem o costume de rezar pelos mortos. Só se pode, pois, concluir daí que seja útil ao homem, após sua morte, uma sepultura desse gênero, onde possa contar com a proteção dos santos.82

A própria basílica martirial de Félix pode ser um campo de exploração destas atitudes de Paulino. Pouco após ser morto e sepultado durante, bem provável, a perseguição de Diocleciano, o túmulo de Félix já atraía fiéis.83 Com o seu culto bem estabelecido no fim do século IV, sua fama de intercessão e sua “companhia invisível” (Brown, 1981, p. 55-56) já eram reconhecidas por Paulino antes mesmo de se mudar para Nola (Trout, 1999, p. 165; Van den Hoek; Herrmann Jr, 2000, p. 173-174). Da presença de Paulino na cidade até o fim de seu episcopado em 431, a basílica se tornou um verdadeiro complexo de peregrinação de fiéis após sucessivas obras que visavam sua expansão e decoração, contando inclusive com a presença de poemas paulíneos espalhados pelos seus espaços, nos detalhes de seus lintéis. Após a sua maior reforma durante este período, a Basilica Vetus que abrigava o túmulo de Félix ganhou a companhia de uma nova, Basilica Nova,84 que contou até com a presença de relíquias de apóstolos e mártires sob o altar em sua abside.85

Mesmo diante do reconhecimento das dimensões que os sepultamentos junto aos mártires adquiriam ao seu redor, Agostinho não hesita e logo de início afirma que a opinião de Paulino sobre a utilidade do sepultamento junto aos mártires não condiz com o que está escrito nas escrituras, pois “a sentença do apóstolo [em 2 Cor. 5,10] adverte-nos que é antes

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De cura. 1,1: Adiungis etiam vacare non posse quod universa pro defunctis Ecclesia supplicare consuevit ut

hinc et illud coniici possit homini prodesse post mortem si fide suorum humando eius corpori talis provideatur locus in quo appareat opitulatio etiam isto modo quaesita Sanctorum.

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Apesar da dificuldade de identificar os edifícios construídos em homenagem a Félix, devido a s constantes construções e reocupações que sua área sofreu, pode-se datar sua morte no último quarto do século III, além da construção de uma estrutura parecida com um mausoléu por volta de 303 -305. Nesse sentido, ver as observações de Ann M. Yasin (2009, p. 181, n. 65).

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A respeito da cronologia das reformas, dos sucessivos planos de construção e dos esforços de Paulino em tentar harmonizá-los numa dinâmica múltipla de pontos focais sagrados, ver Yasin (2009, esp. p. 181 -189). 85

Paulinus, Ep. 32.10: Basilica igitur... reliquiis apostolorum et martyrum intra absidem trichoram sub altaria

da morte que devemos fazer o que poderá ser útil depois dela”.86 De forma resumida, complementa: “Enquanto se vive neste corpo mortal, existe certa maneira de viver que permite, uma vez morto, adquirir algum alívio com as obras pias feitas em seu sufrágio. Essa ajuda será proporcional ao bem que cada um tiver cumprido durante sua vida”.87 A um só tempo, Agostinho afirma que existem possibilidades de sufrágios, de recursos a serem feitos em nome dos mortos que, de certa forma, auxiliar-lhes-iam no além,88 mas que de nada adiantaria caso o endereçado desses votos não tivesse levado uma vida condizente com as boas práticas da fé. Assim, “é o gênero de vida que cada qual levou durante a existência corpórea, que determina a utilidade ou inutilidade desses auxílios que lhes são atribuídos piedosamente após a morte”.89

O que vemos é que, em resumo, de nada adiantaria ser sepultado junto aos mártires se o morto em questão não tivesse praticado bons feitos durante sua vida, ou seja, os mártires poderiam ter até certa forma de interceder pelos mortos, porém, seus poderes estariam condicionados ao “estilo de vida” daqueles mortos cujos pedidos dos vivos estavam direcionados.

Agostinho considerava que tal resposta já seria suficiente para tratar a indagação de seu amigo (De cura. 1,3). O tema suscitava, no entanto, problemas outros que ele não poderia deixar de responder. Esses problemas decorrentes vão girar em torno de um eixo principal, resumido com a seguinte interrogação: qual o valor da sepultura? É na resposta desta questão que veremos como Agostinho operou uma tentativa de deslocamento do valor da sepultura próxima aos mártires.

Em primeiro lugar, tendo em vista os que não puderam ter um túmulo adequado, mesmo morrendo enquanto fiéis dignos de tal feito, como nos exemplos daqueles que foram assassinados, tal como os próprios mártires, Agostinho afirmou de modo simples e direto que as providências relativas aos funerais (curatio funeris), à escolha do local da sepultura (conditio sepulturae), às pompas do enterro (pompa exsequiarum), tudo isso seria “mais

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De cura. 1,2: Haec quippe apostolica sententia ante mortem admonet fieri quod possit prodesse post mortem. 87

De cura. 1,2: Verum haec it solvitur quaestio quoniam quodam vitae genere acquiritur, dum in hoc corpore

vivitur, ut aliquid adiuvent ista defunctos ac per hoc secundum ea quae per corpus gesserunt, eis quae post corpus religiose pro illis facta fuerint adiuvantur.

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Nesse sentido que Jacques Le Goff (1995, p. 84-106) chega a chamar Agostinho como “pai do purgatório”. 89

De cura. 1,2: Genere igitur vitae quod gessit quisque per corpus efficitur ut prosint vel non pro sint

consolo dos vivos (vivorum solatia) do que alívio dos mortos (subsidia mortuorum)”.90 Tal afirmação era, de certo modo, bastante radical, dentro ou fora do cristianismo de seu tempo.91 Agostinho elevaria nesse momento ao máximo sua posição da não necessidade do sepulcro (Duval, 1988, 20-21).

Mas seu esforço argumentativo não parava por aqui. Ele continua, logo em seguida, a dizer que isso não seria um motivo para se abandonar os corpos dos mortos, a deixá-los sem um cuidado, em especial aqueles dos mais fiéis (De cura. 3,5):

(...) não deixa de ser marca de bons sentimentos do coração humano, para com os seus mortos queridos, o fato de escolherem para os corpos, ao serem enterrados, um lugar junto ao túmulo dos santos (Memorias sanctorum locus). Uma vez que o sepultamento é, em si mesmo, obra religiosa, essa atenção posta na escolha do local não pode ser estranha ao ato religioso.92

Embora reconhecendo esse testemunho de piedade e de ternura como uma expressão religiosa, o único “benefício” que o morto poderia receber de tal prática mortuária ad sanctos não decorreria, de modo exclusivo e necessário, do local de seu sepulcro. A única ajuda que os mortos encontrariam estaria no ato de, ao serem visitados por seus parentes em seus respectivos túmulos, serem “encomendados, na oração, à proteção dos santos protetores, junto ao Senhor”.93 Ao afirmar isto, Agostinho acaba por deslocar a questão mortuária, ou melhor, do sepultamento próximo aos mártires de um lugar para outro: do local de sepulcro para as orações em favor dos mortos. Tal argumentação pretendia acabar com os privilégios de uns em detrimento de outros no seio da comunidade, pois as orações encomendando os mortos aos mártires poderiam ser realizadas mesmo quando não fosse possível inumá-los próximos

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De cura, 2,4: Proinde ista omnia, id est, curatio funeris, conditio sepulturae, pompa exsequiarum, magis sunt

vivorum solatia, quam subsidia mortuorum.

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Para formar uma noção – ainda que pequena e restrita em sua maior parte ao período de expansão do Império – acerca dos valores depositados nos sepultamentos tidos como adequados em grupos sociais distintos, ver os documentos reunidos por Valerie Hope (2007, 109 -127).

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De cura. 4,6: profecto etiam provisus sepeliendis corporibus apud memorias sanctorum locus, bonae

affectionis humanae est erga funera suorum: quoniam si nonnulla religio est ut sepeliantur, non potest nulla esse quando ubi sepeliantur attenditur.

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De cura. 4,6: eisdem Sanctis illos tanquam patronis susceptos apud Dominum adjuvandos orando

aos seus locais de sepulcro.94 Agostinho atribuiu tamanha importância a essas orações que, caso não fossem realizadas, ele julgava que “nada valeria, ao espírito deles, que seus corpos sem vida, se encontrassem sepultados nos lugares mais santos”.95 Ser sepultado junto aos mártires, portanto, tem sua valoração pelo fato de que, ao lembrar-se do morto, e estando este enterrado próximo dos mártires, “a afeição amorosa lembra-se e reza, recomendando a esse mártir o morto querido”.96

Assim, Flora, ao expressar a vontade de sepultar seu filho na basílica martirial de Félix, “acreditava que a alma do finado seria ajudada pelos méritos desse mártir”. Para Agostinho, porém, tal fé já era uma determinada expressão de súplica, e “uma súplica útil”, pois, quando voltasse seu pensamento “em direção a esse túmulo, e ela mais e mais recomendar o filho em suas orações, eis aí o que realmente será útil à alma do defunto”. Nesse sentido, ele conclui que o que auxilia ao morto (adiuuat defuncti spiritum) “não é o lugar onde o corpo morto esteja enterrado, mas a afeição viva da mãe, revivificada pela lembrança desse lugar” (De cura. 5,7; Grifos nossos).97

Com esse deslocamento de importância do túmulo para a oração, o que toma o cerne das discussões sobre a valoração das sepulturas passa a ser o elemento que as conecta, a um