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3. A CIDADE E OS MORTOS: CARTAGO E AS TRANSFORMAÇÕES DA TOPOGRAFIA URBANA E DA TOPOGRAFIA MORTUÁRIA DURANTE A

3.1. Disposições da topografia urbana de Cartago

3.1.1. Organização antiga e elaborações modernas sobre o plano urbano da Cartago romana

O problema central para a história da malha urbana de Cartago é, sem dúvida, o não conhecimento por completo da extensão de ocupação urbana da cidade, mesmo que tenha sido muito estudada (Leone, 2002, p. 234). Um dos primeiros estudiosos a tentar compreender o sistema de implantação urbana da Cartago sob o domínio romano foi Charles Saumagne nos

anos 1920.213 De acordo com a construção teórica de Saumagne (Fig. 25), a cidade refundada no período de Augusto seria constituída de quatro amplos centros regulares de 20x24 actus (em que cada actus equivale a 35,5 m.), divididos de maneira tradicional na intersecção do cardo e do decumanus maximi e organizados em insulae retangulares (Leone, 2002, 234-235). Segundo Anna Leone (2002, p. 235), as indagações recentes têm evidenciado que, embora seja muito provável que um traçado regular da cidade tenha sido planejado no momento de sua fundação, ele não teria sido urbanizado nesta mesma fase. As escavações realizadas nos setores nordeste e sudoeste da cidade comprovaram que as regiões B e D do antigo plano de Saumagne, aquelas próximas à faixa litorânea, tiveram edifícios construídos e habitados num período mais tardio, pelo menos no século II, como evidenciado pela equipe canadense da campanha da UNESCO.

Figura 25: Plano do traçado teórico da Colonia Iulia Karthago de Charles Saumagne, extraído de Anna Leone (2002, p. 235, fig. 1).

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Suas hipóteses continuam a ter enorme valia para os estudos da cidade e que, em grande parte, foram confirmadas (com acréscimos de novos detalhes) e, também, modificadas em seus pormenores pelas escavações realizadas na campanha da UNESCO. Um apanhado das escavações a respeito do traçado da Cartago romana e as comparações com o plano de Saumagne pode ser encontrado em Edith M. Wightman (1980). Sobre a história de Saumagne com o sítio, ver Iván Fumadó Ortega (2009, p. 104 -106). Um breve levantamento das discussões modernas com o plano de Saumagne pode ser encontrado em David J. Mattingly e R. Bruce Hitchner (1995, p. 182), e em Anna Leone (2002, p. 234-235).

Importante destacar, nesse sentido, que grande parte das vias públicas não possuía calçamento nem uma rede de esgoto antes do século II. A implantação do abastecimento de água por meio dos aquedutos também é datada desse mesmo período. Em geral, foi só a partir dos tempos da dinastia Antonina que Cartago adquiriu uma paisagem urbana característica de uma cidade romana, aliada com a expansão de suas riquezas e de seu aumento populacional, dotada, desde então, de edifícios e monumentos que perduraram no tempo, tais como, para citarmos apenas alguns: o teatro, o odeão, o circo máximo, as grandes cisternas de La Malga, as termas de Antonino (Hurst, 1993, p. 329-330; Mattingly, Hitchner, 1995, p. 182-183; Lepelley, 2005, p. 52-58; Magalhães de Oliveira, 2007/2008, p. 127-129).

3.1.2. Relevância dos impactos no traçado urbano após construção da muralha teodosiana (420-425)

Outro fato marcante na história da malha urbana de Cartago é relacionado à construção de sua muralha, erigida por volta dos anos 420-425, no período de Teodósio II (Wells, 1980, p. 52; Duval, 1997, p. 348-350). Grande parte de seu percurso é conhecido em nossos dias e foi mapeado graças a prospecções e escavações arqueológicas da campanha de salvaguarda internacional (Wells, 1980, p. 53-54). Os estudos realizados pelas missões arqueológicas demonstraram que a muralha foi instalada com base, em essência, na grade urbana da cidade projetada no período de Augusto. Todavia, determinados pontos de seu trajeto permanecem ainda desconhecidos – em especial no seu traçado norte, na zona mais próxima ao litoral, e também em grande parte de seu curso na região oeste. Nas sondagens realizadas em Bir Darouts, foram descobertos outros vestígios do muro, ainda que espoliado em partes. A descoberta reelaborou o trajeto da muralha na região (Fig. 26, comparar com a Fig. 27), que passou a englobar as cisternas de La Malga e o anfiteatro, embora as dúvidas a respeito das formas de ocupação ocorridas em suas proximidades continuem (Leone, 2002, p. 236; Leone, 2007a, p. 120-122).

Para além de seus vieses defensivos, cabe destacar que a muralha agiu de maneiras diversas sobre a topografia urbana e a topografia mortuária. Podemos dar dois exemplos que demonstram fenômenos quase que opostos de modo simétrico desta ação. Nosso primeiro exemplo encontra-se na região norte da cidade, escavada pela equipe canadense (Fig. 48, n. 1a). A área de antiga ocupação residencial, de casas da segunda metade do século IV, foi limitada pela edificação do muro de modo contíguo: seu percurso foi construído quase que rente às paredes residenciais existentes. A muralha logo fez com que as casas localizadas entre os cardines II e III (Fig. 28) fossem abandonadas num momento subsequente, muito provável entre o fim do século V e o início do VI. Contudo, o sítio seria reocupado uma outra vez com fins residenciais no início século VII (Humphrey, 1980, p. 103-104). A sequência destes episódios nos faz perceber que, se por um lado, a muralha – num período de auge de sua função defensiva (Humphrey, 1980, p. 105) – atravessou e provocou o “esvaziamento” de zonas habitacionais, por outro, em determinadas regiões, tal como na conhecida por Borj Jedid, seu traçado encerrou em seu interior espaços mortuários pré-existentes (Leone, 2007, p. 168, n. 24; Stevens, 1995, p. 213).

Figura 27: Plano da cidade de Cartago com a evidência do traçado da muralha elaborado pela missão britânica em Cartago, extraído de A.

Leone (2002, p. 236, fig. 2).

Figura 26: Novo percurso da muralha elaborado após a descoberta dos vestígios em Bir Darouts, extraído de A. Leone (2002, p. 236, fig. 3). Comparar com o traçado ao

Figura 28: Área da escavação da equipe canadense em Cartago, após Wells, extraído de Anna Leone (2007a, p. 121, fig. 34).