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Os Dois Instantes Cruciais

1. FACES DO TEMPO

1.2. As Faces do Tempo em Culturas Tradicionais

1.4.1. Os Dois Instantes Cruciais

Em Tratado da Eficácia, François Jullien declara: “o acaso de um lado, a arte de outro: entre tuche e techné, interpõe-se um terceiro termo para pensar a ação – a ocasião: Kairos” (JULLIEN, 1996: 87).

A partir desta afirmação, Jullien (1996) assinala que, quer se trate da navegação, da medicina, da política ou da estratégia, entre o que por um lado releva da for- tuna ou, da “divindade” e, do outro, o que é “nosso”, a técnica, a ocasião operaria a junção de onde provém a eficácia, pois:

[...] graças a ela, a nossa ação está em condições de se inserir no curso das coisas, já não produz mais estragos, mas consegue inserir-se nela, aproveitando a sua causalidade e sendo secundada. Graças a ela o plano concertado consegue encarnar-se, este a propósito dá-nos oportunidade, assegura a nossa maestria [...] Fim-ação-ocasião: o esquema doravante está completo, a ocasião vem ajustar um assistir ao outro (JULLIEN, 1996: 88).

O autor caracteriza a ocasião oportuna como um momento em que a ação humana está madura para inserir-se numa nova ordem de coisas, não só em função de um processo de amadurecimento facultado por experiências no tempo profano, mas, também, por uma oportunidade que nos é facultada por um instante divino, sagrado. Em ultima análise, a oportunidade para uma ação ou decisão regulada aparece no momento propício (Fim-ação-ocasião).

O mesmo autor prossegue:

[...] Por conseguinte, a última coordenada a ter em conta para pensar a ação eficaz é a do tempo. É que a ocasião é esta coincidência da ação e do tempo, que faz com que o instante súbito se transforme numa oportunidade, que o tempo então está propício, que parece vir ao nosso encontro, occurrit, é uma ocorrência. Tempo oportuno que conduz ao porto “oportuno”, mas tempo também fugaz; tempo mínimo ao mesmo tempo em que ótimo, que se inquieta entre o ainda não e o já agora, e que é preciso apanhar para se ter sucesso (Ibidem, grifos do autor).

Como tudo indica este tempo que segundo Jullien, transita entre o “ainda não e o já agora”, representa o instante súbito do agora, que é o momento presente, prenhe do “ainda não e do já agora”; momento em que “a oportunidade se torna visível” (Ibidem).

Contudo, é preciso um olhar atento para se ter acesso a esse ponto fugaz

no tempo, que oscila entre o “ainda não já agora”, transformando o curso do próprio tempo.

Ainda nas palavras do mesmo autor:

[...] Enquanto a ciência assenta sobre o eterno (o que é sempre idêntico e se pode demonstrar; sempre o ideal dos matemáticos), o útil é iminentemente variável, reconhece Aristóteles: uma vez que “este é útil hoje, mas não será amanhã” (Grande Moral, I, 1197, a 38). “Face ao fim que é necessário” convém precisar da forma que é preciso e quando é preciso [...] A importância da ocasião - Kairos - não é menos afirmada de um extremo a outro da nossa Antiguidade. “Nada vale mais que conhecê-la” (Píndaro) “ela é o melhor dos guias em todo o empreendimento humano” (Sófocles), a sua “onipotência é firmada” (Ibid.: 88-89, grifos e aspas do autor).

Como visto na citação acima, em Aristóteles, a ocasião oportuna não se repete. Píndaro privilegia a ocasião oportuna como um guia para a existência e Sófocles alerta-nos a respeito da onipotência deste momento.

1.4.2. Faces de Kairos

Phillip Sipiora (2002) sublinha em um breve comentário extraído de “Introduction: The Ancient Concept of Kairos” que apesar:

“[....] da atenção dada a Kairos, por historiadores do século XX, não se oferece uma articulação sistemática de sua importância e influência nas tradições pré-socráticas e, no processo de desenvolvimento do pensamento grego antigo.” (Ibid.: 2, tradução nossa).

O autor parece sinalizar que Kairos “personifica um conceito seminal na antiga cultura grega” (Ibid.:1), tendo em vista sua “dominância, penetração e influência na literatura, filosofia e retórica, bem como na numerologia e artes médicas” (Ibid.:2).

Relembrando que na Grécia antiga, na cidade de Olympia, foi construído um estádio em homenagem a Zeus, no local em que foi realizada a primeira olimpíada, em 776 a. C., o mesmo autor relata que neste local “abrigam-se dois santuários: um ofertado a Hermes, dos Jogos, e outro ofertado à Oportunidade” (Ibid.:1, grifos do autor) este ultimo, representando o deus Kairos. Vale ainda mencionar que dentre outros empregos do termo tais como: “simetria”, “ocasião”, “justa medida”, Kairos refere-se ainda de acordo com Sipiora, “à noção de logos.” (Ibidem).

Na sequência, destacamos em O Novo Dicionário Internacional de Teologia

do Novo Testamento, 1983 [1967], alguns empregos associados à temporalidade

de Kairos:

[...] Kairos descreve um “tempo apropriado”, o “momento certo” (e. g. Sóf, El, 1292), um “momento favorável” [...] As seguintes palavras são derivadas de kairos: [...] eukairos (pela primeira vez em Sóf. OC, 32), “apropriado”, “oportuno” [...] e proskairos (e. g. Estrabo 7, 3, 11), “de pouca duração”, “passageiro”, “momentâneo”, “inconstante” [...] Sinônimo de nyn é o adv. Temporal arti (desde Píndaro; raiz ar; cf.: Lat.). Artus, “apertado”, “perto”, “agora”, “nesse momento”, “imediatamente” (e.g. Hipócrates, Epidemie 9, 2). Com as preposições heõs, “até” e apo, “fora de”, arti (chama a atenção do momento presente para o passado ou o futuro). (BROWN; COENEM, 1983 [1967]: 566-567, grifos e aspas dos autores).

Na perspectiva de Onians (2010), que caracteriza a modalidade do tempo em Kairos a partir das traduções de Eurípedes (480 a. C. a 406 a. C):

“[...] Kairós significou algo como ‘marca, alvo’. Isto não poderia ter surgido de ‘justa medida’ ou ‘oportunidade’. Por outro lado, embora o termo ‘marca’ (mark), possa explicar o uso aproximado dos termos ‘justa medida’, ‘longe de alcançar’ wideofthemark), ‘foram longe demais’ (overshootthemark), etc., não explicará nem ‘oportunidade’, nem o uso pelo qual Eurípedes se refere a uma parte do corpo, onde a arma pode penetrar a vida em seu âmago como um Kairós, (acima de tudo, na

cabeça), falando de um homem como [...] atingido em um Kairós.” (ONIANS, 2010 [1951]: 344, tradução nossa, grifo e aspas do autor).

De acordo com o mesmo Onians (2010), em Eurípedes, a palavra “alvo” denota uma parte do corpo onde a arma pode penetrar a vida, em seu âmago. E adianta, na sequência, que um homem atingido em um Kairos, é um homem atingido, acima de tudo na cabeça. Não seria então um homem atingido em um Kairos, um homem atingido em sua consciência ordinária? Em Onians, isso não fica claro.

O autor prossegue:

“[...] Com relação a esta descrição dos lugares onde a penetração era mais fácil, os romanos parecem ter traduzido literalmente, se não muito inteligentemente, para a palavra tempus, que era o significado comum de Kairós, em seu tempo; daí o nosso ‘templo’ (temple). Este uso de Kairós exemplificado em Eurípedes parece ser mais velho do que o uso comumente traduzido por ‘oportunidade’ ou ‘justa medida’.”

E complementa:

“[...] Kairós descrevia o lugar em que uma arma poderia fatalmente penetrar e aquilo para o qual os arqueiros apontavam na prática. Mas o que seria este último se omitirmos os pássaros e as feras? Para onde os arqueiros apontavam na grande competição de tiro pela mão de Penélope? Para o que Ulisses apontava em outras ocasiões? ‘Para um orifício penetrável, uma abertura, uma passagem através do ferro de um machado, ou melhor, de 12 machados distribuídos a certos intervalos, em uma linha reta’.” (ONIANS, 2010: 344, tradução nossa, interpolações e grifo nossos, aspas do autor).

Como é possível perceber, Onians (2010), associa o tempo em Kairos, a uma abertura ou, um orifício cuja penetração atravessava o ferro de doze machados distribuídos em linha reta, sugerindo o mesmo autor que este orifício penetrável é “tirado” de um arranjo linear.

Entretanto, apesar de Onians (2010), não aprofundar o conhecimento a respeito dessa metáfora apresentamos na sequência um desenho esquemático que tenta reconstituir graficamente, a “prova do arco e dos doze machados”

proposta pela sensata Penélope, rainha de Ítaca, à seus pretendentes, como contextualiza o mito de Odisseu.

No esquema abaixo ilustramos o modo como os doze machados eram distribuídos em intervalos, numa sequência linear, tendo no centro de cada um deles, orifícios ou aberturas, conforme assinala Onians (2010), que perpassavam em linha reta toda essa cadeia linear. De acordo com a mitologia grega para atingir o alvo, o arqueiro deveria concentrar-se e atirar sua flecha através desses orifícios em cadeia.

Figura 5: Ilustração da Prova do Arco e dos Doze Machados Fonte: TORRANO, (1981:94)

Ao ressaltar que o tempo em Kairos “enfatiza quebras, rupturas” e “rompe a cadeia da cronologia” (HONKANEN, 2007:9, tradução nossa), Kattis Honkanen, contribui com essa mesma pauta nos levando a supor que na modalidade de tempo em Kairos, há uma dimensão transversal que rompe com nosso entendimento de um tempo uniforme, linear. Onians (2010) e Honkanen (2007), parecem comungar quanto ao fato de que o instante kairológico atravessa a cadeia linear rompendo com nossa idéia de de um tempo cronológico.

Honkanen sustenta, que a modalidade de tempo em Kairos “assemelha-se ao tempo ‘do agora’ em que cada ‘agora’ encontra-se em um processo de tornar-

se um novo ‘agora’, embora permaneça sempre presença e nele-mesmo.” (Ibid.: 10, tradução nossa). Neste sentido, Kairos assemelha-se ao instante presente que “abarca de uma vez” (Ibid.: 9) diferentes tempos, como um processo:

“[...] infinitamente em curso, como um mecanismo de construção de sentidos [...] um presente expandido [...] como uma ideia que traz todos os sentidos e ‘tempos’ para o curso do agora, em que não há um significado de ‘antes’ já que o tempo é sempre ‘de uma vez.’” (HONKANEN, 2007: 10, tradução nossa).

Embora a “concepção ocidental de tempo seja sumariamente entendida como um fluxo uniforme de tempo, que encaminha-se de um movimento anterior para um posterior” (LINDROOS, 1998:12 apud HONKANEN, 2007: 5, tradução nossa) e, cuja “estrutura temporal assemelha-se a um começo, meio e fim” (Ibidem), a autora nos leva a considerar que existe uma temporalidade caracterizada como um “um fluxo de ágoras.” (Ibid.: 6).

Na obra intitulada Kairos: Exploraciones Ocasionales en Torno a Tiempo y

Destiempo, Manfred Kerkhof (1997) explicita um comentário que nos esclarece a

respeito da modalidade de tempo em Kairos, bem como nos oferece sua concepção do que considera o instante kairológico.

Na perspectiva deste mesmo autor:

“[...] os grandes momentos da vida podem converter-se em algo quase intemporal: o instante interpretado não como ‘parte do tempo’, senão como sua origem, se faz em tais ocasiões em lugar da irrupção da eternidade no tempo [...] o instante, determinado como ponto de partida, ou culminância de ações ou decisões, constitui algo qualitativamente distinto do agora, medido em segundos; e, de fato, tal instante possui, segundo seu ‘conteúdo’, mais ou menos peso, mais ou menos importância, mais ou menos duração.” (KERKHOF, 1997: 2, tradução nossa).

Em Kerkhof, o instante kairológico denota um instante-origem no tempo que é simultaneamente, início e culminância de ações ou decisões qualitativas. Em outras palavras o autor atribui à Kairos, uma ambigüidade, que em Leach caracteriza o intervalo ritual de tempo sagrado.

Kerkhoff (1997) ressalta ainda, que em função de seu conteúdo” o instante kairológico terá maior ou menor peso e importância, maior ou menor duração, sugerindo que esse instante pode ser experimentado de diferentes formas pelo ser humano. Ao que tudo indica, no que diz respeito ao instante kairológico algumas experiências rituais podem não só durar mais que outras mas, também ter maior relevância o que vai de encontro ao pensamento de Leach a respeito do intervalo ritual de tempo sagrado, refletindo segundo o mesmo Leach o modo como cada indivíduo irrompe a experiência do continuum.

Ao considerar Kairos como um instante qualitativo Kerkhoff (1997) assinala ainda que:

“[...] tal receptividade anula a indiferença dos instantes quantitativamente iguais; o tempo, como parece, muda de qualidade em seu curso irreversível e unidimensional, copiando o tipo de movimento dos organismos com diversas dimensões de ‘profundidade’ ou ‘altura’, com oscilações entre um curso acelerado e certa imobilidade.” (Ibidem).

O autor é bastante claro ao expor que o instante kairológico muda de qualidade na medida em que aprofunda seu curso entrópico, irreversível, que muda de qualidade a semelhança dos organismos vivos. Em Leach também encontramos uma alusão à esse curso irreversível, entrópico, nos seres humanos quando o autor sinaliza a entropia, como um das três formas de o ser humano experimentar a passagem do tempo. Kerkhof (1997) considera, nessa mesma pauta, que o instante em Kairos assemelha-se a uma experiência visceral, diferente da experiência temporal ordinária do ser humano, associada ao tempo linear, quantitativo.

Como o próprio kerkhoff (1997) acrescenta, o instante kairológico manifesta-se com diversas dimensões de profundidade ou altura oscilando entre um curso acelerado e uma certa imobilidade, sugerindo nessa passagem, que a dimensão de tempo em Kairos possui uma natureza pulsante que alterna-se entre velocidade e paradas.

Metafóricamente falando, essa velocidade parece estar representada na fugacidade do deus Kairos, como indicado no mito grego, enquanto a imobilidade

associada ao instante kairológico, provavelmente, encontra-se relacionada ao instante culminante em que, em decorrência de uma ação ou decisão qualitativa, o ser humano agarra o jovem deus grego pelas madeixas de cabelo, manifestando-se nesse momento uma oportunidade. No contexto do mito grego, este seria o momento em que o deus Kairos cessa de saltar, parando o tempo, para pesar com sua balança a vida dos homens, informar-lhes o destino e o novo rumo de suas decisões (GRAVES 2004: 15).

Ressaltando que o tempo em Kairos denota um princípio receptivo,como indicado o autor nos leva a considerar que, em oposição a modalidade de tempo em Kairos, Cronos, a modalidade oposta denota um princípio ativo. Kerkhof (1997) acrescenta que há um instante vivido associado ao tempo kairológico, que não faz distinção alguma entre “sujeito e objeto, começo e fim” (KERKHOF, 1997: 2), “antes e depois” (Ibidem) reconhecendo apenas o “agora” (Ibidem), o instante presente que transcende dicotomias e, “pulsa incessantemente, entre o devenir e o perecer regulando nossa consciência.” (Ibidem). Em outras palavras, e como sinalizado pelo mesmo autor, na modalidade de Kairos o tempo ou, o instante, pulsa entre velocidade e imobilidade, vida e morte, sagrado e profano.

No que diz respeito à essa “distinção fundamental entre profano e sagrado que as grandes autoridades do campo das Ciências da Religião reconhecem como válida” Kerkhof (1997) argumenta ainda que:

“[...] também devemos enfrentar a possibilidade de que longe de tratar-se de uma categoria universal, aplicável, o sagrado talvez não exista senão somente na mente analítica e secularizada do observador eurocêntrico.” (KERKHOF, 1997: 104, tradução nossa,).

Sugerindo que os “conceitos são secularizados” (Ibid.: 105), o autor parece sinalizar que a distinção entre o sagrado e o profano resulta de uma operação de nosso pensamento metonímico que a tudo separa o que vai de encontro à concepção de Leach a respeito de tempo ritual. Para este ultimo autor o pensamento metonímico encontra-se em oposição ao pensamento metafórico que integra tudo o que está separado.

Kerkhof (1997) assegura em relação ao mesmo assunto que:

“[...] o fenômeno que a investigação empírica tem descoberto é precisamente que esta distinção não deve ser sustentada: praticamente tudo pode ter um aspecto sagrado e outro profano; não parece haver nada que seja sempre profano.” (KERKHOF, 1997: 105, tradução nossa)

A argumentação do autor não parece estar pautada no ponto de vista cartesiano, que a tudo segmenta para classificar e categorizar. Ao afirmar que a distinção entre o profano e sagrado deve ser transcendida, o autor nos leva a considerar que os aspectos sagrado e profano podem abarcar todo tipo de ação ou temporalidade social como também sustenta o antropólogo social Edmund Leach.

Ao que tudo indica Leach e Kerkhof, comungam uma mesma opinião no que diz respeito a questão da distinção categorial já que ambos concordam que, qualquer tipo de ação social denota tanto um aspecto profano quanto outro sagrado.

Já Kerkhof (1997) acrescenta que:

“[...] ao final, praticamente tudo, sem exceção, pode converter-se de sagrado a profano e ao revés, uma vez que, depois de certo tempo, a dependência diante do extraordinário, se subverte em um controle parcial.” (KERKHOF, 1997: 107).

De acordo com Kerkhof (1997) por denotar “a presença de uma força desconhecida” que gera “insegurança, angústia, assombro e curiosidade”, (Ibid.: 106, tradução nossa), o extraordinário, ou o sagrado, tendem a personificar o “anônimo”, o tabu, que “causa estranheza e paralisa” (Ibidem). Contudo, o mesmo autor nos leva a crer que todo fenômeno ou evento que de início mostra-se extraordinário pode institucionalizar-se na medida em que deixa - com o passar do tempo - de ter certa ascendência sobre a consciência ordinária. Se tomarmos como referência esse posicionamento do autor podemos presumir que, em Leach a dependência do tempo continuum, considerado tabu, do outro mundo, como um

intervalo ritual de tempo sagrado, pode vir a subverter-se em um controle parcial transformando o extraordinário, o tabu, em uma dimensão profana.

Kerkhof (1997) sustenta nossa hipótese ao argumentar que os dois aspectos - repulsivo e atrativo - que caracterizam o extraordinário, via de regra, denotam uma ambivalência “que rege os termos do ‘mana’ e do ‘tabu.’” (Ibidem). Isso nos leva a presumir que em Leach, o tempo contínuum, considerado tabu é tanto atrativo quanto repulsivo.

O autor acrescenta ainda que no intento de reconstruirmos uma kairomitologia, associamos o instante kairológico à uma incidência tabu. Contudo para ele:

“[...] está claro que, o intento de reconstruir uma “kairomitologia” ocidental deve parecer como uma recaída na superstição astrológica ou regressão ao ocultismo; mais acertado seria então, segundo esta perspectiva de superioridade, reabilitar um oportunismo, moralmente suspeito, embora não menos moderno.” (KERKHOF, 1997: 104,).

De acordo com Kerkhof (Ibid:103), o tempo em Kairos, que denota o tempo vivido na consciência, não encontra quaisquer equivalências com a astrologia, o ocultismo ou o oportunismo. Ao contrário, o instante vivido ou, o instante kairológico que presumimos caracterizar o intervalo ritual de tempo sagrado, pode ser percebido:

“[...] como um ‘lugar’, um possível momento de decisão, que traz uma probabilidade de liberdade, e nos propicia uma abertura em direção a algo que se encontra em uma dimensão transversal, em relação ao meio usual em que transcorre o tempo; em outras palavras: o instante é como um ponto de partida de uma ação ou decisão, situando-se em uma dimensão ‘vertical’, típica, de tudo o que tem origem, nasce, cresce, e se distingue da dimensão ‘horizontal’ do transcorrer do tempo; como o saltar e o correr.” (KERKHOF, 1997: 2, tradução nossa, interpolação nossa, aspas do autor, grifo nosso).

Como sustenta Kerkhof (1997), o instante kairológico personifica um tempo originário cuja dimensão é transversal ao tempo linear, horizontal, de Chronos como indicado anteriormente por Onians (2010) e Honkanen (2007). O mesmo

Kerkhoff (1997) nos fornece ainda, duas imagens metafóricas a respeito do tempo: segundo o mesmo autor o instante kairológico “salta” (dimensão vertical) enquanto o instante cronológico “corre” (dimensão horizontal).

O pensamento de Kerkhoff (1997) a respeito do instante kairológico denota possuir uma certa ressonância com a concepção de Leach sobre o intervalo ritual de tempo sagrado ou o tempo continuum, uma vez que, de acordo com o mesmo Leach o indivíduo alterna seu status em sociedade a partir de “saltos”. Dito de outra forma, quando o indivíduo passa de um status social à outro ou é transferido do intervalo de tempo profano para o intervalo ritual de tempo sagrado, ele “salta” para uma temporalidade cuja dimensão é vertical.

Estes “saltos” atribuídos ao instante kairológico podem também ser divisados na metáfora do arqueiro grego que, segundo Onians (2010) “lança” sua flecha em direção a uma abertura “saltando” na direção do alvo. Entretanto, de acordo com a perspectiva de Onians (2010):

“[...] Tal abertura é limitada [...] diz Píndaro. A flecha que erra a abertura (i.e., que vai...) ou atinge o ferro ao seu redor, ou, no caso do corpo, atinge algo contra o qual ele é ineficaz, não terá efeito nenhum.” (ONIANS, 2010 [1951]: 345, tradução nossa, aspas do autor).

Como indicado anteriormente, a consciência ordinária atingida em um Kairos penetra uma abertura que mostra-se limitada e rompe com nossa concepção habitual de linearidade, caracterizando nesse sentido, uma ação de risco para o participante ritual. Onians (2010), é ainda explícito ao assinalar que caso a flecha do arqueiro não atinja o alvo, perder-se-à uma oportunidade. Em outras palavras, existe uma meta a ser alcançada pelo participante ritual quando no intervalo de tempo sagrado; entretanto caso sua atitude não seja eficaz não haverá efeito algum desse instante sobre sua consciência, não ocorrendo qualquer processo de transformação.

Isso posto, concluímos o presente capítulo sumarizando que a partir de Onians (2010), Honkanen (2007) e Kerkhof (1997), dentre outros aportes, vimos que o instante kairológico é percebido grosso modo, como um instante originário,

um fluxo de “agoras”, divino e ao mesmo tempo humano, que não só rompe com a cadeia da linearidade em que os fenômenos “correm” numa sequência causal, como aprofunda-se em uma dimensão vertical, transversal a dimensão horizontal de Chronos, “saltando” e copiando o movimentos dos organismos vivos que seguem um curso unidimensional e irreversível (entrópico), em direção à própria morte.

Quando confrontado com a noção ocidental de tempo cronológico, o instante kairológico, pode nos propiciar uma investigação aprofundada do intervalo ritual de tempo sagrado em Leach uma vez que o próprio Leach

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