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A Imagem Primária do Tempo

3. O TEMPO RITUAL SAGRADO EM LEACH À LUZ DE KAIROS

3.2. A Imagem Primária do Tempo

Isso posto se à luz de Cronos, Hermes, representa o “elemento móvel e vital” (LEACH, 1974: 200) ou, o fluxo de movimento da alma que num “constante devir” (LEACH, 1989: 2) oscila entre dicotomias, evocando a dinâmica universal a partir da “transmutação perpétua” entre “morte e vida” (GHEERBRANT; CHEVALIER, 1997[1982]: 814-825) quando interpretado à luz dos elementos mitológicos ligados à noção de Kairos, Hermes, não simboliza um falo que oscila entre dicotomias, mas um instante-orígem que pulsa “hierogamicamente”

(TORRANO, 1981:63) e manifesta-se ora como uma cabeça (um ponto originário) e ora como uma “chuva-sêmen” (Ibidem), ou um falo.

Tendo em vista esta metáfora não parece difícil presumir que, se à luz do mito de Cronos, Hermes, oscila entre tempo profano e tempo sagrado numa “dimensão horizontal” (KERKHOF, 1997:2) à luz de Kairos, Hermes, pulsa numa “dimensão vertical” (Ibidem) ora como um ponto originário e ora como um falo; ora como o ciclo de Kairos e ora como o ciclo de Cronos, num curso que segue em direção as origens.

Hermes, o mensageiro, que representa em Leach do ponto de vista metafórico a união entre macho (Céu) e fêmea (Terra) ou, entre os princípios ativo (masculino) e receptivo (feminino) do tempo quando associado ao instante kairológico denota o elemento móvel que pulsa ora como Céu ora como Terra num ritmo encerrado sobre si mesmo.

À luz de Kairos, Hermes expressa “um único e mesmo movimento” (Ibidem) que “constitui as origens no sentido de um início cronológico” (Ibidem) e tal como a imagem da Ouroborus, que engole a própria cauda “conectada em um ciclo contínuo, de ‘vida-morte-renovação’” (KOEPF, 2009:223-225), “encerra as noções de movimento, autofecundação e continuidade” (GHEERBRANT; CHEVALIER, 1997[1982]: 922) bem como de eterno retorno (Ibidem) assemelhando-se segundo Phillip Sipiora (2002:1) à “noção de logos”.

Daí deriva que, à luz dos elementos mitológicos ligados à noção de Kairos, a “distinção fundamental entre profano e sagrado que as grandes autoridades do campo das ciências da religião reconhecem como válida” (KERKHOF, 1997:104) não pode ser sustentada porque como indicado anteriormente, o “curso” do instante kairológico associado ao intervalo de tempo sagrado é vertical, “irreversível e unidimensional” (Ibid. 2). Enquanto à luz de Cronos, Hermes, o mensageiro dos deuses, “corre” (KERKHOF, 1997:2), na dimensão horizontal “do transcurso do tempo” (Ibidem), transitando entre Céu e Terra, entre este e o outro mundo à luz de Kairos, ele salta em uma velocidade vertiginosa, em direção às origens, em que “são fontes, a Terra e seu igual o Céu” (TORRANO, 1981:63) tal

como um “falo masculino” (LEACH, 1989:29) que simbolicamente devolve-nos “para o início de tudo” (GELL, 2014:39).

Reconhecendo apenas o instante presente, que “pulsa incessantemente entre o dever e o perecer” (KERKHOF, 1997:105). Hermes manifesta-se ora como um aspecto sagrado ora como um aspecto profano atendendo a um mesmo princípio cósmico.

Do ponto de vista do binário apresentado em Leach (Cf.: Figura 5), isto significa dizer que, quando o transitante ritual “torna-se castrado” e é transferido para o intervalo ritual de tempo sagrado, ao invés de deslocar-se “ao longo de uma linha contínua imaginária tendo como pontos todos os números entre -1 e +1” (LEACH, 1982:10) experimenta o ponto “0” que não é nem positivo nem negativo, mas, “as duas coisas simultaneamente” (Ibidem).

Enquanto do ponto de vista do tratamento de Cronos, o participante ritual experimenta o continuum como parte de uma “sequência de inversões” (LEACH, 1974:200) que ocorrem no plano da linearidade à luz dos elementos mitológicos associados à noção de Kairos, o participante ritual experimenta o tempo

continuum ou, o instante kairológico como um “ponto do tempo” (BROWN; COENEM, 1983[1967]: 566).

Ao transcender dicotomias tais como: “sujeito e objeto, começo e fim” (KERKHOF, 1997:2) este mundo e outro mundo e, seguir num curso unidimensional, irreversível em direção às origens, a consciência ordinária do participante ritual (quando associada ao instante kairológico no intervalo ritual de tempo sagrado), copia o tipo de movimento dos organismos vivos com diversas dimensões de ‘profundidade’ ou ‘altura’ (Ibidem) com oscilações entre um “curso acelerado e certa imobilidade” (Ibidem).

Isso posto, cabe aqui uma observação: quando Kerkhof (1997) afirma que a natureza do instante kairológico copia o mesmo tipo de movimento dos organismos vivos oscilando entre um curso acelerado e uma certa imobilidade isto parece não adequar-se a perspectiva de Kairos e sim a de Cronos; pois, como é possível o autor falar em oscilações quando o curso unidimensional do instante kairológico, é representado por um ponto-orígem que apenas pulsa?

Entretanto, ao tomarmos emprestadas as palavras do próprio Kerkhof, situando “o instante vivido” (KERKHOF, 1997:2), que o autor associa ao tempo kairológico, como um ‘lugar’ (Ibidem) “em uma dimensão ‘vertical’ típica de tudo o que tem origem nasce, cresce, e se distingue da dimensão ‘horizontal’ do transcorrer do tempo” (Ibidem), não é difícil presumir que para o mesmo autor o instante kairológico, simplesmente pulsa centrado nele mesmo (origem). Isso parece ficar claro em Kerkhof (!997), para quem o instante kairológico é tanto “ponto de partida” quanto de “culminância” (1997:2) sugerindo o mesmo autor que o instante kairológico aprofunda-se em si mesmo, como veremos mais adiante.

Contudo, por hora, basta entendermos que, quando associado ao instante kairológico, o intervalo ritual de tempo sagrado, representa um “lugar” em que o curso do tempo é unidimensional, irreversível e segue em direção às origens. Hermes, o mensageiro dos deuses que em Leach personifica a imagem primaria do tempo quando interpretado à luz de Kairos, pulsa neste fluxo continuum do tempo ora no mundo divino ora no mundo humano. Isso posto, apresentamos na sequência o diagrama que reduz Hermes ou, a imagem primária do tempo

continuum a uma forma geométrica:

Figura 13: Ilustração esquemática da Imagem primária do tempo (Hermes) Fonte: adaptação de Leach (1972:48)

Como indicado, e, é possível observar na ilustração da figura 13, o tempo eterno irrompe verticalmente, no sentido transversal à dimensão horizontal em que situa-se a cadeia cronológica criando uma “intersecção” (JULLIEN, 1996:106) entre o eterno e o temporal. Ao que tudo indica esta intersecção representa simbolicamente Hermes, ou o instante Kairológico, o ponto no tempo que “chama atenção do momento presente para o passado ou para o futuro” (BROWN; COENEM, 1983[1967]: 566-567). O ponto no tempo e no atemporal que representa ambigüidades; porisso circula entre este e o outro mundo; entre uma dimensão divina e outra humana.

Este “tempo regulado que mantém o equilíbrio” (JULLIEN, 1996:99) entre uma dimensão divina e outra humana, ou seja, que vem “reparar a dilaceração” (Ibid. 105) ente duas cronologias distintas é representado como uma “marca” ou “alvo” (ONIANS, 2010[1951]: 344) que “pode penetrar a vida em seu âmago” (ibidem), já que aprofunda-se em “diversas dimensões de ‘profundidade’ ou ‘altura’” (KERKHOF, 1997:2) no sentido das origens.

Não é demais acrescentar em relação a este assunto que, em 1916, Carl Jung apresentou uma palestra para a Associação da Psicologia Analítica intitulada “A estrutura do inconsciente” em que “diferenciava duas camadas do inconsciente” (SHANDASANI, 2005[1962]: 253): a primeira ele chamava de “inconsciente pessoal, que consistia em elementos adquiridos ao longo da vida da pessoa” (Ibidem) e a segunda que distinguia-se da primeira em função de seus conteúdos ele chamava de “inconsciente impessoal ou psique coletiva” (Ibidem), sendo constituída por um material filogenético herdado, que “continha toda a herança mental ou espiritual da evolução da humanidade” (Ibid.259).

Esta concepção de um inconsciente filogenético que “descendia diretamente dos conceitos propostos pelos teóricos da memória orgânica” (Ibid. 254), tinha como seu conteúdo mais importante as “imagens primordiais” (Ibid. 253) que Jung definiu como “o pensamento e o viver místicos” (Ibid. 254). Neste sentido, os conteúdos do inconsciente coletivo constituíam “formas estruturais atemporais” (Ibid.: 259), que representavam “o eterno retorno da história da alma” (Ibidem).

Tendo em vista o acima exposto, se Jung estiver na direção correta podemos presumir que Hermes, personificado em Leach como uma imagem primaria do tempo ou da alma, penetra o âmago da vida pulsando ora entre as camadas atemporais mais profundas e primordiais da psique humana, ora no tempo ordinário. Quando interpretado à luz da modalidade do tempo em Kairos, Hermes, é o mensageiro dos deuses divino e humano que pulsa entre os ciclos de vida e morte; entre este e o outro mundo..

A partir do exposto apresentamos na sequência como ocorre o processo de segmentação e ordenação do mundo em Leach à luz dos elementos mitológicos associados à noção de Kairos.

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