• Nenhum resultado encontrado

As Três Temporalidades Cósmicas

1. FACES DO TEMPO

1.2. As Faces do Tempo em Culturas Tradicionais

1.3.3. As Três Temporalidades Cósmicas

Assim como não havia entre os gregos uma ideia única a respeito do tempo, a história da raça humana apresentava-se aos olhos da civilização grega sob várias formas. Além das visões cíclica e progressiva do tempo, como indicado na seção anterior, havia a importante tradição referente à denominada Idade do Ouro, cuja descrição, encontra-se na obra Os Trabalhos e os Dias, do filósofo Hesíodo, que lançou mão desse recurso tendo como meta relatar como se configurou a condição atual da realidade humana e sua necessidade de trabalho (WHITROW, 1993 [1988]: 64), bem como mostrar as temporalidades, associadas a este processo.

Torrano (1981) contribui com este assunto explicando que:

16 Em “Tempo e Alma nos Quatro Quartetos de T.S. Elliot” Barcellos (2008), citado por Carina Servi Santos em

“Experiências do Tempo: Reflexões sobre Tempo e Alma”, reflete sobre o tempo cíclico, diante do ultimo quarteto de Elliot – Little Gidding que diz: “O que chamamos de principio, é quase sempre o fim; e alcançar um fim é alcançar um principio; fim é o lugar de onde partimos” (SANTOS, 2010: 20). Este trecho reflete a dinâmica autorreguladora da Ouroborus, em que começo e fim convergem para um mesmo ponto; o ponto de saída é o mesmo da chegada.

[...] a configuração do mundo em sua ordem atual, completou-se através de três diferentes momentos que, embora associados às três fases cósmicas, não se devem confundir com elas [...] Cada uma dessas fases distinguem-se entre si por uma temporalidade qualitativamente diversa não havendo, portanto um horizonte temporal uno e único que, ao reuni- las num mesmo plano, estabeleça entre elas uma rigorosa relação de anterioridade e posteridade. (TORRANO, 1981: 63).

De acordo com o mesmo autor integrantes da denominada raça de ouro, os “súditos de Cronos”, (GRAVES, 2004 [1981]: 13), apresentavam-se à visão de Hesíodo, como partícipes da relação de oposição entre homens e deuses, a partir da qual “se determinava a área de atribuições e atributos de cada um dos dois.” (TORRANO, op. cit.: 59).

Uma vez que a presença de um deus coincidia com o âmbito de seu domínio, toda transgressão ao domínio de um deus implicava para ele “numa ofensa ao seu timé, um apequenamento de sua grandeza, um enfraquecimento na expressão de seus poderes em suma, uma diminuição do seu Ser” (Ibid. 61).

A este respeito o mesmo Torrano (1981) explana que:

[...] muitas das atribuições que hoje por nós são entendidas como meramente humanas, os contemporâneos de Hesíodo as entendiam como previlégios da Divindade, inacessíveis aos mortais - o que na moderna perspectiva cristã se cinge exclusivamente, ao Divino, os gregos arcaicos o compartilhavam em sã consciência com os seus deuses (TORRANO, 1981: 59).

Tendo-se em vista a natureza enantiológica do panteão grego, configurada a partir desse “jogo de forças, que no mútuo confronto se determinavam a si mesmas” (Ibid.: 61), não é difícil entender como o conceito de fatalidade se deu à visão grega, ao modo de uma partilha ou lote.

Aqui, cabe a ressalva de que, embora neste estudo nosso interesse não esteja centrado especificamente na análise das partilhas envolvidas nas três fases cósmicas, descritas por Hesíodo, a saber: a proximidade das Orígens (1ª. fase); o Reinado de Cronos (2ª. fase), e o Cosmo de Zeus (3ª. e última fase), interessa-nos, contudo identificar, a partir da interpretação de Hesíodo, as

temporalidades relativas a cada fase cósmica, tendo em vista aprofundar nosso entendimento a respeito de como os antigos gregos percebiam o tempo, uma vez que Leach desenvolveu a teoria do tempo ritual segundo a noção de temporalidade associada a antigas tradições gregas.

De acordo com Torrano (1981), a primeira fase cósmica alude à:

[...] proximidade das Origens. Num universo ainda informe, prevalece a força fecundante do Céu, que ávido de amor e com inesgotável desejo de cópula, frequenta como macho a Terra de amplo seio. [...] Nesta fase original, o Céu desempenha as mesmas funções que, enquanto Céu, sempre terá: 1) Cobrir toda a Terra ao redor e, 2) ser para os deuses venturosos assento sempre seguro (Cf.: vv. 127-128). Cobrir a Terra é fecundá-la hireogamicamente através da chuva-sêmen; ser o assento dos deuses é dar-lhes origem e fundamento, fundar-lhes a existência. Nesta primeira fase a Proximidade das Origens é tão forte e impõe-se tanto em sua unificante força de coesão, que ambas as funções do Céu se desempenham no único e mesmo movimento [...] A Terra está constantemente prenhe, o Céu está em constante desempenho de suas funções [...] A temporalidade dessa primeira fase é marcada por [...] pletora de Vida e por procriante superabundância que constituem as Origens no sentido de um início cronológico [...] Assim, são fontes a Terra e seu igual (ison, v. 126), o Céu, a força do Amor que une e seu contrário, o Caos, cuja força é a da negação e da cisão. (TORRANO, 1981: 63).

Como assinalado por Torrano (1981), “esta é a fase da insurreição de Cronos, que interfere na fecundação da Terra pelo Céu”.

Vale acrescentar que, para Hesíodo, a insurreição de “Cronos-Astúcia” (Ibid.: 64-65) sobre o “Céu-instinto” (Ibidem) impõe “um limite a esta fase em que seres divinos nascem diretamente do seio da Terra, fecundada pelos sêmeles celestes” (Ibidem), criando-se em função desta separação, “um novo âmbito ou um campo em que são vividos os riscos das potências guerreiras” (Ibidem).

Dessa separação emerge a necessidade de equilíbriação entre pólos contrários - Céu e Terra - que manifesta-se por intermédio de reações compensatórias17 (Ibidem). Essa “tensão enantiológica” aduzida pela “visão aguda

17 De acordo com o poeta oral da antiguidade grega, Hesíodo, Cronos representa uma forma de inteligência

sinuosa que age de modo oblíquo na medida em que, tendo em vista ferir seu pai, coloca-se de tocaia. Assim, enquanto Urano (Céu), entregava-se “inadvertido” e “desenfreado” a sua atividade puramente vital sem conhecer regra alguma ou reflexão que fosse, a respeito de “conveniências” e “conseqüências” o flexuoso Cronos, o confronta e, impõe um

da unidade dos opostos, penetra e perpassa” toda a Teogonia, todo mito e religião gregos (Ibid.: 25).

Dando sequência à descrição das partilhas, Torrano (1981) prossegue apresentando a segunda fase cósmica, o reinado de Cronos, cujo poder expressa o “seu curvo”18 pensar, “sempre de atalaia” e sempre se ocultando (Ibid.: 65). De

acordo com Torrano (1981):

[...] Cronos sabia, pela Terra e o Céu constelado, que, apesar de toda a sua força, era seu destino por desígnios do grande Zeus, ser dominado por um filho (vv. 463-465). [...] Se, ao reinar, o Céu por sua atividade se define como fecundo (thalerón, v. 138), Cronos, enquanto rei é o vigilante sempre à espreita (dokéuon, v. 466). Tocaiar e engolir seus filhos recém-nascidos são os expedientes com que ele toma o poder e procura preservá-lo. [...] O segundo momento da partilha das honras é o da dominação de Cronos por Zeus e o catastrófico movimento que constitui a titanomaquia. [...] Nessa disputa por decidir-se em quem se centra a realeza universal [...] a Totalidade Cósmica parece reingressar nas Origens donde proveio: Céu e Terra parecem fundir-se desabando- se um no outro [...] forças que são da violência e da desordem, não são compatíveis com o tempo regular, organizado e cíclico que sob o nome de Horas (= Estações), Zeus gerou [...] Esses inimigos são degredados e essas regiões ônticas, cuja temporalidade amorfa e confusa condiz com a natureza deles.[...] Zeus se mostra rei e seus inimigos se fazem prisioneiros. (TORRANO, 1981: 66-67, grifos do autor).

Como sustenta Torrano, o estatuto temporal dos inimigos de Zeus, que em grego significa “o grande espírito” - o irrelaxável estado de alerta (Ibid.: 68), - não pertence mais à atual fase do mundo; e se não pertence, encontra-se no “além- mundano, o que se situa na distância além do círculo do Oceano, ou nas profundezas abissais do Tártaro” (Ibidem). Os inimigos vencidos, “forças que são da violência e da desordem”, incluindo-se Cronos, estão excluídos do “lúcido e bem ordenado tempo de Zeus” vivendo em outras fases do mundo, i. é., em outro

Kósmos, outra Ordem, que não a de Zeus (Ibidem).

limite que regra a força fecundante do pai. Em outros termos “ a inteligência que impõe limites ao instinto, encontra neles também os seus limites, impostos pelo ins-tintoTorrano, 1981:65).

18 O modo de Cronos, pensar é dito “curvo” porque “ele só age obliquamente e sob ardil” e nessa atitude,

está ao mesmo tempo, sua arma mais eficaz (o curvo pensar, a foice curvada, o ocultar-se e o engolir), e seu irremediável limite, uma vez que o “ocultar-se e o engolir não impõem sua presença real como uma soberania, nem atingem a matriz donde provém a ameaça à sua realeza” É com essa arma que Cronos é aba- tido e depois, derrotado (TORRANO, 1981:65).

Torrano descreve o tempo instaurado por Zeus como “regular, orgânico, bem ajustado e cíclico” (Ibid.: 70), próprio para que:

[...] nele os homens se empenhem com recompensada diligência no culto do(s) Deus(es) e no cultivo da(s) Terra(s) – não é de modo algum o único compatível com a vivência da Ordem, nem o melhor e o mais feliz dentre os muitos tempos divinos e humanos. (TORRANO, 1981: 70).

O mesmo autor sugere ainda que são muitas as temporalidades a serem vivenciadas no cosmo de Zeus, quando completa-se a configuração definitiva de ordenação do mundo, estabelecida “por meio das diversas núpcias do novo soberano, com potestades primordiais” (Ibidem).

Torrano explica:

[...] para assegurar que seu poder não será superado e que o domínio que ele [Zeus] exerce sobre seu pai [Cronos] não será por sua vez dominado, Zeus recorre a núpcias que são alianças políticas. Zeus, ao iniciar seu reino, desposa uma divindade de natureza aquática, Métis, e uma de natureza terrestre, Thémis. Com esses dois casamentos inaugurais, Zeus garante o seu controle sobre esses âmbitos, donde provieram as potências sob as quais Cronos se viu dominado e su- perado [...] Como filha do rio que circunvolve a totalidade da Terra, Métis representa a presciência oracular e prática que abarca a totalidade dos recursos do espírito. Ela é “a que mais sabe dentre deuses e mortais” (v. 877). E uma vez que ela é incorporada a Zeus, não há mais recurso ao espírito que não seja circunscrito pela consciência de Zeus, nem recurso do espírito que não esteja contido no espírito de Zeus. Nenhum logro pode ser tramado sem que se dê ao conhecimento de Zeus. [...] Tal como o rio Oceano cinge com suas correntes circulares a totalidade da Terra [...] o Metíeta Zeus cinge com sua grande percepção a totalidade do que é. (TORRANO, 1981: 75-76, interpolação nossa).

A partir de Torrano (1981) podemos presumir que o cosmo de Zeus, divino e simultaneamente humano - ambíguo portanto - denota uma totalidade em que os opostos Céu e Terra, divino e humano, vida e morte interagem. Em Leach essa totalidade caracteriza-se como a continuidade na natureza; o tempo continuum. Segundo o mesmo Torrano (1981), Zeus incorpora recursos à própria consciência assegurando seu “domínio sobre o imprevisível, o instável, o cambiante” (Ibid.: 76), o temporal, caracterizando uma temporalidade associada a

terceira fase cósmica de ordenação do mundo em que encontram-se integrados os “reinos de Cronos e do Céu” completando-se e firmando-se desse modo, uma Totalidade Cósmica (Ibid.: 79).

Torrano (1981), conclui ao final de seu relato que, enquanto o reinado de Cronos:

[...] tem, por seu próprio ser e natureza, um âmbito restrito, que se curva em torno de si mesmo e assim se delimita [...] o reinado de Zeus é o mandálico centro da Totalidade Cósmica porque ele é o único cujo centro se dá como a mais plena manifestação do espírito. [...] Zeus se caracteriza pela vontade centrada no espírito. (epi-phona boulén, v. 896); (TORRANO, 198: 81).

Tendo o cosmo de Zeus completado a Grande Partilha das Honras, apre- senta-se à visão de Hesíodo como um centro mandálico, como “a grande percepção” (mégas nóos) (Ibid.: 68), diante da qual nada permanece oculto levando-nos à suposição de que tal centro, assemelha-se ao instante kairológico em que a vontade centrada no espírito assegura o domínio sobre o instável, o cambiantepermitindo que o que encontra-se oculto torne-se “visível”.

Em vista disto, não parece incorreto supor que a entrada no reinado de Zeus, assemelha-se a uma “passagem estreita”, limitada, uma vez que no contexto das três fases que expressam a Grande Partilha Cósmica, Zeus denota a vontade centrada no espírito, a ação regulada e firme que abarca atributos do Céu e da Terra.

Como indicado anteriormente, Zeus personifica um reino mandálico sugerindo tal simbologia uma totalidade. Importa ressaltar que embora não houvesse na Teogonia de Hesíodo, o termo Kairos, os atributos que caracterizam a temporalidade de Zeus, vão de encontro a abordagens do tempo kairológico, adotada por alguns aportes a partir das quais, presumimos tal associação. Após apresentarmos uma breve explanação a respeito das três temporalidades cósmicas exploramos na sequência algumas dessas abordagens.

1.4. A Natureza do Tempo em Kairos

Documentos relacionados