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Rompendo fronteiras?: mudanças e continuidades nos espaços dos vivos e nos espaços dos mortos

2. AS AÇÕES DOS MORTOS NAS CIDADES DOS VIVOS: SEPULTURA E MEMÓRIA, LUGAR E TEMPO

2.3. Rompendo fronteiras?: mudanças e continuidades nos espaços dos vivos e nos espaços dos mortos

O culto dos mártires mobilizou um conjunto de transformações nas topografias urbanas e nos focos de aglomeração dos espaços citadinos e de seus arredores. Oratórios pequenos ou mesmo basílicas cemiteriais monumentais, construídos nos supostos locais em que sofreram os martírios e/ou em que estariam enterrados os corpos dos mártires, difundiram-se por toda a bacia do Mediterrâneo na virada dos séculos IV para o V. Por meio das modificações materiais das cidades e de seus edifícios, muito foi discutido nas tradições historiográficas e arqueológicas preocupadas com as cidades da Antiguidade Tardia.169 Dentre as indagações de destaque, focamo-nos aqui nas problematizações que apontaram um duplo movimento decorrido pelas celebrações martiriais: primeiro, de uma concentração de construção de igrejas em homenagens aos mártires nas cidades. Estas igrejas eram, em sua maioria, suburbanas, fato do qual decorre que os focos de atração das cidades passaram a estar localizados em regiões periféricas, e não mais conectada a um centro estrito, como o forum, conforme a proporção da população das comunidades cristãs ao longo do tempo. O segundo movimento é a questão da transladação das relíquias dos mártires, isto é, o transporte de seus restos mortais ou, em período subsequente, de objetos variados que entraram em contato com seus corpos ou fragmentos de seus próprios corpos, para o interior das igrejas localizadas dentro das cidades. Esta foi sem dúvida uma das rupturas mais marcantes, pois, de forma deliberada – através de esforços empreendidos por fiéis, bispos e/ou imperadores com o intuito de obterem algum edifício (capela, basílica, oratório, etc.) que contasse com as relíquias dos mártires e, não menos, ter o destino de seus corpos juntos a eles – vemos modificarem-se, de modo considerável, as relações entre vivos e mortos e de suas respectivas moradas. Em resumo, é neste processo que vemos os corpos dos mortos adentrarem o, até então, antigo espaço sagrado dos vivos. Dizemos sagrado por conta das próprias características de grande parte das cidades antigas (Fig 3).

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Uma discussão bibliográfica tanto sobre este tema da celebração martirial e dos sepultamentos ad sanctos, em específico, quanto da “topografia cristã”, em geral, pode ser encontrada em Gisella C. Wataghin (2003, esp. p. 243-245).

No delineamento que expressa a separação entre vivos e mortos, a delimitação romana antiga pode ser exemplificada pelo traçado e imagem do pomerium, o limite consagrado das cidades, no interior do qual seria proibido enterrarem os mortos. De modo semelhante, a instauração do pomerium proibia a presença das tropas militares em seu interior, e, assim, dividia os espaços de habitação (domi) dos de guerra (militiae),170 tal como estabelecia a diferença entre urbs e ager (Magdelain, 1990, p. 155-156). A constituição do pomerium era uma tradição que estava presente no mundo romano desde a memória da fundação da cidade, com o seu primeiro traçado realizado por Rômulo (Grandazzi, 2010, esp. p. 19; 114). Segundo Varrão (De Lingua Latina, V, 143), o pomerium seria o elemento fundante do modelo urbano (orbis urbis principium) tanto da cidade de Roma quanto para a construção das novas colônias. Aliadas às perspectivas de uma “refundação” da urbs por Augusto, o ato de delimitar a cidade com traçados mais amplos do pomerium esteve presente de modo marcante na historiografia antiga de inícios do Império, como em Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso e Tácito, que narraram os feitos expansionistas desses traçados em Roma por alguns imperadores (Rykwert, 2006, p. 150-152). Deste modo, a presença da discussão a respeito de sua significação e da composição de seus traçados esteve atrelada em grande medida à questão da expansão territorial romana e a prática de inscrever na história a ampliação da cidade de Roma em constante expansão (Boatwright, 1984).

A memória do pomerium continuava a ser um tema narrativo recorrente na literatura da virada do século I para o II de nossa era, como, por exemplo, na sua presença na obra de Plutarco. Em sua biografia de Rômulo, Plutarco narra como teria sido composto este traçado inicial de Roma: “O fundador prendeu uma relha de bronze no arado, ao qual aparelhou um boi e uma vaca, e pôs‑se a fazer ele mesmo um sulco profundo ao longo dos limites da cidade”. No fazer-se deste arado, nenhuma porção de terra removida poderia estar fora do seu perímetro. Os que acompanhavam Rômulo nesta tarefa lançavam, assim, para o interior do traçado os torrões de terra que saltavam para fora pelo movimento do arado. Por fim, Plutarco (Vida de Rômulo, XI, 3-5) realiza um exercício etimológico em que explica ao seu público de língua grega o porquê de tal nome para aquela delimitação: “com este traçado que

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Devemos também mencionar a questão de sua associação com as circunscrições das formas de exercício de poder dos comandantes de exércitos (imperium) e dos magistrados (potestas). Estas relações moveram debates diversos que ultrapassam o que queremos delimitar aqui. Para uma compreensão, com uma discussão bibliográfica e proposições novas a respeito destas relações entre os poderes legais e suas formas de ação na cidade, ainda que do período republicano, ver Fred K. Drogula (2007).

delimitaram a muralha e atribuíram‑lhe a designação sincopada de pomerium, ou seja, „o que está por detrás ou junto do muro‟”.171

Figura 3: Esquema que representa a concepção inicial dos limites sacros das cidades romanas antigas, de Matteo Aniballetto (apud Ruiz Bueno, 2013, p. 189, fig. 1).

O delineamento sagrado permaneceu como uma memória assídua inscrita na delimitação dos espaços entre vivos e mortos. Esta distinção espacial ganhou, ao longo do tempo, proteção legal. É o que sabemos ter sido inscrito na Tabula X,1 da conhecida Leis das doze tábuas, citada e debatida na exposição sobre as leis de Cícero (De legibus, II, 46-59).

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O tema da atribuição do pomerium a uma delimitação física com a construção de um muro ou não, ou seu atrelamento intrínseco às muralhas que circunscreviam a cidade em um período posterior é tema de um amplo debate na historiografia moderna. Contra a associação à muralha, ver o trabalho etimológico de Roger Antaya (1980, esp. p. 189). Em defesa da materialidade do pomerium em seu traçado, ver Gianluca De Sanctis (2007,

Em suas definições de direito civil e direito dos pontífices, atribuído à religiosidade, res religiosa, Cícero viu a questão dos espaços dos mortos atravessada por estas duas instâncias. No que tange a lei, para Cícero (De legibus, II, 58), todos deveriam estar cientes daquilo que elas prescreviam: “nenhum cadáver deve ser sepultado nem incinerado no interior da urbe” ('Hominem mortuum', inquit lex in duodecim, 'in urbe ne sepelito neue urito'.). Estas relações de interdições e contatos entre espaços de vivos e mortos continuou presente em períodos tardios, como podemos perceber pela sua presença em algumas das biografias da História Augusta (De Sanctis, 2007, p. 504-519). Mesmo que não entremos nos pormenores da longa historicidade do pomerium e das narrações a seu respeito em períodos distintos da história da cidade de Roma, sua presença e as relações diversificadas pelas quais foi criado e que criou permanecem intrínsecas à historicidade do Mediterrâneo antigo. Dizemos do Mediterrâneo, pois, algo semelhante pode ser encontrado em ritos de fundação de algumas cidades gregas que, embora contrastantes com a prática que teria sido realizada por Rômulo – inserida numa muito provável tradição etrusca –, apresentam delimitações sagradas para as cidades ou para suas muralhas (Wycherley, 1976, esp. p. 89; Rykwert, 2006, esp. p. 152).

A tradição da construção e manutenção dos limites entre vivos e mortos foi se tornando cada vez mais porosa, sobretudo, em fins do século IV. Mas temos que ter certa cautela neste ponto e destacar, ao menos, duas questões antes de prosseguirmos. A primeira é que, se os contatos, proximidades e vínculos estabelecidos em momentos celebrativos mortuários foram intensificados cada vez mais a partir deste período, não devemos por este motivo fazer das relações anteriores para com os mortos o completo avesso desta situação. Na historiografia recente, têm-se realizado um esforço interpretativo para colocar estas relações entre vivos e mortos do período romano em uma análise que permita observar suas aproximações devidas.172 Existem alguns casos que nos permitem identificar – para além das comemorações dos mortos que vimos – certas práticas mortuárias realizadas in urbe. Mesmo Cícero alega que alguns sepulcros já estariam em um local no interior da cidade e atribui este fato como anterior à criação da lei proibitiva. O que não impediu a continuação da prática em períodos finais da república e de inícios do império. Porém, com uma característica especial. Os exemplos arqueológicos que sobreviveram, ao menos para a cidade de Roma, são, em geral, aqueles permitidos pela legislação: de clari uiri, os considerados heróis, que por uirtutis

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Embora muitas vezes alguns destes pesquisadores reivindiquem uma proximidade excessiva, como quase o anverso das análises que enfatizavam o temor, o medo, a distância entre vivos e mortos. Alguns exemplos podem ser encontrados em. Michael Koortbojian (1996), Emma-Jayne Graham (2005).

causa, devido a algum feito honorável, poderiam ser sepultados no interior do pomerium (Arce, 1990, p. 88-89). Esta prática estendeu-se às utilizações de imperadores com intuito de perpetuação de suas memórias, cujo exemplo mais notável pode ser o de Trajano, que mandou erguer em seu forum na cidade de Roma uma coluna para comemorar sua conquista contra os dácios, mas que serviria também como seu futuro túmulo (Arce, 1990, p. 83-85).

Outro ponto que devemos recordar a respeito desta permeabilidade possível entre estas fronteiras é aquele relativo aos trabalhadores que lidavam com as práticas mortuárias. Esta categoria abarcava profissionais distintos, que poderiam variar desde aqueles que fechavam os contratos com os clientes, os que realizavam os ritos necessários nos corpos defuntos, aos que davam um destino final a estes.173 A representação paradoxal destes profissionais na sociedade romana antiga, por conta de suas atividades tidas de uma só vez, conforme John Bodel (2000, p. 135) bem descreveu, como “necessária e desagradável, como ao mesmo tempo purificadora e inerentemente sórdida”,174

pode nos dar indícios de algumas daquelas relações aproximativas com os mortos. As caracterizações ambíguas para estes personagens liminares ganham mais força quando sabemos da existência de um conjunto de restrições de suas participações na política em algumas cidades e das limitações de seus usos de espaços determinados175 em horários estabelecidos (Bodel, 2000, p. 139, 141-142). Eles estavam abertos a sofrerem estigmas de poluição por suas profissões, tanto prática (pelo trato direto com o corpo em decomposição) quanto religiosa/espiritual (observados pelas necessidades exigidas de rituais de purificação após estar nestes âmbitos mortuários). Contudo, estas demarcações sociais podem evidenciar não apenas o caráter transgressivo dessas profissões

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Uma introdução histórica aos profissionais mortuários e suas distintas categorias pode ser encontrada em John Bodel (2000). Em particular sobre os profissionais que lidavam com os ritos tidos como necessários para os mortos, ver Hugh Lindsay (2000). Para uma análise das ações dos profissionais mortuários na Antiguidade Tardia, ver Sarah E. Bond (2013).

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(...) their work is generally regarded as both necessary and distasteful, as at once purifying and inherently

sordid.

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Podemos aqui ao menos inquirir se as casas e os comércios encontrados bem próximos a ou mesmo alojados em necrópoles – como os exemplos de Óstia (Isola Sacra) e Pompeia, trabalhados por Maureen Carroll (2006, p. 1, 50-51) para demonstrar as proximidades de vivos e mortos no mundo romano – não seriam ocupados por estes profissionais. Esta problematização não se deve apenas pelas questões restritivas atribuídas aos trabalhadores funerários. Outro ponto importan te a ser considerado pode ser encontrado nos questionamentos etimológicos de John Bodel (2000, p. 136 -137) a respeito dos vocábulos libitina / libitinarum, em que, num dos sentidos possíveis, encontrado em Plutarco (Quaest. Rom. 23=Mor. 269A—B), os aparatos para os procedimentos mortuários eram vendidos nos arredores da libitina.

frente a uma normalidade pretensa, como, em contrapartida, as circularidades valorativas que esses profissionais mesmos poderiam redimensionar. O que queremos dizer com isto é que procurar indícios de representações e redes de circulação e comunicação dos profissionais do trato mortuário pode auxiliar na busca de relações para com os mortos mais “porosas” na Antiguidade. Ainda que não exploremos isto mais a fundo aqui, apontamos apenas para um exemplo que nos permite ao menos um vislumbre desta visão outra sobre a profissão “indecorosa” daqueles que lidavam com os tratos mortuários e, por conseguinte, na relação entre vivos e mortos. Este exemplo possível é encontrado num afresco do século III (Fig. 4), presente num cubículo da catacumba de Marcelino e Pedro, em Roma (Testini, 1980, Tav. I), no qual vemos a representação de um fossor (profissional encarregado de cavar covas, dentre outras atividades nas necrópoles, como a venda de sepulcros) que está muito longe da figura infame com que é representado noutros lugares (sobretudo literários) e, com isto, alude-nos à ressignificações possíveis nestes contextos.

Ressaltar esses aspectos, de todo modo, não significa deixar de notar os amplos esforços e reforços investidos nas construções destes limites materiais e semânticos entre vivos e mortos e sua longuíssima duração no mundo mediterrânico antigo. Pois, se por um lado banqueteava-se com os mortos, por outro, instaurava-se determinados rituais de purificação por conta deste contato ou como formas de apaziguamento dessas relações – papel que o próprio banquete poderia vir a assumir (Lindsay, 2000, p. 154-156, 160). Estar atento a esta polivalência é, portanto, um meio de matizarmos nossas próprias considerações sobre as divisões espaciais (materiais e semânticas) seja no nosso recorte cronológico ou mesmo para períodos mais recuados.

Figura 4: Afresco do século III, descoberto em 1957 num cubículo das catacumbas próximas de Marcelino e Pedro em Roma, com a representação de um fossor, empunhado de uma espécie de picareta, no trabalho de escavação de um cubículo ou galeria. A imagem ainda conta com a representação de uma lamparina presa num gancho, que Testini argumenta poder ser utilizado tanto nesta função quanto para auxiliar nos transportes de corpos. Imagem extraída de Testini (1980, Tav. I).

A segunda precaução que devemos ter nesse campo está relacionada ao vocabulário empregado para observar os sepultamentos no interior das cidades, sobretudo a partir de períodos finais do século IV. Aqui seguimos as ponderações de Anna Leone de evitar o uso das distinções do desenvolvimento dos sepultamentos em divisões do tipo intra ou extramuros para dar conta da dinâmica das transformações urbanas. Fato que se deve, segundo Leone (2007, p. 167-169), a três características especiais sobre a conjuntura das cidades na África do Norte: primeira, mesmo após o século V, a maioria dos sepultamentos continuou a ocorrer nas áreas mortuárias suburbanas mais antigas, com ênfase na procura por igrejas cemiteriais. A segunda característica é que o sepultamento no interior das cidades não era um fenômeno estranho e já tinha certa incidência na virada do século IV para o V na África do Norte. E, por fim, as muralhas não podem ser interpretadas como barreiras intransponíveis entre os espaços ocupados para habitação, vivência e mesmo urbanidade, por conseguinte, não podem ser tidas como marco divisor ou grade interpretativa única para compreender o processo de transformações das topografias urbanas e mortuárias. Isto porque muitas das cidades da África não possuíam muralhas até o século IV. E, como no exemplo mesmo de Cartago, o traçado da muralha poderia deixar áreas de habitação para fora de seu trajeto e, por outro lado, englobar áreas mortuárias. Utilizamos, assim, conforme proposto por Leone (2007, p. 170), as divisões entre espaços urbanos e espaços extraurbanos para designar

e tentar compreender as regiões em que se encontravam os sítios mortuários dos quais tratamos.

Com essas precauções em mente, vemos que a conquista do espaço urbano pelos corpos dos mortos – em especial, mártires e santos da Igreja – tem sido objeto-chave em duas proposições interpretativas complementares sobre algumas das mudanças tidas como características da Antiguidade Tardia. Ela seria utilizada tanto na tentativa de procurar evidenciar um processo de “cristianização” dos espaços urbanos e/ou religiosos de outrora, quanto como um modo de perceber o surgimento de novas lideranças citadinas, por meio da articulação e utilização dos cultos dos mártires e santos para angariar poderes aos seus fomentadores, os bispos,176 que passariam também a controlar as práticas mortuárias realizadas no interior ou ao redor das igrejas cemiteriais urbanas ou extraurbanas (Brown, 1981, p. 73).

O poder emanado pelos corpos defuntos (completo ou em fragmentos ou transferido para outro objeto em contato prévio ou póstumo com o próprio corpo) de mártires e santos auxiliava na construção de experiências e sentidos sagrados novos nos locais em que eram depositados. Dois fenômenos mais visíveis destas experiências foram, sem dúvida, a cura e, em consequência da disseminação de seus relatos e ganho de notoriedade, a peregrinação para tais sítios. Foquemos na questão da cura. Os relatos de cura no contexto de proximidade e contato com as relíquias são muitíssimos. Até mesmo Agostinho, reticente sobre o tema,177 fez, durante seus últimos anos de vida, a recapitulação de uma série de milagres que ocorreram em algumas cidades norte-africanas (como Cartago, Curubis, Calama, nas proximidades de Fussala, como em sua própria Hipona, dentre outras) no livro final de sua Cidade de Deus (Civ. Dei, XXII, 9). A coleção de milagres narrada por Agostinho (Civ. Dei, XXII, 9, 1) naquela ocasião teria, dentre outros aspectos, a função de tornar público e difundir

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Que agiriam, na concepção difundida de Peter Brown (1981), como os impresarios dos cultos. 177

A respeito de Agostinho e a questão dos lugares sagrados, ver Brouria Bitton -Ashkelony (2005, esp. p. 115- 139). Sobre uma possível mudança de Agostinho e de sua concepção neoplatônica entre as conexões da carne e do espírito por conta das práticas de cura e os demais milagres ocorridos nos espaços em que estavam os mártires e santos da Igreja, ver Peter Brown (1981, p. 77).

a existência contínua178 de milagres no seio das comunidades cristãs para além dos âmbitos locais de suas incidências.

É em especial com a narração das curas promovidas na presença dos mártires ou nos dias de suas comemorações que a historiografia moderna encontrou bases literárias para observar a construção do poder dos bispos e outras autoridades eclesiásticas em suas respectivas comunidades.179 O que podemos ver mais uma vez noutro caso que envolve Agostinho. O episódio na ocasião é o de sua indicação de Heráclio como seu sucessor no cargo de bispo em Hipona.180 No fim de 424 ou início de 425, Heráclio financiou o empreendimento da construção da memoria que receberia as relíquias do mártir Estevão na cidade. A obra ganhou em pouco tempo uma grande importância para a comunidade cristã hiponense e para além, devido à série de milagres associados ao seu espaço.181 Peregrinos de todo o Império vinham à cidade em busca de curas de enfermidades das mais variadas. Não demorou muito e, logo em 426, Heráclio foi nomeado bispo. Dadas as circunstâncias, é muito provável que foi devido ao grande prestígio acumulado frente à comunidade pelo feito da construção do edifício martirial que Heráclio foi aclamado pelo público presente na hora de sua indicação, conforme nos relata Agostinho (Ep. 213).

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A questão da continuidade dos milagres nas comunidades cristãs é, inclusive, um dos temas que nos permite observar sua mudança de perspectiva a respeito da narração dos casos miraculosos. A proposição de que sua visão sobre os milagres foi outrora reticente parte, em especial, do problema da continuidade. É o que consta em seu De uera religione (XXV, 47), ao afirmar, então em 391, que, por conta da expansão do cristianismo por todos os cantos do mundo conhecido, não haveria mais a necessidade de milagres até os seus dias: Cum enim Ecclesia catholica per totum orbem diffusa atque fundata sit, nec miracula illa in nostra

tempora durare permissa sunt (...).

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A tradição historiográfica que aborda estas relações de poder é bem vasta. Cabe-nos aqui, portanto, apenas