• Nenhum resultado encontrado

Problematizando a materialidade mortuária: o emaranhado de relações entre os espaços de vivos e os espaços de mortos

1. OS MORTOS E AS CIDADES: POTENCIAL EXPLORADO E EXPLORAÇÃO A SE POTENCIALIZAR

1.3. Problematizando a materialidade mortuária: o emaranhado de relações entre os espaços de vivos e os espaços de mortos

Ao estudarmos as práticas mortuárias precisamos compreender que estamos trabalhando com práticas que envolvem e que são envoltas por duas características básicas e primordiais. A primeira é a de que as práticas mortuárias são sempre mediadas pela cultura material e sempre deixam vestígios materiais de suas elaborações (Ribeiro, 2007, p. 19). Materialidade que está presente desde o corpo falecido (Stutz, 2004, p. 22-23) até as formas de locação, deposição e encerramento finais que este corpo receberá (Fahlander, Oestigaard, 2004, p. 3-4). Nesse sentido, já vislumbramos a segunda característica básica atrelada às práticas mortuárias: a de sua implicação em escolhas topográficas “adequadas”, que designam quais são aqueles espaços próprios aos mortos e quais não são (cf. Stone; Stirling, 2007, p. 3). Dessas duas primeiras características constituintes das práticas mortuárias podemos traçar uma linha argumentativa mais ampla. Os vestígios materiais presentes no contexto mortuário possuem diferentes ritmos de decomposição, ou melhor, uma escala variada de perecibilidade: um tempo de perecer ou até mesmo de desaparecer por completo, que pode ter uma longa duração ou mesmo uma mais breve, devido a inúmeras condições atreladas a fatores humanos e/ou extra-humanos. Tais questões de duração – tanto do monumento mortuário quanto das possíveis comemorações e rituais realizados em seu contexto espacial – podem ser conectadas a outros aspectos mais amplos das relações socioculturais existentes no período em que os coletivos humanos fazem uso de uma materialidade mortuária e a investem de significado. Temos, nesse sentido, uma relação mais ampla entre as práticas e os espaços mortuários e as formas de construção mnemônicas (Shaw, 1991, p. 67; Hallam, Hockey, 2001, p. 6; Williams, 2003). Ou seja, este conjunto de relações materiais mortuárias põe em jogo cargas mnemônicas e semânticas inúmeras (Halsall, 1998, p. 327-328), que traduzem e

demarcam os modos de relações entre comunidades, grupos, famílias, entre outras possibilidades de associações individuais e coletivas.

Nesse sentido, os modos pelos quais pessoas ou grupos querem dar um destino último aos corpos de entes próximos, assim recordá-los e, por sua vez, também serem lembrados na posteridade por meio da materialidade mortuária estão marcados pelas relações de poder presentes nas sociedades em que estão inseridos. Conforme expôs Heinrich Härke (2001, p. 28-29), os lugares de deposição dos mortos são “lugares de poder simbólico e social: eles, em si mesmos, têm o poder do lugar; eles são lugares de poder dos mortos; e eles servem como uma arena para demonstração de poder dos vivos”.41

Portanto, não é exagero dizermos que a relação com os mortos é investida de relações de poder, de um sentido político e que pode ser um fator de disrupção de práticas rotineiras e estruturas de pensamento. Ainda de acordo com Härke (2001, esp. p. 19-28), os espaços mortuários reconhecidos como espaço de poder envolvem três relações de força principais em sua estruturação: primeiro, na constituição de sua topografia, ao definir as áreas nas quais se pode ou não receber os mortos. Em segundo lugar, nas relações de poder presentes em seu próprio interior, a partir da disposição ou monumentalização dos túmulos, entre outras práticas que tencionam a marcar distinções entre os mortos ali sepultados. Por fim, na forma como o poder é exercido sobre a própria área mortuária, por meio de determinadas formas de controle sobre as práticas mortuárias e os modos de acesso a elas.

O que vemos neste conjunto de proposições das relações de poder no espaço mortuário são questões que inferem na monumentalidade, na visibilidade e na espacialidade das práticas mortuárias. Não estamos muito longe, por esta via, de conceber os espaços que abrigam a materialidade mortuária da mesma forma com que David Small (2002, p.163) havia sugerido: compreendê-los enquanto um tipo particular de paisagem mortuária (motuary landscape) e de “ambientes construídos” (built environments). Realizar esta afirmação é propor uma forma de encarar as espacialidades que demanda algumas explicações a respeito tanto das problematizações recentes sobre o que se compreende no conceito de paisagem (e, por extensão e associação, de topografia e de espaço) em saberes que envolvem a Geografia, Antropologia, Arqueologia e História, quanto do que é proposto pelo conceito de ambientes

41

(…) places of symbolic and social power: they themselves have power of the place; they are places of the

construídos e qual sua importância para o estudo da Arqueologia e da História, em geral, e da materialidade mortuária em nosso caso particular.

Comecemos pela acepção e pelas consecutivas problematizações do conceito de ambientes construídos. A utilização deste conceito adquiriu evidência e força no campo do saber arquitetônico e, em especial, em vários escritos de Amos Rapoport ao longo dos anos 1960 e 1970. Em suas queixas a uma crescente produção arquitetônica elitista (por parte de seus projetistas/designers), distanciada cada vez mais dos usos e significados quotidianos (ou da arquitetura vernacular, conforme sua própria denominação), e também suas críticas à própria história da arquitetura, centrada em grandes monumentos, Rapoport (1969, p. 11-12) insistiu em uma reaproximação do fazer do arquiteto com os sentidos presentes no mundo daqueles que mais fariam usos dos espaços projetados, dos ambientes habitados, isto é, as camadas mais populares. Suas primeiras pesquisas abordaram, por esta via, o âmbito que considerava como mais significativo para o ser humano em suas atividades do dia-a-dia: a casa ou, melhor, as formas distintas de habitar. Por meio deste problema da habitação Rapoport observou os modos pelos quais os sentidos do ambiente são apresentados aos agentes humanos, que, por sua vez, por meio desta mesma interação com a materialidade ambiental, podem agir, projetar, modificar as estruturas físicas do mundo de acordo com os sentidos que, agora, estão investidos na materialidade (Rapoport, 1982, p. 14). É este espaço criado pelos humanos em interação com o espaço/ambiente físico-natural, suas apreensões, modificações, estruturações, divisões, utilizações práticas e simbólicas – em que ambas são intercambiáveis e indissociáveis – que é o que se evoca pelo conceito de ambientes construídos.

Os trabalhos pioneiros de Rapoport ressoaram em grandes discussões sobre a espacialidade nos estudos arqueológicos, no campo geográfico e no interior da própria arquitetura.42 Suas observações podem ser compreendidas num quadro mais amplo de abordagens a respeito do espaço, no qual, numa crescente de trabalhos, ampliava-se e problematizava-se o modo de investigar as formas e significações espaciais e como o espaço poderia ser apreendido. No entanto, embora Rapoport leve em consideração as séries de

42

Para um balanço bibliográfico das discussões sobre o ambiente construído e os impactos das ideias de Rapoport, entre outros autores, nos estudos arqueológicos ver o trabalho de Cibele E.V. Aldrovandi (2009). Para críticas advindas do interior da Arquitetura, que enfatizam a crítica sobre os métodos utiliza dos e os usos de comparações às pesquisas psicológicas para a legitimação dos modelos empregados por Rapoport, ver Russ V.V. Bradely Jr. (1970).

constrições e limitações das barreiras e dos recursos naturais presentes nos ambientes e alguns modos de ação dos próprios ambientes construídos nas relações com os agentes humanos e as ressonâncias em seus modos comportamentais, sua atenção dá relevo, sobretudo, ao papel primordial (embora não único) das categorias linguísticas e dos esquemas mentais projetados sobre o ambiente. Isto está presente tanto na sua concepção de esquemas socioculturais primordiais que definem as categorias de sentido do espaço (schemata) quanto nos modos pelos quais estes sentidos apreendidos podem reorganizar este mesmo ambiente construído que lhe deu vazão (Rapoport, 1980, esp. p. 161, fig. 9.1). Por esta operação e relação de forças simbólicas, de códigos semânticos e sintáticos presentes na interação entre os agentes humanos e o ambiente, fator principal que garante a atuação e projeção do e no espaço, é que Rapoport (1982, p. 27) afirma que a “Arquitetura é melhor compreendida como uma „tecnologia simbólica‟”.43

E vai além: “Alguém pode, desta forma, olhar para o ambiente construído como uma expressão física de esquemas (schemata) e de domínios cognitivos”. Em resumo, “os ambientes são pensados antes de serem construídos”44

(Rapoport, 1980, p. 158; ênfase no original).

Percebemos, por esta forma de semantização dos campos socioculturais e espaciais,45 que estamos diante de uma noção de incorporação das ideias na materialidade – mesmo com toda a complexidade de sua elaboração. Este fato não é novidade e já atraiu diversos pesquisadores de vários campos do saber e, claro, da própria História e Arqueologia.46 Em especial, as relações entre os problemas e os desenvolvimentos dos estudos da linguagem e da materialidade têm uma história paralela de trocas conceituais mútuas desde suas gêneses na Filologia do século XIX (Funari, 2006, esp. p. 83-85). Todavia, cabe ressaltar que muitas destas apropriações apresentam uma escala variada de distinções e de adequações dos usos dos desenvolvimentos das problematizações da linguagem. Grande exemplo destes modos de interação fortuitos entre esses saberes é encontrado nos debates que envolviam as

43

Architecture is best understood as a “symbolic technology” (…). 44

One can, therefore, look at built environments as physical expressions of schemata and cognitive domains:

environments are thought before they are built.

45

Uma introdução à discussão a respeito desta relação entre os sentidos atribuídos ao espaço e à arquitetura, as relações entre as teorias semióticas e a interpretação dos signos materiais -espaciais em outras disciplinas, pode ser encontrada no trabalho de J. Teixeira Coelho Netto (2012 [1975], esp. p. 21 -29).

46

Uma recapitulação bibliográfica ao lado de uma crítica dura sobre este tipo de aborda gem da materialidade (sobretudo das ciências humanas em geral, mas também no interior da própria Arqueologia) pode ser encontrada em Bjørnar Olsen (2003; 2006).

interpretações arqueológicas autodenominadas pós-processualistas desenroladas a partir dos anos 1980.47

Um dos nomes que mais auxiliara na propagação dessas questões semânticas e simbólicas da cultura material na prática e na teoria arqueológica é o de Ian Hodder. Por conta de sua insatisfação com a teoria e metodologia arqueológica dominante no campo anglo- saxônico do período inicial de seus trabalhos – denominada de Nova Arqueologia (New Archaeology) ou Arqueologia Processual –, Hodder (1982, esp. p. 9-12, 85-86; 1995, esp. p. 10-14) buscou fugir das práticas que via como embasadas em uma categoria universal do funcionamento e desenvolvimento dos fenômenos culturais que acarretaria em aplicações de leis gerais para o comportamento humano, além de questionar a falta de problematização das relações entre a produção da cultura material e de seus significados contextuais (tratados como reflexos da organização social), e das próprias condições de possibilidade de interpretação por parte dos arqueólogos.48

É com esse arcabouço de críticas que Hodder procurou enfatizar os símbolos em ação em sua prática arqueológica e etnoarqueológica, isto é, procurou observar a possibilidade da criação e recriação de significados simbólicos pelos agrupamentos humanos quando em interação constante com a cultura material. Os objetos enquanto símbolos são elaborados e utilizados a partir de esquemas conceituais que estão presentes em todas as ações e usos da própria cultura material. Interação com a cultura material, por sua vez, constituída de escopos ideológicos, políticos e práticos, presentes na construção e organização sociais. Ou seja: os objetos enquanto símbolos em ação foram e são utilizados de modo ativo nas relações e nas estratégias sociais (Hodder, 1982, p. 185-186). Assim, Hodder (1982, p. 210) chegou à conclusão de que os padrões empregados nos usos da cultura material afetam de maneira estrutural outros âmbitos da vida e experiência humanas. Conclusão que pode ser compreendida conforme Pedro Paulo A. Funari (2007, p. 18) captou e resumiu bem ao abordar as relações linguísticas/materiais na Arqueologia Pós-Processual: “a cultura material

47

Para uma melhor compreensão dos debates e a história das relações entre Arqueologia e Linguís tica, ver sua historicidade traçada por Pedro Paulo A. Funari (2007).

48

Para uma síntese das discussões a respeito das oposições e até mesmo certas proximidades práticas e teóricas entre a Arqueologia Processual e a Pós -Processual acompanhamos os argumentos de Charles Orser Jr. (1982, p. 63-75), Andrés Zarankin (2000), Pedro Paulo A. Funari, Andrés Zarankin e Emily Stovel (2005); no que diz respeito desta oposição no campo das práticas mortuárias em específico, ver Marily S. Ribeiro (2007, p. 65 - 118).

poderia ser considerada como um sistema de sinais em código que constitui sua própria língua material, ligada à produção e ao consumo”. Neste sentido, “Como a língua, a cultura material é uma prática, práxis simbólica com produto de significado determinado e específico, que precisa ser situado e compreendido em relação à estrutura global do social”. Problematização que está, de modo intrínseco, conectada às relações de dominação e de poder: “Na esteira destas preocupações, pode considerar-se a cultura material como um discurso material estruturado e silencioso, ligado às práticas sociais e às estratégias de poder, interesse e ideologia” (Funari, 2007, p. 19).

Com isto, numa aproximação destas perspectivas que compreendemos a afirmação importante de Eliane F.V. Hirata e Maria Beatriz B. Florenzano (2009, p. 9; a ênfase é nossa) de que ao lado da proposta de Rapoport dever-se-ia acrescentar que “aquilo que construímos nos induz, de uma forma dinâmica e reflexiva, a formas de pensar e agir”. O que seria o mesmo que dizer que “os seres humanos, ativamente, dão significados ao mundo material em que estão imersos e, então, agem de acordo com tais significados. Ao mesmo tempo, espaço é prática constituída de nossas ações do cotidiano, mas também é símbolo; é a representação de um dado momento histórico”.

Um uso, digamos, ampliado do conceito de espaço/ambiente construído serve-nos, nesse sentido, para atentar para a dialogia, a dinâmica e a reflexibilidade presentes nas interações entre os seres humanos e os espaços que modificam (cf. Parker Pearson, Richards, 1993, esp. p. 2, 6). Sua importância reivindicada para os estudos dos espaços mortuários é imprescindível. Isto porque, em primeiro lugar, percebe-se como o espaço mortuário adquire, assim, uma valoração comunicacional (captada, sobretudo, por meios rituais, por realizações em presença no contexto mortuário) mobilizadora de uma série de sentidos mediados pela cultura material (Parker Pearson, 1982, p. 110). Dito de outro modo, por esta atribuição conceitual é possível observar como a ação humana pode criar espaços mortuários que, por sua vez, agem por e como meios simbólicos quando em interação com agentes humanos outros e em circunstâncias variadas, que não apenas aquela de sua fundação mortuária. Relação que pode resultar em adequações, assimilações, recusas, entre outras possibilidades interativas realizadas pelos agentes humanos para com as delimitações destes contextos mortuários. Afirmar isto é uma busca para tentar compreender e realocar na historiografia um sem número de agentes e de suas práticas quase invisíveis, mas que são capazes de transformações múltiplas das significações atribuídas à materialidade (mortuária, em nosso caso). Estamos aqui bastante próximos daquilo que Michel de Certeau (2012 [1980]) procurou

observar em sua A Invenção do Cotidiano ao almejar modos de capturar a enunciação de “narrativas espaciais” de pessoas comuns em seu dia-a-dia: isto é, buscar captar as “operações dos usuários”, seus próprios sistemas de referências e formas de atuação e fuga em espaços delimitados, outrora relegados, em geral, às disciplinas ou normas de conduta invariáveis, ditadas de maneira prévia por uma teoria social de cunho normativo.

Outro grande ponto positivo que vemos nestes esforços é o de analisar os espaços enquanto presentes e em ação no interior das relações sociais. Relações caracterizadas como constituídas e mediadas, acima de tudo, pelas vias simbólicas e figurativas atreladas aos espaços; ou seja, que lidam com os signos materiais e os significados e discursos emitidos em circunstâncias determinadas. No entanto, estes significados não são estáticos, pois são passíveis de sofrerem reapropriações nas práticas corriqueiras (Parker Pearson, Richards, 1993, p. 5), e até mesmo incidirem sobre seus criadores de maneiras, para lembrarmos os usos de Hodder (1995, esp. p. 11), “não reconhecidas” e “não esperadas”. A condição de possibilidade destas reapropriações dos significados reside no fato de que as interpretações dos símbolos materializados são sempre realizadas no interior de relações de poder e de saber, em um espaço e tempo determinados. Conforme argumentou Julian Thomas, ocorre um duplo efeito interpretativo tanto nas assimetrias sociais encontradas no nível do pesquisador/observador contemporâneo quanto no nível da produção e utilização material passada. Pois, são as posições e as experiências sociais distintas e os níveis de acesso aos saberes diferenciados que permitem, quer no presente ou no passado, tanto captar e fazer ecoar e, nesse processo, até modificar determinadas significações materiais, quanto fazer calar ou ensurdecer-se para com tantas outras (Thomas, 2005, p 17).

Notamos que, deste modo, estamos diante de uma concepção muito semelhante em certos aspectos àquelas que filósofos e linguistas propuseram, sobretudo a partir dos anos 1970, de maneiras das mais diversas, com o fenômeno que ficou conhecido por “virada linguística” (linguistic turn).49

Um exemplo pequeno desta analogia possível entre estes campos a respeito dos papéis linguísticos/simbólicos presentes nas relações sociais pode ser encontrado na arguição de Roland Barthes em sua aula inaugural no Collège de France. Naquela ocasião, Barthes (1980, p. 13) enfatizou a associação entre saberes e poderes

49

A bibliografia a respeito das problematizações da virada linguística é enorme e suas discussões ultrapassam em muito nosso escopo. Resta-nos, no entanto, dizer que nos guiamos nestes debates com as proposições de Richard Rorty (1992 [1967]), David Harlan (2000), José Antonio Vasconcelos (2005) e Alfredo dos Santos Oliva (2011).

presentes na linguagem, resumida em sua seguinte afirmação: “Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder”. Isto porque a língua, para Barthes, tem em geral uma dupla função: ela é, por um lado, negativa, assertiva, que abre espaço para a suspensão de valores; por outro, positiva, ela só existe porque, em alguma medida, seus signos são reconhecidos, repetidos, imitados. Por conta destas duas faces, dessas “duas rubricas indissociáveis”, o enunciador está sempre na posição simultânea de “senhor e escravo”: “Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente”. Ela é a face de uma força opressora e, ao mesmo tempo, uma saída para liberdade: “Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta (...) trapacear com a língua, trapacear a língua”50 (Barthes, 1980, p. 15).

Se as problematizações relacionadas à linguagem tem seu lugar explicitado na composição dos modos com que nos relacionamos com a materialidade, devemos, por outro lado, observar como a materialidade se faz presente, age nessa relação (Olsen, 2006, p. 96). E, neste ponto, cabe retornarmos para o segundo modo de inquirir o espaço mortuário sugerido por David Small: o de sua atribuição enquanto paisagem.

Devemos estar alertados de que há, contudo, diversos empregos para o conceito de paisagem. Ele pode denotar desde uma extensão dispersa no horizonte (capturada pelo olhar do observador a partir de um ponto fixo) até a representação figurativa deste panorama, ou mesmo indicar elementos naturais da composição de uma determinada localidade ou região. Todos estes sentidos distintos estão presentes na própria história do conceito. Empregado de início em referência às pinturas renascentistas, o conceito de paisagem estava atrelado à representação de uma realidade capturada à distância, com os pressupostos de não imersão ou engajamento do pintor/observador no interior do quadro (Thomas, 2001, p. 168).

A base epistemológica na qual primeiro se assentou tal conceituação, ainda muito presente na contemporaneidade, foi a de uma concepção cartesiana do espaço e da relação do corpo com o mundo, em que há uma separação fundamental entre a mente e o corpo, entre a humanidade e a natureza, entre a subjetividade e a objetividade (Layton, Ucko, 1999, p. 4). A abertura e o distanciamento entre estes elementos conceituais coordenados de maneira oposta acabam por fazer com que um seja sempre reduzido à predeterminação do outro, cuja variação se desenvolve de acordo com os pressupostos dos investigadores. Com isto, pode haver nessa

50

Contudo, vale ressaltar que a saída, a trapaça, ou a “revolução permanente da linguagem”, para Barthes (1980, p. 15) está na literatura.

construção discursiva, para citarmos um exemplo, uma desvinculação da humanidade de suas características naturais e animais intrínsecas, o que acarreta interpretações em que se sobressai