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2 OS CAMINHOS PERCORRIDOS

2.2 AS TEORIAS DO CURRÍCULO

Na opinião de Silva (2005), os estudos de currículo são contemporâneos a toda uma série de movimentos sociais e culturais de naturezas diversas, e que tomam corpo ao longo das décadas de 1960 e 1970. Neste período, dois grandes movimentos que se contrapõem às teorias tradicionais podem ser observados nos estudos de currículo. Um deles volta-se para as teorias críticas, deslocando o eixo da reflexão das questões pedagógicas e de aprendizagem para a busca da conexão entre saber, currículo e ideologia, tomando por base o referencial Marxista e a Escola de Frankfurt. O segundo desenvolve a reflexão sobre o currículo a partir dos eixos do saber, discurso e poder, associando-se as reflexões pós-modernistas e pós- estruturalistas.

Em meio às críticas do período, feitas ao sistema de ensino e aos modelos tecnicistas de currículo, destacam-se os trabalhos de teóricos franceses como Bourdieu e Passeron (1975), que apontam na escola a reprodução das estruturas vigentes, procurando demonstrar, para além das desigualdades econômicas, o papel da herança cultural, em um modelo de escola elitista e excludente, ou ainda na esteira dos estudos de Althusser (1970), a escola como parte do Aparelho Ideológico do Estado.

Na Inglaterra, a Nova Sociologia da Educação também passa a desenvolver reflexões sobre a escola e o currículo. Entre as temáticas abordadas por teóricos como Michael Young (2000), e Basil Bernstein (1998), está a relação entre a forma como os conhecimentos são selecionados, organizados e tratados pela escola, levando em consideração questões relativas ao poder, a ideologia, e o controle social. Partem do pressuposto de que os conteúdos escolares, os livros didáticos, guias curriculares e demais materiais pedagógicos contribuem para a manutenção das desigualdades sociais.

Nos EUA, autores como Henry Giroux (1986), e Michael Apple (2006), desenvolvem

trabalhos que buscam superar as posturas consideradas “reprodutivistas”, introduzindo noções

como conflito, resistência e luta contra a hegemonia. A ideia de currículo como algo relativo e questionável direciona suas análises para a complexa teia de relações existentes entre o currículo e a ideologia, a cultura e o poder.

Silva (2005, p. 53), chama atenção para o fato de que:

Contra a dominação rígida das estruturas econômicas e sociais sugeridas pelo núcleo duro das teorias críticas da reprodução, Giroux sugere que existem mediações e ações no nível da escola e do currículo que podem trabalhar contra os desígnios do poder e do controle. A vida social em geral e a pedagogia e o currículo em particular

não são feitos apenas de dominação e controle. Deve haver um lugar para a oposição e a resistência, para a rebelião e a subversão.

No Brasil, ainda que não tenha se voltado ao trabalho de construção de uma teorização específica sobre o currículo, Paulo Freire (1983), desenvolveu uma obra que tem implicações importantes para a sua teorização (Silva, 2005).

Freire acreditava que a vocação ontológica do homem é ser um sujeito que age sobre o mundo de uma forma crítica, podendo transformá-lo. A educação é, neste ponto de vista, uma ação cultural relacionada aos processos de consciencialização e politização das pessoas e dos grupos, portanto, problematizadora e não bancária. Trata-se de um instrumento de organização política das classes sociais subordinadas, isto é, dos oprimidos, o que implica na construção de um Currículo “anti-hegemônico”, onde o sujeito consegue gradualmente perceber-se não apenas em relação a sua realidade pessoal e social, como também nas contradições aí existentes.

Conforme Silva (2005), outra perspectiva dos estudos de currículo toma como referências teóricas o pós-modernismo de Lyotard (1998), e o pós-estruturalismo de Foucault (1992, 2001, 2009), Derrida (2002), e Barthes (1966). A ideia de libertação do sujeito por via

de um “projeto educacional transformador”, pressuposto das meta-narrativas sobre a

educação, é abandonada, sendo questionada a noção de uma consciência unitária, autocentrada e, portanto, construída sobre utopias e universalismos. Para Silva (2005, p. 115- 116):

Da perspectiva pós-moderna, o problema não é apenas o currículo existente; é a própria teoria crítica do currículo que é colocada sob suspeita. A teorização crítica da educação e do currículo segue, em linhas gerais, os princípios da grande narrativa da Modernidade. A teorização crítica é ainda dependente do universalismo e do fundacionalismo do pensamento moderno. A teorização crítica do currículo não existiria sem o pressuposto de um sujeito que, através de um currículo crítico, se tornaria finalmente emancipado e libertado. O pós-modernismo desconfia profundamente dos impulsos emancipadores e libertadores da pedagogia crítica. [...] O pós-modernismo acaba com qualquer vanguardismo, qualquer certeza e qualquer pretensão de emancipação. O pós-modernismo assinala o fim da pedagogia crítica e o começo da pedagogia pós-crítica.

Na concepção de Costa, Silveira e Sommer (2003), a teoria cultural contemporânea dispõe de uma diversidade de olhares quando do estudo do currículo. Abordagens críticas e pós-críticas vêm empregando com frequência a noção de “campo de luta”, para designar e evidenciar o comando do processo de seleção e organização do conhecimento escolar. Na visão de Silva (2009a), o conhecimento e o currículo como campos culturais são amplamente

discutidos como locais passíveis de disputas e interpretações, organizando “[...] formas particulares de subjetividade: seja o sujeito conformista e essencializado das pedagogias

tradicionais, seja o sujeito ‘emancipado’ e ‘libertado’ das pedagogias progressistas”. (p. 192).

O currículo é uma ferramenta muito poderosa, que carrega consigo práticas discursivas que conduzem a processos de subjetivação capazes de construir ou reconstruir identidades. Fundamentando-se nas ideias de Foucault, Silva (2006) argumenta que, na perspectiva pós- estruturalista não existe sujeito, a não ser como simples e puro resultado de um processo de produção cultural e social. Assim, o processo de construção e desenvolvimento de identidades mediante práticas sociais, privilegiando a análise do discurso, passa a ser o principal foco dos estudos de currículo dentro desta perspectiva.

Para além de um olhar calcado nos pressupostos de uma teoria crítica o autor (p. 27) argumenta que:

Não é preciso dizer que a educação institucionalizada e o currículo – oficial ou não – estão, por sua vez, no centro do processo de formação da identidade. O currículo, como um espaço de significação, está estreitamente vinculado ao processo de formação de identidades sociais. É aqui, entre outros locais, em meio a processos de representação, de inclusão e de exclusão, de relações de poder, enfim, que, em parte, se definem, se constroem, as identidades sociais que dividem o mundo social. A tradição crítica em educação nos ensinou que o currículo produz formas particulares de conhecimento e de saber, que o currículo produz dolorosas divisões sociais, identidades divididas, classes sociais antagônicas. As perspectivas mais recentes ampliam essa visão: o currículo também produz e organiza identidades culturais, de gênero, identidades raciais, sexuais... Dessa perspectiva, o currículo não pode ser visto simplesmente como um espaço de transmissão de conhecimentos. O currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz.

Costa (1998, p. 38) chama atenção para o entendimento do currículo como um campo onde múltiplos elementos estão dispostos, todos implicados em relações de poder. Trata-se, conforme a autora, de um terreno privilegiado da política cultural, territórios onde acontecem

a “[...] produção, circulação e consolidação de significados, como espaços privilegiados de concretização da política de identidade”.

Sendo os currículos constituídos por um conjunto articulado e normatizado de saberes, todos estes regidos por uma determinada ordem, aqueles que os constroem impõem aos demais, através das representações e narrativas, todo um universo simbólico articulado aos significados, produzidos e/ou eleitos como verdadeiros ou reais. Concordamos com Costa (1998, p. 41) quando aborda as relações entre currículo, cultura e poder nos seguintes termos:

Segundo a minha análise, a concepção de poder que é fecunda para o exame da relação entre currículo e política cultural é de inspiração foucaultiana, concebendo-o como disseminado, circulante, capilar e, também, produtivo e não apenas centralizado e repressivo. Trata-se de uma visão não inocente do poder, mas que não é equivalente a desconfiança generalizada e ávida por localizar uma certa força malévola, dissimulada e enganadora que encobriria a “verdadeira realidade”, “boa” e

“justa”. O sentido de não inocência é o de reconhecer a existência de um jogo de

correlação de forças que estabelece critérios de validade e legitimidade segundo os quais são produzidas representações, sentidos, e instituídas “realidades”.

Para Horn e Germinari (2006), a teoria de poder de Foucault parte da constatação de posições antagônicas a respeito das concepções atribuídas ao conceito de poder. Interessado em ultrapassar as perspectivas generalizantes a este respeito, Foucault buscou analisar a maneira como o poder se manifesta tanto na micro como na macroestrutura, sua existência concreta e especificidades em todos os níveis do social.

O autor sustentou a tese de um poder que “se exerce”, não como um privilégio de

classe, mas como o efeito conjunto de posições estratégicas, não sendo aplicado pura e simplesmente, obrigando ou proibindo aqueles que não o possuem. Para ele, mesmo aqueles que lutam contra o poder, apoiam-se nele na medida em que “[...] ele os investe, passa por

eles e através deles”. (FOUCAULT, 1987, p. 29).

Foucault (1979) argumenta ainda que, ao contrário das definições hegemônicas a respeito do caráter repressivo e, consequentemente negativo do poder, normalmente veiculadas pelas análises marxistas, deve-se identificar toda a rede produtiva relacionada aos seus efeitos. Conforme o autor:

[...] a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica desse mesmo poder; identifica- se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao fazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como uma força produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 1979, p. 8).

Ao abordarmos o currículo escolar não só como um lugar onde circulam narrativas, mas, especialmente, como um local onde se desenvolvem processos de subjetivação operados através da socialização assistida e vigiada (COSTA, 1998; SILVA, 2006), compreendemos o quanto ele se configura num espaço de disputas. O currículo assim exposto, como um artefato, está crivado por códigos, objetivos e efeitos inerentes ao processo de significação que o

constitui, não podendo ser compreendido aquém ou além das relações sociais de sua produção, que em última instância, é o resultado das relações de poder.