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Os sepultamentos no interior da cidade: estruturas e diversidade dos espaços mortuários

e 29. Imagem extraída de S Stevens et al (2005, p 100, fig 2.47).

3.2.2. Os sepultamentos no interior da cidade: estruturas e diversidade dos espaços mortuários

Para vermos estes espaços de sepultamento dentro dos muros da cidade de Cartago, selecionamos três áreas específicas em que foram instalados: o odeão, o porto e o circo. A

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A questão da peregrinação tem atraído nos últimos anos um grande número de estudiosos. Para uma introdução ao tema, ver Brouria Bitton-Ashkelony (2005, p. 1-29); sobre a questão das conexões ultramarinas e as redes de comunicação cristãs por meio das visitas aos sítios considerados sagrados, ver Blake Leyere (2009); para observar um pequeno levantamento de formas novas de estudar este tópico, com ênfase nas participações da materialidade envolvidas nos contatos com os santos e os locais sagrados, ver Ann Marie Yasin (2012).

escolha destes locais parte de dois pressupostos gerais: 1) as características distintas de sepultamento que cada espaço apresenta; 2) por estarem instalados em antigos edifícios componentes da paisagem urbana tradicional romana, considerados como definidores da cultura e da economia da Cartago do período romano.

A primeira região de que trataremos é a do antigo odeão (Fig. 48, n. 4). Como advertimos, esta é uma região de escavação do início do século XX. Muitos dos dados fornecidos pelos vestígios lá encontrados são, portanto, de difícil análise e avaliação, devido às metodologias empregadas no processo de seu desenterramento. De todo modo, podemos traçar, no mínimo, alguns aspectos relevantes da constituição deste espaço como uma área de sepultamentos. Comecemos com o período inicial de sua construção, que nos revela um aspecto um tanto singular. O odeão foi erigido no início do século III no quadrante nordeste da cidade, vizinho ao teatro (Fig. 48, n. 5) que, por sua vez, foi construído num período anterior, por volta da metade do século II (Ros, 1996, p. 450, 481-482). A peculiaridade do processo de sua construção não está apenas nos vestígios materiais que foram descobertos nas escavações do início do século passado, como também sua aparição num dos tratados de Tertuliano, de modo mais preciso em seu De carnis resurrectione. O que chamou a atenção de Tertuliano (De carnis ressurrectione, 42.8-9) naquele momento para a construção do odeão não estava ligado de modo direto à função do edifício enquanto um lugar de espetáculos, ainda que ele se opusesse à presença dos fiéis cristãos a tais, e sim a um acontecimento que surgiu no começo das obras: o fato de terem encontrado e desalojado diversos sepulcros que ele acreditava ter mais de quinhentos anos. Não é por acaso que esse encontro com os corpos de uma antiga necrópole vêm à tona no momento de estabelecer as fundações do odeão naquele espaço específico e na narrativa de Tertuliano. E isto por duas razões. A primeira diz respeito à própria história de Cartago, pois ali teria sido de fato uma necrópole nas primeiras ocupações da cidade.229 A segunda está relacionada aos argumentos de Tertuliano contrário aos espetáculos e, sobretudo, a respeito de sua crença na ressurreição da carne: para espanto de grande parte da população, as ossadas e os dentes dos corpos encontrados estariam preservados, incorruptos, e ainda úmidos (fere annorum ossa adhuc

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A respeito da utilização da então conhecida como “Colina do Odeão” como uma necrópole no período fenício, ver os relatórios iniciais de Paul Glaucker (1900, p. 176). Uma visão geral sobre o desenvolvimento da Cartago púnica é encontrada em Serge Lancel (1994, p. 49-54; esp. p. 49, fig. 22, para a disposição das necrópoles ao redor do antigo assentamento da cidade). Cabe-nos deixar claro que, embora esta localidade tenha sido utilizada como necrópole no passado púnico, não cremos que sua uti lização como espaço mortuário em períodos mais tardios (no mínimo na segunda metade do século V de nossa era) deva -se a uma relação direta e estrita com seus usos do período púnico.

succida), e os cabelos ainda exalariam perfumes (capillos olentes) mesmo após tanto tempo soterrados.230

Voltando às questões mortuárias tardias deste edifício, a dificuldade do estabelecimento de uma cronologia para seus últimos estágios é um dos maiores entraves para a análise do seu desenvolvimento. Um primeiro empecilho está na datação do fim de seu uso como espaço próprio para espetáculos. Se por um lado há a narrativa construída por Victor de Vita (I. 1,8) sobre sua destruição pelos vândalos em 439, ao lado da de demais edifícios, tais como o teatro, por outro, não é descartada a possibilidade de que o odeão já estivesse em desuso pouco antes da ocupação vândala de Cartago, embora seja difícil comprovar algo neste sentido.231 De qualquer maneira, o que mais nos chama a atenção é que, durante o período vândalo, o odeão já poderia ter sido ocupado como uma região mortuária ou, no mínimo, estaria abandonado (Leone, 2007a, 159). O que leva a pensar nessas duas opções para o início período vândalo é o relatório de Paul Gauckler a respeito de seus achados no local. Gauckler (1900, p. 177) descreve ter encontrado alguns depósitos de lixo do período vândalo no auditório do odeão, preenchidos com vestígios de madeiras queimadas, cinzas, tijolos e rebocos. Dentre as cinzas, Gauckler (1900, p. 177) teria encontrado também vestígios de cerâmicas cristãs, lâmpadas do tipo vândalas, e até um grampo de marfim bizantino, demonstrando, deste modo, certa continuidade da utilização do espaço e de seus entornos. Além disto, outro dos achados de Gauckler chama bastante atenção. Trata-se de duas cisternas grandes, com sete metros de profundidade, preenchidas com fragmentos de diversos materiais de construção, tais como base capitéis coríntios de mármore, detritos de colunas de diversos

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Res. 42.8: Sed et proxime in ista civitate cum odei fundamenta tot ueterum sepulturarum sacrilega

collocarentur, quingentorum fere annorum ossa adhuc succida et capillos olentes populus exhorruit. Constat non tantum ossa durare uerum et dentes incorruptos perennare, quae ut semina retinentur fructificaturi corporis in resurrectione.

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Um dado interessante para pensar num possível abandono prévio é atentarmos, como demonstrou Frank M. Clover (1982, p. 10) para a (ou um esforço de) continuidade do uso e manutenção de outros edifícios e espaços urbanos logo após a conquista vândala, como ruas, praças, banhos, o porto, e mesmo outros locais de espetáculos, como o anfiteatro e o circo. Nesse sentido, tornar -se-ia suspeita a indicação de Victor da destruição seletiva de determinados locais de espetáculos ou templos e ruas, dado o c aráter polemista e retórico de sua argumentação e a continuidade de outros edifícios mais ou menos semelhantes aos que teriam sido destruídos. Com isto, abre-se a possibilidade interpretativa de um abandono prévio do odeão e do teatro ao domínio vândalo. Somados a esta interpretação, pode-se colocar as circunstâncias descritas dos achados por Paul Gauckler (1900, p. 177), embora o próprio Gauckler (1902, p. 391) acreditasse na destruição do edifício por um grande incêndio de inícios da dominação vândala. Pa ra uma discussão bibliográfica da narrativa de Victor e contra a perspectiva da destruição do odeão e do teatro como puros e simples artifícios retóricos utilizados pelo autor do século V, ver Yves Modéran (2002).

tamanhos e tipos, frisos com dedicatórias, arquitraves, revestimentos realizados em opus sectile, inúmeras inscrições (783 fragmentos) e, além destes vestígios arquitetônicos, diversas estátuas232 (Gauckler, 1900, p. 178-179).

Diversas sepulturas tardias foram encontradas para além de seu interior, tais como as instaladas no pórtico que o conectava ao teatro (Fig. 49, n. 5). Inclusive no próprio teatro se desenvolveu um espaço de sepultamentos, com túmulos que podem ser datados de modo mais preciso num primeiro período bizantino, no decorrer do século VI, embora seus usos mortuários possam até mesmo datar do período vândalo233 (Leone, 2007a, p. 159, n. 135). As sepulturas ocupavam a frons scenae e a orchestra do teatro, agrupadas ao redor do que Gauckler acreditou ser um oratório (Stevens, 1995, p. 212, n. 32). Podemos extrair duas observações importantes desses dados de Gauckler para os usos do odeão como um espaço mortuário. O que, em primeiro lugar, eles demonstram é uma continuidade do uso destes espaços para finalidades mortuárias num longo arco temporal. A segunda observação é a da possibilidade de que esta localidade estivesse habitada durante todo o tempo em que foi utilizada também como espaço mortuário. É o que Simon Ellis (1985, p. 33-34) acredita ter ocorrido nesta região, por dois motivos: primeiro, pela continuidade do uso do depósito de lixo descrito por Gauckler, que apresentaria, sobretudo, descartes domésticos. O segundo motivo está no padrão de preenchimento de câmaras subterrâneas, como as cisternas, com fragmentos arquitetônicos e demais detritos de construções. Esta seria uma prática comum no período das “reconquistas bizantinas”, com exemplos correlativos em outras regiões, em que cisternas foram preenchidas com materiais de construção provenientes de sítios vândalos que estavam sendo transformados em e/ou mantidos enquanto espaços de habitação.

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A listagem das estátuas encontradas pode ser vista em Paul Gauckler (1900, p. 179), dentre as quais uma seria a do imperador Adriano. Para uma discussão destes achados de Gauckler e também do destino de outras estátuas encontradas tanto em Cartago quanto na África do Norte romana em geral, ver Anna Leone (2013, cap. 4; esp. p. 159-168).

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A imprecisão para períodos mais recuados deve-se também às suas escavações mais antigas, enquanto para a datação dos sepulcros bizantinos a escavação é da segunda metade do século XX .

Figura 48: Planta com a localização das sepulturas em espaço urbano, elaborada por e extraída de Anna Leone (2002, p. 238, fig. 5).

Figura 49: Plano da colina do teatro de Cartago elaborado por Colette Picard, em 1951, via Wikimedia Commons.

É importante acrescentar que alguns arqueólogos acreditam que nesta região norte/nordeste da cidade tenha se desenvolvido uma grande necrópole no período bizantino conectada com vários edifícios religiosos (Fig. 50), formando um enorme espaço cultual (Stevens, 1995, p. 212-213; Ennabli, 1997, p. 98; Leone, 2007a, p. 204-205). Pois, ao lado do desenvolvimento destes dois edifícios antigos como áreas de sepultamentos, e a possível conexão dos túmulos do teatro com um oratório, foram encontrados muitos outros sepulcros nas proximidades, dispostos em edifícios dos quais se têm o conhecimento de que teriam sido religiosos. Um exemplo destes é o centro religioso construído a oeste do teatro, que hoje é conhecido como monumento circular (Fig. 48, n. 10). O monumento circular era uma memoria martirial erigida por volta da segunda metade do século IV, e poderia fazer parte de

um complexo religioso, uma vez que estava conectado a uma possível basílica.234 Inúmeros sepulcros foram encontrados nos espaços entre ambos os edifícios (Stevens, 1995, p. 212, n. 33). Vestígios de práticas mortuárias também foram encontrados no flanco leste da colina do odeão, na região hoje conhecida como Dahar-el-Morali, em que sepulturas estavam dispostas entre habitações235 (Stevens, 1995, p. 212, n. 34). Mais a leste do teatro, indícios mortuários foram achados em outras duas domus abandonadas por volta do início do século VII. No interior de uma delas (Fig. 48, n. 9), localizada entre os K IX e X leste, e D V e VI norte, havia quatro túmulos, datados do final do século VII236 (Stevens, 1995, p. 212-213, n. 35; Leone, 2002, p. 241). Logo no quarteirão seguinte, entre os K X e XI leste, e o D IV e V norte, próximo a outra domus conhecida pelo nome moderno de Maison de Tellus (Fig. 48, n. 8), foram descobertos outros túmulos da primeira metade do século VII no interior do que pode ter sido um edifício religioso, de modo mais preciso, um monastério que, segundo crê Liliane Ennabli (1997, p. 89-98), seria dedicado aos mártires de Gafsa, mortos durante as perseguições vândalas de 483.237 Caso esta localidade tenha sido de fato o monastério de Bigua que abrigou os corpos dos mártires de Gafsa, podemos ver outro motivo de atração de sepultamentos para seu espaço, que apresenta indícios de utilização mortuária para além dos sanctos (Ennabli, 1997, p. 98, n. 448). Outro edifício, próximo a este último, entre os K XII e XIII leste e os D IV e V norte (Fig. 48, n. 7), seria reconhecido por Gauckler como

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Sobre a história do monumento circular, das campanhas de escavação e de sua identificação como um

martyrium/memoria do tipo que era encontrado de forma mais comum no oriente, ver Pierre Senay (1992) e

Gilbert Hallier (1995). No entanto, a existência da basílica é contestada. Para uma discussão a respeito da afirmação de que o monumento circular estaria conectado a um complexo religioso, ver Beaudoin Caron e Carl Lavoie (2002). Ainda que o edifício seja, de fato, uma habitação do período inicial árabe, do primeiro quarto do século VIII, construída sobre as ruínas de uma habitação do período bizantino, como afirmam Caron e Lavoie (2002, p. 258-260), não se exclui a possibilidade de seu uso enquanto mortuário na virada do século VII para o VIII. No entanto, a datação utilizada por Caron e Lavoie (2002, p. 250, n. 10, 254-255) para os túmulos encontrados no interior do edifício anexo ao monumento circular é baseada apenas no preceito de que elas seriam instaladas após seu abandono, como bem pontua Anna Leone (2002, p. 240, n. 34).

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Estariam a tal ponto que J. Vaultrin (1932, p. 208), em seus estudos sobre as basílicas cristãs de Cartago, afirma que esta região estaria coberta por um “cemitério cristão”.

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A datação destes túmulos para o século VII é sustentada pelos autores da es cavação pelo fato da desocupação da domus ter sido datada do início deste mesmo século. Sobre o desenvolvimento da casa, ver Catharine Balmelle et alli (2011).

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Contra a perspectiva do edifício construído contíguo a Maison de Tellus ser um monastério dedi cado aos mártires de Gafsa, o monasterio Biguae de acordo com a narrativa martirial antiga, ver a resenha de Noël Duval (2000, esp. p. 390). Para Duval não há elementos materiais suficientes para comprovar esta hipótese. Uma discussão de ambas as hipóteses pode ser encontrada em Anna Leone (2002, p. 241, n. 40).

monastério de santo Estevão, no qual encontrou um mosaico composto por medalhões aludindo aos nomes de santos e mártires, com o nome do protomártir no centro de outros seis, dentre os quais constam os dos companheiros de martírio de Perpétua e Felicidade – Saturus e Saturninus (Duval, 1972, p. 1096-1098). Para complementar esta interpretação de uma grande área mortuária conectada a um complexo religioso, acrescente-se o fato desta região estar localizada próxima ao Demerch (Fig. 50), uma antiga área com vários edifícios religiosos e de espaços mortuários (Leone, 2002, p. 241, n. 41; Duval, 1972, p. 1081-1096; Duval, 1997, p. 325-334). Em suma, caso tenha existido ali um cemitério altamente organizado no período bizantino com conexões religiosas ou não, o que nos interessa é que o odeão, sem contar seus arredores, constituiu uma região de ampla utilização como área de sepultamentos no interior da cidade, com uma larga continuidade temporal.

Figura 50: Mapa do quadrante nordeste de Cartago, depois de André Lézine, extraído de C. Balmelle et alli (2003, p. 152, fig. 1).

A segunda região de sepultamentos dentro dos muros da cidade que falaremos é de uma necrópole localizada próxima ao circo e à muralha teodosiana (Fig. 48, n. 27), no sudeste da cidade, que se constituiu como área de sepultamento durante o século VII. Não se sabe ao certo quando o circo parou de ser frequentado enquanto espaço de espetáculo, embora alguns autores sustentem que seu abandono definitivo possa ter ocorrido no século VII (Humphrey, 1986, p. 301-303; Leone, 2007a, p. 206). Mas uma coisa é garantida: a popularidade que as corridas tinham para a população de Cartago até, no mínimo, a primeira metade do século VI (Norman, 1992, p. 162; Stevens 2008, p. 94-95, n. 45). Popularidade traduzida em mosaicos,238 artefatos dos mais variados tipos, tais como lâmpadas, que figuravam diversos aspectos das corridas, inscrições, e até mesmo um túmulo com a estátua de um auriga, datável da primeira metade do século III, foi encontrado em uma necrópole não tão distante da região do circo, mais ao sul da cidade.239 Tudo isto sem contar as dimensões do circo, 486 metros por 77-78 metros (Fig. 51), com a capacidade de público que poderia ser por volta de 45.000240 espectadores, números que o coloca como o segundo maior extensão no Império, atrás apenas do circus maximus de Roma.

A região do circo foi escavada por uma das equipes americanas envolvidas na campanha de salvaguarda da UNESCO, liderada por J. H. Humphrey, ao longo dos anos 1980 (no total foram quatro campanhas, em 1982,1983, 1985, 1987). As escavações estiveram concentradas numa extensão que começava próxima do local em que era presumido estarem os carceres, estruturas que não chegaram ao nosso período, até para além da muralha teodosiana, passando por toda a cauea do edifício, por mais de 50 m. de extensão (Fig. 51, para o comprimento das trincheiras). Embora toda a dificuldade de datação por conta das condições dos vestígios, observou-se, para o edifício de espetáculo, três fases principais de sua cronologia: sua construção monumental foi datada no período da dinastia antonina e, numa segunda fase, durante o período da dinastia severa, sua estrutura teria sofrido um

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De acordo com J. Humphrey (1986, p. 297) Cartago foi a cidade com maior número de mosaicos que sobreviveram até o período moderno.

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A necrópole em questão é conhecida pelo nome moderno de Yasmina e tem uma longa duração de uso na história da cidade, que vai do final do século II até, mais ou menos, início do século VI. Sobre a estátua do auriga e os demais achados da primeira sessão de escavação na necrópole ver Naomi J. Norman e Anne E. Haeckl (1993).

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Esses números variam de acordo com a interpretação utilizada para o número de assentos que o circo poderia ter. A quantidade máxima de espectadores que adotamos segue a mesma de J.H. Humphrey (1986, p. 303). Para outra interpretação, que coloca o circo com a capacidade para 60-70.000 espectadores, ver Naomi J. Norman (1992, p. 162).

alargamento. Sua terceira fase data do período teodosiano e é marcada por pequenas reparações sem modificações significantes (Norman, 1992, p. 162). Com a construção da muralha, por volta de 425, o circo permaneceu no interior do traçado urbano. No espaço que passou a existir entre o edifício e a nova linha mural, em especial a noroeste do circo, desenvolveu-se um depósito de lixo, que pode também ser utilizado como estábulos para os cavalos e como local para descarte de animais mortos – durante as escavações foram encontrados alguns ossos de equinos nesse espaço, em sua maior parte desarticulados (Humphrey, 1988, p. 297-300). Não se pode datar com precisão o período final de utilização do circo enquanto espaço de espetáculo. Contudo, sabe-se que os primeiros indícios de sepultamento nesta região datam de fins do século VI: uma cova rasa com três corpos adultos foi encontrada no mesmo nível estratigráfico que os restos mortais de equinos deste mesmo depósito de descarte (Humphrey, 1988, p. 326; Stevens, 2008, p. 95, n. 46).

O espaço mortuário subsequente a estas fases teve seu período de atividade no decorrer do século VII, com maior intensidade em sua primeira metade. A extensão da necrópole ultrapassa em muito a área que foi escavada (Stevens, 2008, p. 95). De todo modo, as escavações dos anos 1980 encontraram um número de inumações que pode variar entre quarenta e cinco e sessenta indivíduos, divididos em quarenta e nove locais de sepultamento – a variação numérica dos indivíduos se deve às condições osteológicas em que foram encontrados (Humphrey, 1988, p. 327). Os túmulos encontrados, com a exceção de dois, apresentam uma disposição linear determinada – noroeste-sudeste –, com uma posição perpendicular à muralha (Fig. 52), ainda que de forma bastante genérica. Certa padronização também reaparece entre seus tipos: todos os sepulcros que foram encontrados, excetos três sepultamentos realizados em ânforas (Fig. 54) e dois construídos em alvenaria, foram feitos com estruturas de pedras (stones cist) retangulares, cavadas de modo direto no solo (Fig. 53). Todas as placas de pedra que compõem os túmulos foram espoliadas241 de outros edifícios, isto é, são produtos de reutilizações de materiais de antigas estruturas, dentre elas outros sepulcros, que poderiam ser até mesmo dessa própria necrópole. Quase todos estes blocos

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A reutilização dos materiais de construção, spolia, teria sido um destino comum de grande parte das estruturas e edifícios de espetáculo espalhados por todo Império, como podemos ver em Bryan Ward-Perkins (1999). Todavia, conforme Anna Leone (2007a, p. 138, 207), poucos são os casos de que temos registros que acabaram reutilizados em áreas mortuárias. Destino provável inclusive das estruturas do teatro, ou mesmo do odeão, de Cartago, embora não tenhamos nenhuma descrição pormenorizada dos tipos de sepulturas