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Morte e cidade na Antiguidade Tardia : transformações da topografia urbana e da topografia mortuária na cidade de Cartago (séc. IV-VII)

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

RAFAEL APARECIDO MONPEAN

MORTE E CIDADE NA ANTIGUIDADE TARDIA: TRANSFORMAÇÕES DA TOPOGRAFIA URBANA E DA TOPOGRAFIA MORTUÁRIA NA CIDADE

DE CARTAGO (SÉC. IV-VII)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Cultural da Universidade Estadual de Campinas.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari

CAMPINAS - SP 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 20 de abril e 2016, considerou o candidato Rafael Aparecido Monpean aprovado.

Prof. Dr. Pedro Paulo Abre Funari (orientador) Prof. Dr. Cláudio Umpierre Carlan

Prof. Dr. Julio Cesar Magalhães de Oliveira

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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AGRADECIMENTOS

Por mais que digam que o trabalho acadêmico é solitário, ele não se faz todo em isolamento. Circulamos por espaços inúmeros e encontramos pessoas distintas que colaboram das maneiras mais variadas com a resolução ou mesmo multiplicação de nossas inquietações (quer queiram/saibam ou não). Meu caso não é diferente. E aqui deixo registrada a importância das pessoas, espaços e instituições que proporcionaram a realização deste trabalho.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao apoio institucional recebido pelo CNPq, sem o qual seria impossível ter me mantido durante os anos em Campinas. Do mesmo modo que agradeço ao Serviço de Apoio ao Estudante da Unicamp pelos auxílios recebidos que contribuíram de forma fundamental na minha permanência, em especial no início dessa caminhada. Sem contar os serviços prestados pelos funcionários dos departamentos e das bibliotecas do IFCH e do IEL.

Agradeço por toda a orientação, confiança, paciência que recebi do professor Pedro Paulo A. Funari nesses anos em que trabalhamos juntos. Também gostaria de agradecer a disposição dos professores Cláudio Umpierre Carlan e Julio Cesar Magalhães de Oliveira por aceitarem ler, num primeiro momento, o texto de qualificação. Graças às contribuições, críticas e questões que me propuseram naquele momento, o texto final foi traçado da maneira que agora se apresenta para, minha sorte, eles mais uma vez avaliarem. Ao Julio Cesar agradeço não só por um primeiro contato com esse “mundo da antiguidade tardia”, como também por várias formas de incentivo (de conversas, discussões de trabalhos e divulgação de textos seus ainda inéditos) que me instigaram a prosseguir neste campo de estudos.

Graças a diversos eventos propulsionados pelo IFCH e seu programa de pós-graduação, o Departamento de História e pelo Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp, pude entrar em contato com estudiosos que, creio, não seria possível em outro lugar. Algumas de suas contribuições foram de grande relevância tanto para os problemas desenvolvidos nesta pesquisa como para algo a ser realizado para além dela própria. Agradeço aqui aos comentários de Neil Silberman sobre as questões a respeito dos recortes cronológico e espacial, e de seus limites para os problemas atuais na região da África do Norte. Agradeço a Margarita Díaz-Andreu pelos alertas referentes à etnicidade e à temporalidade nas práticas mortuárias. Agradeço pela conversa com Roger White a respeito das formas de continuidade e transformações da cidade romana antiga e os modos de se inquirir este problema. Agradeço a Aline Carvalho, de quem tive o prazer de ser aluno e a quem devo grande parte das referências e discussões a respeito do campo teórico arqueológico. E, não menos, agradeço a Glaydson José da Silva, pela possibilidade de desenvolver algumas conversas que me inquietaram e fizeram buscar modos de poder responder (ainda que de modo manco e em constante modificação) aos impasses epistemológicos do fazer historiográfico.

Contei ainda com a oportunidade de poder contar com as palavras sábias e críticas justas de alguns estudiosos dos campos em que me aventurei. Agradeço, nesse sentido, a Carlos

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Augusto Ribeiro Machado pelas sugestões e críticas a respeito da análise espacial das cidades e pelos incentivos a continuar trabalhando nesta área; a Anna Leone pelos alertas das dificuldades em trabalhar com a cultura material de Cartago deste período selecionado e também pela divulgação de textos que foram imprescindíveis para esta pesquisa; e a Cristina La Rocca pela disponibilidade e atenção com que pode me receber em Pádua e pelos questionamentos e problematizações sobre as cidades norte-africanas que podem render possíveis investigações futuras.

Agradeço aos amigos que fiz em terras ultramarinas, em especial a Manuel Dionisio Ruiz Bueno, pelas trocas de experiências e materiais riquíssimos. Também ao apoio e coleguismo imprescindíveis de Davide Dal Bo, Dario Mastromarino e Giuseppe Pellegritti. Sem contar o auxílio ao qual não tenho palavras para descrever de uma maneira justa, apenas recordações maravilhosas de uma solidariedade incrível de Julia e Paul.

Aos colegas da linha de pesquisa também deixo aqui meu reconhecimento de seus papeis na construção das problematizações aqui realizadas. Dentre eles, agradeço em especial a Pedro F. Maguire, Jaqueline G. Araújo, Rafael N. Rufino, Luciana C. de Souza, Filipe N. Silva, Marina Fontolan, Cleber V. do Amaral Felipe, Maurício A. Pelegrini e Gabriela B. de Laurentiis. Também aos companheiros de IFCH, que me ajudaram dentro e fora da Universidade, sobretudo nos períodos mais difíceis, como Murillo van der Lan, Mariana Shinohara Roncato, Marco Tobón e Sílvio Shina.

Agradeço aos meus grandes amigos de velha escola, aqueles que são de todas as horas, Alessandro, Lorrant, Rodolfo e Sérgio, que continuaram a me dar forças, com auxílios e muitas críticas, na presença e na distância, e tiveram influência direta numa enorme parte de minhas escolhas.

Devo agradecer a Yasmin Carli-Albino, Lorena Balbino e Lahis Moreno por me ajudarem, em etapas e graus diversos, a perceber no cotidiano aquilo que afirmo no campo historiográfico: que, por mais que possa parecer, o fim de uma temporalidade não é a morte de uma “paz última”, ideia tão ilusória quanto atraente, e que o silenciamento de coisas passadas também é necessário para prosseguir.

Também deixo aqui meus agradecimentos para Giovan do Nascimento, Juliana Marques Morais e Márcio Monteneri, velhos colegas de estudos da Antiguidade Tardia, pela continuidade de nossas trocas de figurinhas, ainda que com vários momentos de suspensão, mantiveram-se cada vez mais estimulantes. Devo à Juliana um agradecimento em especial por todo seu apoio nesse momento final.

Nessa caminhada pude ter a felicidade de conhecer pessoas novas que não apenas me fizeram questionar alguns pontos da minha pesquisa e me auxiliaram nos momentos mais difíceis, como também foram exemplos de incentivo para prosseguir diante de grandes adversidades e que contribuíram para transformar o dia-a-dia em algo mais valioso. É o caso de Fernando Matias Siqueira, Hugo “Tolima” Abreu, Laura Alberti Oliveira, Laura Luedy e, no apagar das luzes, a redescoberta de Fernanda P. Rosa.

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Ao Fernando Matias Siqueira, Laura Alberti Oliveira, Laura Luedy e Yasmin Carli-Albino devo também agradecer por lerem e comentarem partes diversas desta dissertação.

Agradeço, por fim, mas não menos importante, a minha família, pelo suporte e auxílios incondicionais e praticamente irrestritos. Seus exemplos inúmeros de apoio e solidariedade me deram uma força quase que sobrenatural e criaram as condições para poder finalizar esta etapa que pareceu interminável e de um sofrimento inconcebível.

Registro aqui minha gratidão e expresso meu mais sincero “muito obrigado” para todos. As ideias que manifestei têm, com certeza, muito de vocês. A responsabilidade por elas, no entanto, é toda minha.

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RESUMO

Este é um trabalho a respeito das transformações das topografias mortuária e urbana ocorridas na cidade de Cartago durante a Antiguidade Tardia. Procuramos, nesse sentido, um meio de problematizar de modo simultâneo as mudanças mortuárias e urbanas ocorridas entre os séculos IV e VII, uma vez que cremos que as relações espaciais existentes nas designações entre lugares apropriados aos mortos e aos vivos são indissociáveis. Para tanto, vemos como necessária uma abordagem que leve em conta, sobretudo, a multiplicidade dos registros documentais que dizem respeito da problemática mortuária. Assim, testemunhos provenientes da cultura material e fontes textuais foram utilizados como elementos para compor essa história das relações para com os mortos e para com seus respectivos espaços de deposição.

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ABSTRACT

This dissertation is about the transformations in mortuary and urban topographies occurred in the city of Carthage in Late Antiquity. Therefore, we search to question simultaneously urban and mortuary changes happened between the 4th and 7th c., since we believe that the existing spatial relationships between the designations appropriate places for the dead and for the living are inextricably linked. In this way, we see as necessary an approach that takes into account, above all, the multiplicity of documental records about the mortuary issues. Thus, testimonies from the material culture and textual sources were used as elements to compose a history of the relationship to the dead and to their respective places of deposition.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mensa funerária da basílica de Alexandre, em Tipasa. Foto extraída de Robin Jensen (2008, p. 127, fig. 4.14)... 93 Figura 2: Mosaico localizado no centro de uma mensa funerária numa região próxima a Tipasa, extraído de Robin Jensen (2008, p. 2008, fig. 4.15)... 94 Figura 3: Esquema que representa a concepção inicial dos limites sacros das cidades romanas antigas, de Matteo Aniballetto (apud Ruiz Bueno, 2013, p. 189, fig. 1). ...108 Figura 4: Afresco do século III, descoberto em 1957 num cubículo das catacumbas próximas de Marcelino e Pedro em Roma, com a representação de um fossor, empunhado de uma espécie de picareta, no trabalho de escavação de um cubículo ou galeria. A imagem ainda conta com a representação de uma lamparina presa num gancho, que Testini argumenta poder ser utilizado tanto nesta função quanto para auxiliar nos transportes de corpos. Imagem ex traída de Testini (1980, Tav. I)...112 Figura 5: Mosaico do túmulo do bispo Honório, com destaque para sua inserção que rompe com o padrão anterio r empregado. Fo to de P. Gau ckler, 1907, extraída de Bara tte (2008, p. 229, fig. 5). ...121 Figura 6: Instalação do túmulo do bispo Baleriolus defronte ao monumento martirial, foto de P. Gauckler, 1907, extraído de Ba ratte (2008, p. 230, fig. 7). ...122 Figura 7: Plano do local do túmulo de Baleriolus e sua relação de proximidade com o relicário da basílica e dos demais túmulos neste espaço distintivo, realizado por N. Duval depois de Delattre, extraído de Y. Duval (1982, p. 60, fig. 39)...123 Figura 8: Desenho de E. Pessey da pavimentação de mosaicos que reúnem os epitáfios de Bareliolus, ao centro, de Faustina, no canto superior esquerdo e, logo abaixo do dela, de Spendeu. Extraído de Raynal (1982, p. 250, PL. IX)...123 Figura 9: Plano da basílica de Uppenna, depois de P. Gauckler, com a demonstração das duas extensões que a igreja chegou a ter, extraído de Raynal (1982, p. 192, Pl. I). Destaque para o túmulo de Honório, túmulo 44, na entrada da pia batismal...124 Figura 10: Plano da chamada igreja do padre Félix, em Kélibia, após Cintas e Duval, extraído de Yasin (2005, p. 439, fig. 12). Destaque para a quantidade de túmulos espalhados por todo o interior da basílica, em especial nas naves centrais. ...126 Figura 11a: Mosaicos mortuários no interior da basílica do padre Félix em Kélibia. Fotografia tirada no

momen to da escava ção de Cintas e Duval, extraída de Yasin (2005, p. 440, fig. 13). ...127 Figura 12: Plano da chamada igreja do padre Félix, em Kélibia, após Cintas e Duval, extraído de Yasin (2005, p. 451, fig. 29). Os sepulcros em destaque (sombreados) são aqueles que são conectados com membros

eclesiásticos...129 Figura 13: Igreja de Alexandre em Tipasa, plano esquemático em detalhe desenvolvido por N. Duval, extraído de Baratte (2008, p. 235, fig. 13). ...131 Figura 14: Plano da area mortuária onde se localiza a basílica de Alexandre em Tipasa, depois de Leschi, extraído de Y. Duval (1982, p. 368-369, fig. 240). ...132 Figura 15: Plano da basílica de Santa Salsa, em Tipasa, com os inúmeros túmulos que tomam seu espaço. Extraído de Y. Duval (1982, p. 359, fig. 234). ...133 Figura 16: Vista aérea da basílica de san ta Salsa, em Tipasa, extraído de J.-P. Caillet (2008, p. 241, fig. 9)...134 Figura 17: Mosaico mortuário do bispo Reparatus, de Castellum Tingitanum, extraído de Baratte (2008, p. 232, fig. 10). ...135 Figura 18: Plano em destaque da parte oriental nave central da basílica I de Ammaedara. Extraído de N. Duval (1981, p. 117, fig. 130). ...136

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Figura 19: Inscrição tumula r do sepulcro do bispo Victorinus. Extraído de N. Duval (1981, p. 119, fig. 133 b)...137 Figura 20: Plano da basílica de Ammaedara, após N. Duval, em destaque os sepulcros dos clérigos. Extraído de Yasin (2005, p. 452, fig. 30). ...138 Figura 21: Epitáfio do bispo Melleus, d e Ammaedara. Extraído de N. Duval (19xx, p. 116, fig. 129 b). ...139 Figura 22: Mapa com a localização de Cartago, com ênfase no Golfo de Túnis, pro duzido por Eric Gaba (2012). ...145 Figura 23: Imagem aérea do bairro de Cartago em Túnis atual com sobreposição da planimetria da cidade antiga, feita a partir do Google Earth por I. Fumadó Ortega (2009, p. 151, fig. 29). Os números indicam as zonas em que se instalaram as equipes internacionais durante a campanha da UNESCO no sítio: 1, Alemanha e Bulgária; 2, Grã-Bretanha; 3, França; 4, EUA ; 5, Canadá; 6, Dinama rca ; 7, Suécia; 8, Tunísia; 9, Itália. ...146 Figura 24: Planta da cidade de Cartago com ênfase nas sepulturas localizadas dentro e fora do perímetro urbano, elaborada por Lantier...148 Figura 25: Plano do traçado teórico da Colonia Iulia Karthago de Charles Saumagne, extraído de Anna Leone (2002, p. 235, fig. 1)...149 Figura 26: Novo percurso da muralha elaborado após a descoberta dos vestígios em Bir Darouts, extraído de A. Leone (2002, p. 236, fig. 3). Compa rar com o traçado ao lado. ...151 Figura 27: Plano da cidade de Cartago com a evidência do traçado da muralha elaborado pela missão britânica em Cartago, extraído de A. Leone (2002, p. 236, fig. 2). ...151 Figura 28: Área da escavação da equipe canadense em Cartago, após Wells, extraído de Anna Leone (2007a, p. 121, fig. 34). ...152 Figura 29: Plano da conhecida por basilica maiorum ou dita "de Mcidfa", extraído de L. Ennabli (1997, p. 133, fig. 82). ...154 Figura 30: Fragmento da inscrição martirial encontrada na Basilica Maiorum, com sua suposta reconstrução: “*(cruz) Hic+ sunt marty*res+ / (cruz) Saturus, Satu*r+n*inus+ / (cruz) Rebocatus, S*e+c*undulus+ / (cruz) Felicit(as), Per*pe+t(ua) pas(si) *non(as) Mart(ias)+ / *...M+aiulu*s...+”. Extraído de Y. Duval (1982, p. 14, fig. 11 a). ...154 Figura 31: Vista da confessio (na direção nordeste) da Basilica Maiorum, com os sepulcros à vista, foto da época da escavação, ex traída de L. Ennabli (1982, p. 17, fig. 10)...156 Figura 32: Plano do edifício conhecido por basílica de Santa Mônica ou São Cipriano. Extraído de (Ennabli, 1997, p. 130, fig. 80). ...158 Figura 33: Vista aérea da basílica dita de Santa Mônica ou da memoria de Cipriano, extraída de L. Ennabli (1975, p. 13). Destaque para seu posicionamen to topográfico, co m o ma r ao fundo. ...159 Figura 34: Plano da basílica dita de Santa Mônica ou da memo ria de Cipriano de 1917. ...160 Figura 35: Desenvolvimento em três fases da basílica de Damous el Karita proposto por N. Duval (1972, p. 1112)...162 Figura 36: Foto do momento da escavação de uma das câmaras mortuárias encontradas em Damous el Karita. ...163 Figura 37: Plano da basílica conhecida como Da mous el Karita, ex traído de L. Ennabli (2000, p. 58). ...164 Figura 38: Fotografia de H. Dolenz da cripta da rotunda do martyrium de Damous-el-Karita. Extraído de Dolenz (1996, p. 154, fig. 6)...165 Figura 39: Reconstrução isométrica idealizada do martyrium de Damous-el-Karita, realizada K.E. Hassaine, extraído de Dolenz (1996, p. 157, fig. 10). ...165 Figura 40: Plano da reconstru ção da basílica de Bir Ftouha, ex traído de S. Stevens et. alli (2005, p. 4). ...170 Figura 41: Composição do plano de Bir Ftouha. Com a diferenciação entre os locais escavados por Delattre e as realizadas entre 1994-1999. Também conta com as sondagens e as prospecções realizadas em 1991 -1992. Imagem extraída de S. Stevens et al. (2005, p. 24, fi ...171 Figura 42: Provável coluna fundacional da fase prévia da basílica, localizada na parte noroeste do complexo, observada a partir do norte. Os túmulos identificados como 30 e 31 estão um pouco acima do centro da imagem. Túmulos 26 e 27, de uma fase posterior da basílica, estão à esquerda. Ao lado direito da coluna fundacional é possível observar os túmulos 28 e 29. Imagem extraída de S. Stevens et al. (2005, p. 100, fig. 2.47)...172

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Figura 43: Plano demonstrando as trincheiras utilizadas e as principais modificações numa segunda fase da basílica. Destaque para inserções de túmulos (em especial nas trincheiras 4 e 8; 52 e 53). Imagem extraída de S. Stevens et al. (2005, p. 104, fig. 2.49). ...173 Figura 44: Estrutura do eneágono de Bir Ftouha, com destaque para os sepulcros encontrados em seu interior. O túmulo em destaque por S. Stevens está eixo entre as duas aberturas de entrada do edifício. Imagem extraída de S. Stevens (2000, fig. 2B). ...173 Figura 45: Plano da basílica de Bir el Knissia de Vaultrin, depois de A. Thouverey. Imagem exttraída de S. Stevens (1993, p. 8, fig. 9). ...175 Figura 46: Inscrição fragmentada encontrada no sítio da basílica de Bir el Knissia durante as escavações de 1990-1992. A partir desta inscrição que Liliane Ennabli (1997, p. 118) inquire sobre uma possível conexão com a transladação de relíquias da basílica maiorum para esta. O texto do fragmento: “*...+ncta sepulcro / [...]tae *M+aiorum/ *...+c na m*... / ...+it VI*.../...+a t*.+a*.../...+na*...+”. ...176 Figura 47: Plano da localização de Bir el Knissia, mostrando as locações das escavações dos anos 1922 -1923 e as de 1990-1992. Imagem extraída de S. Stevens (1993, p. 4, fig. 3). ...177 Figura 48: Planta com a localização das sepulturas em espaço urbano, elaborada por e extraída de Anna Leone (2002, p. 238, fig. 5)...182 Figura 49: Plano da colina do teatro de Cartago elaborado por Colette Picard, em 1951, via Wikimedia

Commons. ...183 Figura 50: Mapa do quadrante nordeste de Cartago, depois de André Lézine, extraído de C. Balmelle et alli (2003, p. 152, fig. 1)...186 Figura 51: Plano do circo de Cartago com a indicação da localização das trincheiras utilizadas nas escavações de 1987, imagem extraída de Nao mi No rman (1992, p. 163). ...190 Figura 52: Níveis mais antigos da necrópole localizada próxima ao circo de Cartago. Note no canto superior direito o trecho da muralha. O olhar do observador é direcionado ao sul. Imagem extraída de J.H. Humphrey (1988, 184, fig. 6). ...191 Figura 53: Exemplo de sepulcro realizado no cemitério do circo de Cartago. O corpo é do sexo masculino, com uma idade de 30 anos ou mais. Imagem extraída de J. Hu mphrey (1998, p. 240, CIST 9081). ...191 Figura 54: Um dos três exemplos de sepultamentos em ânforas do cemitério do circo de Cartago. Único

sepultamento em ânfora de um adulto. Trata-se de um esqueleto feminino, com idade entre 25-35 anos. Imagem extraída de J. Humphrey (1998, p. 235, AMPHORA 9060) ...192 Figura 55: Plano do edifício do norte do porto circular, apresentando o formato que as estruturas estariam no século VI. Imagem extraída de Anna Leone (2007a, p. 170, fig. 46, a). ...194 Figura 56: Projeção axonométrica do edifício do norte do porto circular, depois de H. Hurst. Imagem extraída de Anna Leone (2007a, p. 170, fig. 46, b)...194 Figura 57: Área de escavação do edifício ao norte do porto circular. Em foco o que foi convencionado durante a escavação de Edifício 1, e parte do Edifício 2 no canto inferior direito. A visão do observador é direcionada para sudoeste. Imag em ex traída de Henry Hurst (1975, plate V, b). ...195 Figura 58: Plano esquemático de Cartago (séculos V ao VII), com a projeção de quadros de regiões onde ocorreram os sepultamentos no interior da malha urbana antiga. A representação cartográfica foi composta por Susan Stevens e Wade, após Hu rst e Ennabli. Imagem extraída de S. Stevens (1996, p. 209). ...196

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 15

1. OS MORTOS E AS CIDADES: POTENCIAL EXPLORADO E EXPLORAÇÃO A SE

POTENCIALIZAR 25

1.1. Um vislumbre da variedade das materialidades mortuárias da Antiguidade e da

Antiguidade Tardia 26

1.2. Quando morrer não é sinônimo de encerrar: a potencialidade dos estudos que as

materialidades mortuárias podem gerar 32

1.3. Problematizando a materialidade mortuária: o emaranhado de relações entre os

espaços de vivos e os espaços de mortos 41

2. AS AÇÕES DOS MORTOS NAS CIDADES DOS VIVOS: SEPULTURA E

MEMÓRIA, LUGAR E TEMPO 59

2.1. As sepulturas e as locuções da lembrança: continuidades e transformações da

memória (mortuária) 63

2.2. Comemorações e comunidades: os mártires e a disciplina 85 2.3. Rompendo fronteiras?: mudanças e continuidades nos espaços dos vivos e nos

espaços dos mortos 106

3. A CIDADE E OS MORTOS: CARTAGO E AS TRANSFORMAÇÕES DA TOPOGRAFIA URBANA E DA TOPOGRAFIA MORTUÁRIA DURANTE A

ANTIGUIDADE TARDIA 143

3.1. Disposições da topografia urbana de Cartago 148

3.1.1. Organização antiga e elaborações modernas sobre o plano urbano da Cartago romana 148

3.1.2. Relevância dos impactos no traçado urbano após construção da muralha

teodosiana (420-425) 150

3.2. Cartago, por onde andaram seus mortos? 152

3.2.1. Condições de implantação dos edifícios eclesiásticos e as correlações com a

topografia mortuária 152

3.2.2. Os sepultamentos no interior da cidade: estruturas e diversidade dos espaços

mortuários 178

3.3. As implicações da materialidade mortuária de Cartago para a história da cidade na

Antiguidade Tardia 197

SIT TIBI TERRA LEVIS. CONSIDERAÇÕES FINAIS 200

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1. Fontes Antigas 205

1.1. Obras Literárias 205

1.2. Relatórios de Escavação e Recursos de Fontes Materiais 206

2. Bibliografia específica moderna 208

3. Obras de referência 231

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INTRODUÇÃO

Este é um trabalho sobre as transformações da topografia mortuária ocorridas na cidade de Cartago durante a Antiguidade Tardia. A periodização que delimitamos para observar as mudanças ocorridas nas relações entre os espaços designados para os vivos e os espaços designados aos mortos recai em uma longa duração, que vai do século IV ao VII. Englobamos, portanto, um período marcado por modificações que ultrapassam as relações para com os mortos. Fenômenos e eventos inúmeros ocorridos durante este recorte cronológico deixaram marcas profundas nas composições políticas, sociais, religiosas e econômicas na história do Mediterrâneo. Marcas que afetaram não só os períodos contemporâneos e consecutivos ao desenvolvimento dos eventos como também dividiram e ainda dividem as opiniões de estudiosos de inúmeras áreas do saber a respeito das formas de interpretar o fenômeno do “fim do mundo antigo” – para utilizar a expressão inquietante e consagrada pelo livro homônimo de Santo Mazzarino.

Qualquer que seja a posição adotada nesse debate multissecular, uma coisa é, a saber, tão segura quanto, por muitas vezes, esquecida, devido a sua banalidade enganosa: todos os personagens desta história morreram. Morreram, porém, uma morte que não foi sempre a mesma durante, no mínimo, o nosso recorte cronológico. Não foi a mesma não apenas pelos modos diversos pelos quais se poderia morrer, mas, sobretudo, pela historicidade com que tanto a morte como, em especial, a relação para com os mortos foram e são constituídas. Para utilizarmos uma definição precisa e poética dada por um dos pioneiros da abordagem historiográfica do fenômeno da morte, Michel Vovelle (1996, p. 14): “[...] a morte sempre foi histórica. Ela sempre se inscreve num movimento que é o da história. [...] [As] representações da morte estão imersas num contexto ou num banho cultural que é propriamente o banho histórico”. É, portanto, com esta dimensão histórica aplicada às relações para com os mortos, ao destino último que recebem e as sucessivas formas pelas quais os vivos mantêm-se em contato ou não com eles, que podemos elaborar esta análise das topografias mortuárias.

Enfatizar a questão topográfica das interações entre vivos e mortos é, por sua vez, nada mais que sublinhar o espaço em que elas ocorreram. É no processo de escolha dos espaços mortuários, em suas condições de possibilidade numa determinada conjuntura

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estruturada e passível sempre de se modificar, que nasce a perspectiva de uma problematização das interações entre vivos e mortos e da criação de suas delimitações possíveis e praticáveis. As implicações de sentido encontradas nas maneiras de designar um espaço para depositar o defunto são sempre correspondentes diretas de um conjunto de estratégias e práticas arraigadas na composição dos próprios assentamentos coletivos humanos. Os espaços designados para a realização das práticas mortuárias incidem de modo direto nas formas materiais e nos sentidos dos assentamentos coletivos humanos, fazem parte de sua elaboração e de suas mudanças; são, assim, partes criadas e criadoras dos próprios assentamentos. Em resumo: descrever este lugar dos mortos é interpretá-los no espaço em que ocupam de acordo com os pressupostos de um dado assentamento de vivos, numa determinada coletividade: é realizar um movimento que procura tomar por objeto as relações socioculturais que os espaços em geral e os espaços mortuários em particular estão envoltos e envolvem. Nesse sentido, para o nosso caso em especial, estudar a topografia mortuária é indissociável de estudar a topografia urbana.

É importante ter em mente também a historicidade de nossa própria ação de inquirir sobre o espaço. A preocupação e problematização espaciais estão arraigadas em nosso tempo presente e são temas de discussões das mais diversas – encobrem das formas de ocupação e utilização do espaço público e privado aos problemas ambientais, sem contar a própria questão mortuária que, por sua vez, é atravessada por ambos os tópicos na atualidade. Essa guinada espacial não é de hoje e data, sobretudo com uma proliferação de debates no campo da Arquitetura, dos anos 1970-1980.1 Num movimento de reação às posições “utilitaristas” e “funcionalistas” dos projetos de uma Arquitetura modernista no período pós-guerra do século XX, arquitetos, como Paolo Portoghesi (2002 [1980]) e Amos Rapoport (1982), indagaram-se sobre formas outras da construção do espaço habitado e construído: articulando linguagem à cultura material, buscavam novas maneiras de interpretação e elaboração arquitetônicas, que dessem conta, entre outras coisas, dos elementos artísticos-criativos e da historicidade dos locais em que seriam erigidas novas obras. Munidos deste intuito, outros arquitetos procuraram investigar períodos da história em que elementos distintos dos até então presentes tivessem sido constitutivos do caráter urbano das cidades. O trabalho de Joseph Rykwert

1

Um dos efeitos diretos das discussões espaciais do campo da Arquitetura deste período é a notoriedade com que o famigerado fenômeno pós -moderno foi trabalhado. Seus efeitos em outros campos do saber podem ser observados em Linda Hutcheon (1991, p. 45-58).

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(2006 [1963]) a respeito dos traçados citadinos etruscos e romanos é um exemplo desta busca, na qual ele ressalta a importância dos aspectos religiosos para a fundação das cidades antigas. Os estudos sobre a Antiguidade e a Antiguidade Tardia não passaram incólumes aos questionamentos espaciais da segunda metade do século XX. Embora muitos pesquisadores não partam das preocupações levantadas por uma verdadeira “viragem espacial” (spatial turn), não se pode deixar de reconhecer que o problema do espaço foi – de modo direto ou indireto – fundamental para a própria instauração da história dos períodos romanos consecutivos, cuja figura proeminente é a cidade – em especial, a cidade romana imperial antiga. Uma proeminência que repousa, em especial, na existência milenar da própria cidade de Roma, desde sua fundação no século VIII a. C. até os limites em que se inserem o nosso trabalho, que, no mais tardar, dataria do século V de nossa era.2 Mas não é só pela continuidade temporal e monumentalidade material que a cidade romana antiga adquiriu destaque nos estudos antigos. A questão de suas difusões por todos os cantos do Mediterrâneo antigo também tem lugar marcante no desenvolvimento destas preocupações espaciais citadinas. Numa citação que se tornou célebre, Arnold H. M. Jones (1964, p. 712) afirmou que a configuração do Império era uma “aglomeração de cidades” (ciuitates, poleis).3 Base constitucional e administrativa, ainda de acordo com Jones, “as cidades foram as células de que o império era composto”. Com a expansão do domínio imperial, multiplicaram-se as difusões e as conexões de modelos urbanos. No plano das relações de poder, o traçado e o espaço urbanos ao lado de seus edifícios característicos não eram os meios pelos quais o imaginário político era apenas transmitido; eles incorporavam, num certo sentido, a mensagem direta do poder imperial (Zanker, 2000).

Se voltarmos nossa atenção para o norte da África e, em particular, na faixa litorânea próxima a área conhecida por Magrebe, a presença das cidades e de uma malha urbana incipiente remonta, pelo menos, ao período fenício, mas que tem sua difusão e monumentalização após o período da colonização romana e de sua integração na dinâmica econômica imperial, em especial entre os séculos I e inícios do III d.C. (Mattingly; Hitchner, 1995, p. 179-187; Magalhães de Oliveira, 2007/2008, p. 128-129).

2

Nesse sentido, a discussão de Arnaldo Momigliano (1989) sobre os diversos fins da cidade de Roma e do Império romano continuam de extrema valia.

3

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Outro ponto de destaque é que a cidade romana antiga despertou e ainda desperta a atenção advinda dos mais variados saberes (Funari, 2003, p. 33). A atração de campos de estudos diversos resulta numa constante profusão de trabalhos que, dentre outras coisas, não cessam de se reatualizar, reconfigurar e problematizar o espaço, a duração e a dinâmica das transformações urbanas. Esta reavaliação multidisciplinar constante auxiliou e ainda auxilia nas problematizações das topografias urbanas da Antiguidade Tardia. Os estudos que acompanham tais modificações sofreram uma renovação de fôlego a partir dos anos 1990, em especial devido à realização de trabalhos arqueológicos (Cameron, 1993, p. 157; Mattingly; Hitchner, 1995).

Um grande e crescente número de publicações veio à tona, fruto de prospecções e, em menor quantidade, escavações de vários sítios mediterrânicos. O resultado foi o florescer de perspectivas interpretativas novas e debates intensos acerca dos solos em que se desenvolveram as transformações citadinas. Dentre estas obras, cabe ressaltar as coletâneas de artigos que envolveram discussões sobre tópicos dos mais diversos a respeito de características particulares da cidade na Antiguidade Tardia, muitas das quais foram resultados de conferências e colóquios, como as que foram organizadas por: John Rich (1992), The city in Late Antiquity, Simon T. Loseby e Neil Christie (1996), Towns in transition: urban evolution in Late Antiquity and the Early Middle Ages, Claude Lepelley (1996), La fin de la cité antique et le début de la cité medievale de la fin du IIIe siècle a l’avénement de Charlemagne, e por Gian Pietro Brogiolo e Bryan Ward-Perkins (1999), The idea and ideal of the town between Late Antiquity and Early Middle Ages.4

Os problemas colocados pela topografia mortuária para a Antiguidade Tardia ganharam um espaço notório no interior dessas discussões revitalizadas. Tanto que Eric Ivison (1996, p. 99), em seu artigo sobre os sepultamentos na cidade de Corinto tardia e medieval, chegou a afirmar que nenhuma coletânea “devotada à transição da cidade antiga para a medieval deveria negligenciar o aspecto mais duradouro da vida urbana, o sepultamento dos mortos”.5

A colocação de Ivison não é gratuita. A composição material e ideal das cidades romanas antigas foi construída a partir de uma delimitação em que se procurava manter nítida

4

Para um balanço das propostas de modificaç ão das cidades na Antiguidade Tardia, ver as discussões de Claude Lepelley (1996a), Bryan Ward-Perkins (1999) e também de Cristina La Rocca (2003).

5

*…+ devoted to the transition from the ancient to the medieval city should neglect that most enduring aspect of

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a distinção entre o mundo dos vivos, a cidade, e o mundo dos mortos, as necrópoles.6 O exemplo mais marcante disto são as necrópoles localizadas nas estradas de acesso às cidades, uma vez que era interditado os sepultamentos no interior de seus limites (seja eles físico-materializados ou não). Uma síntese pode ser feita da seguinte maneira no que diz respeito aos problemas que trataremos aqui: ao longo dos séculos IV e VII ocorreu uma ruptura destas delimitações antigas entre vivos e mortos que marcaram o traçado da cidade romana antiga. Em linhas gerais e numa escala de longa duração, o que se observa é, a partir do século IV, um desenvolvimento gradual em que as antigas necrópoles adentram as cidades, sobretudo as cidades mediterrânicas.

Tentar responder os porquês destas transformações das topografias mortuárias e urbanas atravessa um tema cujas discussões têm-se ampliado de maneira considerável nos últimos, pelo menos, 30 anos. O fenômeno que marca esta ruptura dos limites urbanos e mortuários é composto por dois processos paralelos e de vetores invertidos: por um lado, passou-se a enterrar os mortos no interior das cidades, em especial nos períodos do final do século IV e início do V, capitaneados pelos corpos dos mártires e santos cristãos; por outro, as necrópoles tradicionais em que se encerravam os corpos destes homens e mulheres santos, e mesmo nos locais onde sofreram o martírio – fora dos limites das cidades –, passaram a congregar um número cada vez maior de pessoas, indicando, de fato, o início da marcação de uma visibilidade monumental das igrejas na paisagem da cidade antiga.7

Grande parte dos trabalhos que abordou as questões dos mártires e santos das Igrejas e de suas ações conjuntas que acarretaram nas mudanças topográficas tardias enfatizaram, em especial, dois efeitos complementares entre si deste fenômeno: a questão da cristianização dos

6

Tendo em conta, claro, as particularidades circunstanciais e regionais em cada uma de suas aplicações. Nesse sentido, seguimos aqui a precaução de Pedro Paulo A. Funari (2003, p. 33) a respeito das diversidades apresentadas pelas cidades romanas antigas, de que a melhor maneira de se observar seu panorama e suas particularidades seria admitir que “ou mónon a cidade era elemento central para os romanos, alla kaì era diferente, em diferentes lugares e épocas e para diversos grupos sociais”.

7

Da inúmera bibliografia que se desenvolveu sobre o culto dos santos nos últimos 30 anos ou mais, ressaltamos, por agora, os trabalhos de Paul -Albert Février (1977) e a obra que talvez tenha sido a que mais conseguiu dar visibilidade e propulsionar debates para o problema do poder dos mortos, ou, na expressão de seu autor, Peter Brown (1981), o poder dos “mortos especiais” da Igreja. Uma ótima discussão bibliográfica aliada à enumeração de casos de transformação das topografias urbanas e mortuárias na Antiguidade Tardia e de suas correlações com as questões dos mártires pode ser encontrada em Gisella Cantino Wataghin (1999). Um levantamento de algumas das repercussões e direções dos estudos sobre o culto dos mártires e dos santos (e seu verdadeiro boom já em 1999) após os trabalhos de P. Brown pode ser encontrado na obra organizada por James Howard-Johnson e Paul Antony Hayward (1999). Para mais discussões neste sentido, ver o nosso segundo capítulo.

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espaços romanos clássicos e o aumento do poder dos personagens que capitalizaram esse culto dos mortos da Igreja, os bispos. Apesar de concordarmos em determinados pontos com uma parte ampla dos autores que fizeram uso destas premissas para analisar as mudanças topográficas durante a Antiguidade Tardia, como Peter Brown e Robert Markus, não podemos deixar de notar determinados problemas que tais perspectivas colocam, em particular, para a análise dos fenômenos das relações entre os espaços urbanos e mortuários.

Um problema que se torna evidente quando percebemos como estes fenômenos particulares se articulam com mudanças estruturais nos modelos interpretativos dos autores modernos. É necessário, nesse sentido, relembrarmos como a imagem da cidade ou, melhor, dos aspectos cívicos presentes no ideal da cidade antiga é, em geral, compreendida nesse tipo de abordagem. Em resumo, vemos que ocorreu uma mudança marcante nas tendências de enfoque na historiografia moderna, que passou a tentar compreender a criação de formas novas de composição de coletivos e dos modos de coligação entre seus membros, por meio de um enfoque maior dado às formas de construção da subjetividade e aos aspectos identitários propiciados pela vida citadina.

Assim, o que alguns estudiosos da Antiguidade e da Antiguidade Tardia popularizaram, sobretudo a partir dos estudos dos anos 1970, foi a criação de modelos de identificação sociais que estariam em transição: ver-se-ia nesse período, que encobre os anos de, mais ou menos, 300 até 800 de nossa era, uma transição de um “modelo cívico” para um “modelo religioso”. Isto é, veríamos uma transição de um período em que seria predominante a identificação cívica de uma para outra em que predominaria as conexões religiosas, cada vez mais intimistas e distantes dos espaços das cidades clássicas.8 Seus efeitos principais estariam na inclusão de novos personagens sociais, como os pobres, que seriam a partir de então “visíveis” por meio de uma série políticas de auxílio (Brown, 2002). Mas não acaba aqui esse processo de ampliação da cidade e de seus habitantes. Conforme ressaltou e bem resumiu Simon T. Loseby (2009, p. 149), se o cristianismo expandiu a noção de comunidade urbana ao incluir o pobre entre os cidadãos, ele também expandiu a noção de espaço urbano ao incorporar e estabelecer os cemitérios e os subúrbios nos ritmos da vida urbana por conta das celebrações de seus mártires.

8

Claro que os proponentes de uma mesma vertente podem apresentar divergências em aspectos determinados das formas de composição de um modelo transição. Isso é o que muito bem expõe Julio Cesar Magalhães de Oliveira (2013, p. 384-387), além de fornecer um breve histórico da criação dos modelos interpretativos a respeito deste período e de suas respectivas limitações.

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Se, por um lado, esta forma de inquirir as modificações das cidades na Antiguidade Tardia tem o mérito buscar compreender os acontecimentos nas conjunturas de suas ocorrências e utilizar um método mais empático e menos trágico para tentar compreender as formas de percepção dos atores e suas atribuições de sentido para um mundo em transformação, por outro, ela esbarra nas mesmas limitações epistemológicas de perspectivas as quais se contrapõe.

Observamos isto quando voltamos por um instante para alguns dos autores que estudaram os traçados urbanos romanos clássicos e seus destinos na Antiguidade Tardia sob o prisma das formas administrativas citadinas e seus impactos consecutivos nos aspectos organizacionais e monumentais das cidades. Ao refletir sobre a administração curial citadina, estudiosos tais como Bryan Ward-Perkins e Wolfgang Liebeschuetz notam uma ruptura das forças aristocráticas antigas que estavam em jogo na manutenção do estilo de vida público “clássico”. Com o acúmulo de encargos e cobrança de impostos imperiais (para a resolução de seus conflitos internos e externos que o Império enfrentava) e a prática de punições mais severas na contravenção destas incumbências, os curiales (ou decuriões) são vistos como sem forças para garantir as conservações da vida citadina, como, por exemplo, a simples manutenção da pavimentação e o controle do espaço das ruas públicas (Ward-Perkins, 1999, p. 373-382). Entre os efeitos desse progressivo “descaso” para com a monumentalidade e os cuidados públicos, aliado ao redirecionamento dos novos investimentos em edifícios cristãos (basílicas e/ou relicários martiriais dentro das cidades ou nas necrópoles ao seu redor), estaria a construção, como afirmou Bryan Ward-Perkins (1999, p. 403), de “um mundo em que a catedral e o local dos santos foram uma parte estabelecida e central da cidade, e em que os bispos aristocratas foram ou os cidadãos mais poderosos e ricos ou estiveram, ao menos, entre os membros superiores [the very top members] da sociedade urbana”.9

No entanto, não se trata apenas de uma realocação simples do dispêndio das riquezas destas elites citadinas locais e das elites imperiais. Esses processos são vistos como uma ruptura dramática – apesar de sempre virem acompanhados de explicações de como ocorreram com ritmos diferentes em regiões diferentes, embora sempre a um só destino: o de seu próprio fim após a queda do Império e dos sistemas de manutenção de sua própria estrutura. Nessa trama temporal, a ideia de um retorno e um retrocesso tecnológico e cultural

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(…) a world in which the cathedral and the local saints were an established and central part of city life, and in

which aristocratic bishops were either the most powerful and wealthy citizens, or were at least amongst the very top members of urban society.

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que vai em direção a um passado (às vezes remetidos à pré-história) que não é mais prestigioso e ordenado como teria sido o passado romano é posto em evidência pelos usos irrestritos dos conceitos famigerados de declínio e queda.10

Por mais que seja demarcado por posições contrastantes em relação às mudanças urbanas e às questões do fim ou não das características romanas, o debate continua a ser regulado em um campo epistemológico bastante similar. Essas duas perspectivas predominantes nos modos de abordar a cidade que tangenciam as relações mortuárias de modo direto ou indireto são, em sua grande maioria, elaboradas a partir de teorias sociais normativas. Teorias que pressupõem certos funcionamentos da cidade romana clássica e tardia. Funcionamentos que partem de princípios excludentes tanto no que se refere aos distintos grupos sociais que estão em jogos e disputas constantes, quanto na interpretação das modificações e das experiências históricas imanentes. Conforme muito bem colocou Julio Cesar Magalhães de Oliveira (Inédito a)11 em relação aos estudos sobre a violência popular e os modos de ação coletiva, mas que cabe também ao que estamos discutindo:

“Em todos os casos, a normalidade ou a excepcionalidade da violência são sempre julgadas em função de uma mesma concepção normativa da sociedade clássica, que é tida como estável, homogênea, coerente e privada de conflitos. Todo o debate tem se restringido em saber se essa estabilidade teria persistido no Império Tardio e se o cristianismo seria ou não responsável pela transformação desse equilíbrio”.

Assim, um resumo provocativo entre ambas as tendências sobre o destino da cidade poderia ser: ou cidade é a celebração do novo por aquilo que está fadado a morrer ou ela está fadada à

10

Com toda certeza, a bibliografia é imensa sobre este debate. Para observar a defesa destes paradigmas de queda e declínio na historiografia atual, ver a posição quase nostálgica da força imperial de Roma de Andrea Carandini (1993), além das proposições de Neil Faulkner (2004), que, embora aborde em especial o caso britânico, suas premissas sintetizam transformações mais gerais que envolvem as cidades de toda a bacia mediterrânica. O livro de Bryan Ward-Perkins (2005) sobre “a queda de Roma e o fim da civilização” transformou-se num verdadeiro paradigma destas posições na atualidade. As implicações políticas atuais destas posições sobre declínio e perigo de fim civilizacional para observar o fim do Império Romano é muito bem discutido no novo prefácio de The rise of Western Christendom de Peter Brown (2013, esp. p. xxx-xxxii). Uma discussão provocativa das proposições a respeito do fim do Império Romano pode ser encontrada em James O’Donnell (2005).

11

Aproveitamos para agradecer Julio Cesar Magalhães de Oliveira pela disponibilização do texto completo que foi apresentado no colóquio referenciado, além de outros textos ainda não publicados que em muito contribuíram para o desenvolvimento de nosso trabalho.

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morte por um novo que ainda não nasceu. De qualquer modo, não podemos esquecer a validade dos pormenores que os autores de ambas as tendências nos propiciam, uma vez que, se procuramos matizar as interpretações a respeito das transformações ocorridas entre as topografias mortuárias e urbanas, temos que procurar matizá-las na própria esfera argumentativa destes trabalhos analisados. Pois, como notou Magalhães de Oliveira (2007/2008, p. 127), ambas as perspectivas não são incompatíveis em sua totalidade, “na medida em que tanto as continuidades como as rupturas podem ser verificadas, conforme se busque no período em questão as raízes do novo ou o fim do antigo”.

Captar isto é essencial para elaboração de novos trabalhos. Contudo, uma questão permanece: como elaborar uma abordagem que dê conta da conjuntura das transformações das relações entre as topografias urbanas e mortuárias numa escala temporal ampla?

Foi com intuito de responder a esta pergunta que elaboramos o nosso primeiro capítulo. Começamos, para tanto, com um sobrevoo pelas variedades da cultura material mortuárias da Antiguidade que chegaram ao nosso tempo. Feito isso, apontamos algumas das abordagens mais distintas que foram propiciadas por questionamentos direcionados à materialidade de contexto mortuário. Aberta a trilha dos vestígios e das abordagens possíveis, adentramos, por fim, naquilo que consideramos o cerne do capítulo: a questão teórica da materialidade e da paisagem mortuárias. É a partir destes questionamentos, realizados em grande parte por teóricos da Arqueologia Pré-histórica, que procuramos construir um modo interpretativo da materialidade mortuária que tente dar conta tanto das transformações circunstanciais quanto da longa duração dos fenômenos urbanos e mortuários que veremos.

No capítulo seguinte, impulsionados pela indagação de até que ponto podemos atribuir esta relação das transformações mortuárias na paisagem urbana ao culto dos mártires, abordamos o período de emergência das celebrações martiriais na segunda metade IV. Buscamos analisar as formas de construções da figura do mártir e seus usos recorrentes nas celebrações em seu túmulo durante seu dies natalis, o dia da comemoração de seu martírio, de seu nascimento para a outra vida. Da mesma maneira, procuramos observar como o seu túmulo e, depois, seus próprios corpos (fragmentados ou não) ou mesmo objetos que entraram em contato com eles em algum momento, tornaram-se focos congregacionais para os cristãos, quer no sentido da profusão dos sepultamentos em suas proximidades, quer no sentido da consagração do espaço de reunião em que estavam situadas tais relíquias. Nesse sentido, para captar os elementos que fogem dos lugares comuns em relação à questão martirial, intentamos

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levantar as divergências possíveis apresentadas no culto dos mártires e na depositio ad sanctos. Para tal, partirmos de questões pontuais levantadas por bispos em diálogo direto com suas comunidades ou com seus pares próximos ou distantes, como Agostinho.12 Com as intersecções documentais, de fontes materiais e textuais, procuramos indícios para interpretar como foram rompidas ou mantidas as relações para com o espaço habitado por vivos e aqueles destinados aos mortos nesse momento que acreditamos ser o ponto chave de disrupção do modelo urbano antigo clássico.

Por fim, em nosso terceiro e último capítulo trabalhamos com as transformações materiais dos espaços mortuários da cidade de Cartago. A partir da cultura material fornecida por meio dos relatórios de escavações de determinados lugares em que houve alguma atividade mortuária, dentro ou fora da cidade, procuramos traçar estas mudanças no decorrer do tempo. Nesse processo, procuramos alinhar, quando possível, a existência e as funções passadas de um determinado espaço até o período em que se deu início a sua utilização para fins mortuários. É bom frisar que selecionamos alguns locais bem precisos para realizarmos esta nossa espécie de sondagem dos vestígios mortuários. Locais que simbolizam de modo marcante tanto a emergência do novo quanto o fim do antigo. É com esse mosaico de necrópoles (localizadas dentro ou fora do perímetro urbano) e de seu desenvolvimento consecutivo ao longo do tempo, aliado com a busca sempre quando possível dos destinos também dos espaços urbanos aos quais eram integrados, que procuramos observar as possibilidades de criação de novas experiências materiais mortuárias e urbanas.

12

As edições documentais de todas as fontes literárias latinas utilizadas e de suas traduções para outras línguas modernas que consultamos estão referenciadas da forma devida em nossa bibliografia. As traduções para o português encontradas em nosso texto são das edições que aparecem na bibliografia, exceto quando indicadas a tradução nossa.

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1. OS MORTOS E AS CIDADES: POTENCIAL EXPLORADO E EXPLORAÇÃO A SE POTENCIALIZAR

As materialidades mortuárias estão presentes em uma série de abordagens bem consolidadas sobre a Antiguidade e sobre a Antiguidade Tardia. Pela quantidade das evidências mortuárias que chegaram ao nosso presente e os modos com que os estudos historiográficos as tangem, podemos fazer uma analogia ao que Howard Williams (2003, p. 2) afirmou a respeito da Arqueologia: que, desde seu início enquanto disciplina, ela lida em grande parte com vestígios de práticas mortuárias.13 Os vestígios de contextos mortuários do Império Romano ao longo de toda sua existência foram empregados em estudos com temas dos mais variados. As evidências mortuárias assumiram, por consequência, lugares e propósitos múltiplos nas interpretações dos estudiosos contemporâneos. No entanto, conforme apontou Valerie Hope (2007, p. 2), muitos destes grupos particulares de estudos encerram suas investigações em características singulares da materialidade mortuária (sejam os aspectos de sua monumentalidade, epigrafia, as questões artísticas etc.) e poucas vezes as utilizam em perspectivas que as integrem e as relacionem de um modo mais abrangente.

Cremos que para melhor elucidar o foco de nossa pesquisa seja necessário salientar alguns destes estudos e as maneiras como utilizaram a materialidade mortuária e as finalidades a que atenderam. Fazemos isto com o escopo triplo de demonstrar, mesmo que por exemplos não extensos ou aprofundados, a amplitude do campo de estudos destas pesquisas, certas maneiras de fazer com que se avizinhem umas das outras – respeitando a diversidade temática – e, ao final, os modos com que almejamos nos distinguir e aproximar de algumas delas. Em seguida, pretendemos apontar certas tendências predominantes na utilização das mudanças da topografia e das práticas mortuárias em períodos mais tardios, ou seja, sublinhar as transformações e os modos como os lugares destinados aos mortos foram e são interpretados e atrelados a uma configuração/conceituação da Antiguidade Tardia. Por fim,

13

Embora, como o próprio Williams (2003, p. 3-4) reconhece, grande parte destes estudos arqueológicos incipientes (em especial do século XIX e de início do XX) enquadravam a evidência material mortuária em uma série de questões que ultrapassavam as próprias prática s mortuárias e suas dinâmicas socioculturais para harmonizá-las com teorias transcendentais – tais como os paradigmas das “grandes migrações”, da “difusão cultural” e da “evolução das antigas civilizações”.

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após este breve balanço historiográfico, assinalaremos por quais meios interpretaremos as materialidades e as topografias mortuárias, além de expor de modo mais detalhado as ferramentas teóricas que utilizaremos para compreender as transformações do contexto mortuário da Antiguidade Tardia.

1.1. Um vislumbre da variedade das materialidades mortuárias da Antiguidade e da Antiguidade Tardia

A evidência mortuária possui em si uma série de elementos que viabiliza a multiplicidade de estudos que a envolve. Comecemos pela sua característica mais “visível”: as variações das formas tumulares.14 No mundo romano podemos encontrar estruturas simples e bem difundidas, tais como as covas singulares cavadas na terra, prontas para abrigar o receptáculo com o corpo defunto ou, caso houvesse sido cremado, sua urna funerária. As formas de demarcação na superfície poderiam ser realizadas com estelas, que apresentavam variações de tamanho, inscrição e decoração (Carroll, 2006, p. 9), ou com estruturas mais simples, tais como a reutilização de pedras ou de cacos de cerâmica advindos de ânforas ou de telhas – ânforas que, por sua vez, também podem servir de receptáculos aos corpos (Toynbee, 1971, 101-103; Monsieur, 2006). Estes túmulos singulares podem, ainda, apresentar características monumentais, no tamanho de sua estrutura e na imponência relativa com que agem sobre os demais túmulos vizinhos, variando em suas composições artísticas exteriores e interiores. Eles podem ser adornados de modo suntuoso, com estátuas ou bustos do falecido e/ou de seus ancestrais, com relevos em mármore de diversos temas (de religiosos às exaltações políticas, passando por cenas do quotidiano e de determinados ofícios artesanais, entre muitos outros, a depender do período, do local da evidência e dos propósitos e posições ocupadas por seu[s] idealizador[es]), entre outros elementos que exaltam o próprio ato da construção do monumento mortuário (que poderia ser feito com planejamento pelo “proprietário” do túmulo ou por terceiros, em geral membros de sua família, que viabilizariam

14

Sobre esta questão é importante salientar que nos guiamos em grande parte pelo trabalho de Jocelyn M.C. Toynbee (1971), que continua a ser referência constante para os estudos das tipologias mortuárias e de sepultamentos do mundo romano. Em relação ao período de expansão do cristianismo e de suas tipol ogias mortuárias correspondentes, ver a breve mas essencial categorização de Noël Duval (1995, esp. p. 195 -201).

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as honras fúnebres15) e a memória do morto ao qual o túmulo-monumento foi dedicado (Toynbee, 1971, p. 101-244; Hope, 2003).

Esta pluralidade de formas pode ser ampliada quando consideramos os modos e os edifícios adequados às deposições mortuárias coletivas. Lembremo-nos de início dos columbaria do final da República e do período inicial do Império. Eram edifícios que poderiam ser construídos na superfície ou no subterrâneo ou, então, apresentar ambas as características. Os columbaria eram dividos em alas compridas e altas, que contavam com a presença de numerosos nichos para abrigar centenas de urnas mortuárias. É daí que deriva sua denominação moderna. O uso antigo da palavra columbarium designava as próprias cavidades que receberiam as urnas funerárias, e não a estrutura do edifício, conforme utilizamos hoje (Bodel, 2008, 195-196). Sua raiz etimológica deriva da palavra columba, “pomba”, portanto, columbarium significaria “pombal” (Gigante, 2010, p. 141). Este aspecto plural de sua estrutura está em grande consonância com a variedade social dos que neles eram encerrados. Sua população poderia variar de libertos ricos a escravos, de membros de associações de trabalhadores até os pertencentes às famílias mais humildes – tudo isto sem contar as nuances e as possibilidades múltiplas de relações entre esses grupos, de modo individual ou coletivo (Hopkins, 1983, p. 212-214; Galvão-Sobrinho, 2012, esp. p. 157, n. 87). Essa multiplicidade de atores e de suas relações não deixou de se manifestar em seus detalhes materiais: os columbaria poderiam possuir inscrições, afrescos, mosaicos e relevos em seu interior, elementos que variavam dos mais simples aos mais elaborados. Seus temas decorativos estavam, em muitas ocasiões, associados uns aos outros num mesmo edifício ou corredor, adquirindo um determinado aspecto de unidade (Toynbee, 1971, p. 113-116).

Estas questões aludem a uma das grandes características dos edifícios mortuários coletivos: seus modos de associação com as relações familiares. Os túmulos mais próximos às estruturas familiares (em suas formas distintas, e em especial das mais abastadas) poderiam assumir composições variadas no mundo romano. São edifícios com estas atribuições que compõem a maior parte das estruturas mortuárias nas portas de acesso às cidades romanas antigas que sobreviveram até os dias atuais, como podem ser encontrados, por exemplo, para citarmos apenas algumas cidades da península itálica, em Roma, Pompeia e Óstia.

15

O grande exemplo literário deste tipo de construção pode ser encontrado em Petrônio ( Sat. 6.71-72), quando narra a forma com que o liberto Trimalquião organizou todos os elementos de seu enterro.

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É nestes espaços que podem ser vistas estruturas conhecidas como “túmulos em forma de casa” (house tombs/house-shaped tombs): edifícios retangulares, fechados e cobertos, com porta de entrada e até mesmo janelas, assimilando-se assim às fachadas de uma casa. Em seu interior possuíam estruturas semelhantes aos columbaria: nichos para abrigar urnas mortuárias e, também, poderiam ter espaços para sarcófagos e inumações; porém, há nelas um menor número de loculi e uma maior associação de sua construção com laços familiares mais estreitos (Carroll, 2006, p. 13). Este último fato, no entanto, não impedia a renegociação posterior de alguns espaços mortuários e a conseguinte reconfiguração de seus habitantes (Hope, 1997, p. 86). Suas ornamentações externas e internas eram diversificadas: poderiam possuir colunas, frisos, além de inscrições, mosaicos e afrescos; enfim, uma série de elementos que indicavam, na maior parte das vezes, quais eram os seus proprietários ou os grupos ou gens favorecidos pela sua existência, as maneiras de celebrações de suas memórias e, em certos casos, as instruções para os ritos comemorativos dos mortos (Gee, 2004, p. 60).

Para além destes dois exemplos coletivos, as paisagens mortuárias do universo romano eram povoadas por um amplo número de outras estruturas, disseminadas por toda extensão imperial. Chegaram-nos edifícios mortuários que adquiriam aspectos de templos, de altares, em formato de torres, de obeliscos, em estilos piramidais, entre outras composições.16 Outros destes espaços mortuários não eram erigidos acima do solo, mas construídos em seu interior. É o caso das câmaras mortuárias cravadas nas encostas rochosas de montes ou montanhas, de grande tradição na parte oriental do Império, cujo exemplo que mais salta aos olhos é o das estruturas localizadas em Petra (Toynbee, 1971, p. 188-195).

É o caso também da tradição das câmaras mortuárias construídas no subsolo, difundidas por quase toda a bacia mediterrânica, conhecidas como hypogea. Um hypogeum poderia conter uma única câmera mortuária que, por sua vez, teria a capacidade de abrigar vários sepulcros. Assim como ele poderia variar de forma e apresentar mais de uma câmera, que eram conectadas entre si por corredores também subterrâneos. Esta característica variável de sua forma poderia ser projetada no momento de sua construção ou mesmo ser produto de sua ampliação ao longo do período em que foi utilizado, formando, assim, uma ampla e complexa estrutura mortuária. Associados às famílias mais abastadas, ainda que seus espaços para inumação pudessem ser negociados de modo individual após ou durante sua utilização

16

Para se ter uma noção geral da variabilidade dos edifícios mortuários, ver, sobretudo, Maureen Carroll (2006, esp. p. 86-125), além do vocábulo “Funerary Architecture” da Brill’s New Pauly (2004), sem contar o trabalho já citado de Toynbee.

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familiar, os hypogea eram em sua grande maioria adornados em abundância. Contavam com a presença de diversos elementos, como sarcófagos com variados temas decorativos, relevos e pinturas parietais, inscrições e estátuas.

Não é sem motivo que alguns estudiosos conectam a existência dos hypogea como uma prática que pôde ter propiciado a existência das estruturas mortuárias subterrâneas mais famosas, as catacumbas (Bodel, 2008, p. 188; Toynbee, 1971, p. 212). Muitos hypogea estiveram na origem do desenvolvimento de determinadas catacumbas ou mesmo foram englobados por elas de acordo com suas expansões realizadas ao longo do tempo (Bodel, 2008, p. 200). Ainda que seja difícil criar uma tipologia estrita para cada uma destas duas estruturas, a característica arquitetônica principal que as diferencia está, de acordo com John Bodel (2008, p. 200), na existência de largos corredores com inúmeros nichos parietais para abrigar os corpos inumados no interior das catacumbas. Entretanto, outros autores veem uma distinção entre estas estruturas apenas no tamanho: por várias vezes podemos encontrar referências aos hypogea como “catacumbas pequenas” (Brown, 1990, p. 518). Isto porque algumas das estruturas que conhecemos por catacumbas poderiam possuir diversos níveis de utilização: chegando a ter cinco ou seis pavimentos no subsolo. Os corredores ou galerias que abrigavam os mortos também tinham função de conectar câmeras mortuárias quadriláteras (cubicula) dispersas pelo complexo, que poderiam pertencer tanto a associações profissionais ou religiosas quanto a grupos familiares. Grande parte da forma “desestruturada” das catacumbas se deve a sua expansão simples, ou seja, por suas utilizações práticas. Uma característica que muda um pouco a partir do século IV, período em que se adota uma organização embasada no modelo de “espinha de peixe” para as construções de novos complexos: modelo baseado na construção de uma via principal atravessada por várias outras em um ângulo de noventa graus (Lewis, 2010, p. 58-59). Devido a esta amplitude de seu tamanho e da variedade sociocultural de seus habitantes, as catacumbas conservaram até os nossos dias uma ornamentação rica e bastante diversa: com inúmeras pinturas parietais, inscrições, grafites, sem contar mesas funerárias para banquetes e locais de comemoração dos mortos.

O que mais chamou a atenção para estes edifícios na bibliografia moderna foram os pressupostos de suas utilizações por grupos identitários e religiosos restritos, sobretudo os cristãos. Sua nomenclatura moderna se deve, inclusive, a esse postulado. Supõe-se que o nome catacumba deriva de uma expressão grega antiga kata kymbas, que significava “próxima aos buracos já cavados”, utilizada em períodos mais tardios, na segunda metade do

Referências

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