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As transformações nas normas de tradução no sistema literário infantil brasileiro

2 Sistema literário, normas de tradução e ambivalência: a posição da literatura infantil

2.2 As transformações nas normas de tradução no sistema literário infantil brasileiro

A noção de normas em tradução foi definida de maneira mais consistente por Gideon Toury durante as décadas de 1970 e 1980 e incorporada pelos Estudos Descritivos da Tradução como conceito chave. O desenvolvimento conceitual do termo, que visa a fundamentar estudos historicamente orientados, apoia-se na ideia de que a tradução, mais que mera atividade linguística e textual, é um fenômeno de relevância cultural. O tradutor e a tradução têm uma função social, atribuída por uma comunidade conforme certos parâmetros de aceitabilidade. Para se tornar um tradutor, o indivíduo precisa introjetar um conjunto de normas que determinarão a adequação de cada comportamento, e manobrar entre essas restrições (TOURY, 1995, p. 53).

As normas tradutórias, segundo Toury (1995, 1998), se referem a uma série de comportamentos aceitáveis – e, portanto, recorrentes – entre os tradutores em um dado sistema literário, que podem ser identificados a partir da análise descritiva dos textos

traduzidos. Essas normas se definem a partir de convenções sociais, muitas vezes tácitas, que estão sempre em negociação, e não se confundem com regras ou regulamentos prescritivos. Nas palavras de Toury (1998, p. 16-17):

As normas têm sido, há muito tempo, consideradas como a tradução de valores e ideias gerais compartilhados por um grupo – relativos ao que se considera convencionalmente certo e errado, adequado e inadequado – em instruções performáticas apropriadas e aplicáveis a situações particulares, especificando o que é prescrito e proibido, bem como o que é tolerado e permitido em certa dimensão comportamental (o famoso “quadrado de normatividade”, que recentemente foi elaborado especificamente para a tradução, e.g. in De Geest, 1992:38-40).31

Trata-se, portanto, de restrições socioculturais que sujeitam a tradução, em maior ou menor grau, para além das diferenças entre os idiomas fonte e alvo ou das limitações cognitivas do tradutor (TOURY, 1995). As normas passam a conformar um repertório, um conjunto de hábitos a partir dos quais os tradutores definirão suas estratégias de atuação, marcando as traduções produzidas em um determinado sistema literário, em um determinado período. As normas permitem perceber se o sistema literário de chegada é mais ou menos receptivo a inovações estéticas.

As restrições implicadas pelas normas de tradução oscilam entre, de um lado, regras absolutas (mais objetivas) e, do outro, idiossincrasias relativas (mais subjetivas). Ao longo dessa escala, as normas graduam-se entre aquelas de mais força, mais assemelhadas às regras, e aquelas mais fracas. Conforme sua intensidade, ou seu nível de aprovação pelo grupo (e, portanto, de vinculação da prática tradutória), as normas de tradução podem ser classificadas como: a) normas básicas, ou primárias; b) normas secundárias, ou tendências – comuns, mas não obrigatórias do ponto do vista do grupo; e c) comportamento tolerado (permitido) (TOURY, 1995, p. 67).

Uma forma de comportamento pode ser mais coercitiva em determinados subgrupos que integram grupos mais heterogêneos. Por exemplo, no âmbito da interpretação, ou da tradução legal ou, poderíamos acrescentar, da tradução para crianças. Ao mesmo tempo, diferentes editoras, se pequenas e independentes ou grandes e estabelecidas no mercado, podem ter padrões de aceitabilidade diversos para as traduções. O nível de vinculação das

31 “Norms have long been regarded as the translation of general values or ideas shared by a group — as to what

is conventionally right and wrong, adequate and inadequate — into performance instructions appropriate for and applicable to particular situations, specifying what is prescribed and forbidden, as well as what is tolerated and permitted in a certain behavioural dimension (the famous ‘square of normativity’, which has recently been elaborated on with specific regard to translation, e.g. in De Geest, 1992: 38–40).”

normas tradutórias varia igualmente ao longo do tempo, em movimentos de ascensão e declínio.

As normas têm a ver com a manutenção de uma certa ordem social. Se as normas não se impusessem, não se poderia falar em desvios, mas em simples variações. Um comportamento que não se conforme às normas dominantes é possível, e não as invalida, mas poderá estar sujeito a sanções, como a recepção negativa por parte da crítica ou do mercado. Por outro lado, em alguns casos a transgressão à norma pode ser bem aceita, conforme o momento histórico e as necessidades de renovação do sistema. A transgressão pode inclusive chegar a constituir-se como nova norma, como é o caso hoje das traduções preocupadas em preservar elementos semânticos e estilísticos do texto original, inclusive no âmbito da literatura infantil.

As normas de tradução podem ser formuladas verbalmente – por exemplo, em teorias da tradução ou depoimentos de tradutores – ou, como é frequentemente o caso, podem ser tácitas. Quando verbalizadas, refletem uma consciência coletiva acerca de sua existência, bem como o desejo de controlar o comportamento dos tradutores.

A tradução envolve pelo menos duas línguas e duas tradições culturais, o que implica dois sistemas de normas em cada um desses níveis (TOURY, 1995, p. 56). A partir dessa constatação, Toury desenvolve a categoria de norma inicial: a escolha básica entre as exigências das duas diferentes fontes – a do texto original, com as normas da cultura que ele reflete, ou a da cultura alvo. A escolha pelas normas do texto fonte, com frequência enxergada como a busca por uma tradução adequada, pode manifestar incompatibilidades com as normas e práticas da cultura alvo, especialmente com aquelas que transcendem os aspectos linguísticos (TOURY, 1995, p. 57). Aqui, quando falamos em cultura fonte e cultura alvo, consideramos não apenas o aspecto territorial e linguístico, mas o aspecto etário: a cultura fonte sendo domínio dos adultos e a cultura alvo, espaço das crianças. Daí o incremento das tensões inerentes à tradução nas operações envolvendo o público infantil, sobretudo quando o texto fonte não foi originalmente redigido para ele.

A aderência às normas da fonte constitui a adequação de uma tradução, enquanto a submissão à cultura alvo implica sua aceitabilidade, embora nenhuma tradução responda de maneira totalmente coerente ao dilema adequação X aceitabilidade. Toury recupera assim a noção de equivalência, porém sob uma perspectiva histórica e não prescritiva. O que interessa para ele não é julgar como boas ou más as alterações em relação ao texto fonte – inevitáveis em toda tradução –, mas descrever a forma como essas alterações ocorrem.

A noção de norma inicial serve como ferramenta explicativa para as decisões reais do tradutor, que envolvem uma combinação dos dois extremos nela implicados. Partindo dela, Toury estabelece outras duas espécies de normas aplicáveis à tradução: normas preliminares e normas operacionais. O primeiro grupo inclui a política de tradução, ou os fatores que governam a escolha de tipos textuais, ou textos em particular, a serem importados por meio da tradução. As normas preliminares abarcam também considerações referentes à exigência de que as traduções sejam realizadas diretamente da língua fonte, sem um idioma intermediário, como aconteceu, no Brasil, no caso das traduções de autores russos feitas a partir do francês até quase o final do século XX. Rachel de Queirós traduzindo Dostoiévski é um exemplo.

As normas operacionais, por sua vez, compreendem aquelas que dirigem as decisões do tradutor durante sua atividade, ou que servem para ele como modelo. Entre elas, encontram-se as normas matriciais, referentes aos fenômenos de acréscimos e omissões à matriz do texto traduzido, incluindo segmentação textual ou inclusão de notas, e as normas linguístico-textuais, que dizem respeito a preferências linguísticas e estilísticas.

As normas tradutórias dependem da posição que a tradução (tanto como atividade quanto como produto) ocupa na cultura alvo. Para avaliar esta posição, é necessário enxergar a literatura traduzida como um sistema, como defendeu Even-Zohar. Uma maneira de avaliar essa posição, conforme propõe Toury, seria uma abordagem comparativa que considerasse a relação entre as normas de tradução e aquelas que governam textos não traduzidos. Ou, como fez Zohar Shavit (1981), uma comparação entre as normas tradutórias que governam o sistema literário adulto e aquelas que governam a literatura infantil. No segundo caso, Shavit atribui ao estatuto periférico da literatura infantil as maiores liberdades que seus tradutores assumem em relação àqueles que lidam com a literatura para adultos.

Pesquisadores na área da literatura infantil comparada têm trabalhado com a noção de norma com grande sucesso na observação do percurso histórico das literaturas infantis em diversas partes do mundo (sobretudo no Ocidente). Sandra Beckett (1997, 2001, 2012), em seus extensos estudos sobre as múltiplas versões de Chapeuzinho Vermelho, ao longo do tempo e em diversos países, e sobre o trânsito de obras literárias entre os sistemas adulto e infantil, observa a oscilação de normas na tradução para crianças, relacionadas à noção de infância, ao que se considera adequado, interessante ou compreensível a elas em cada momento histórico. A partir daí surgem as versões integrais, resumidas, ou estendidas, editadas ou censuradas do conto.

Zohar Shavit (1986) propõe um modelo histórico para a formação das literaturas infantis no Ocidente, apoiada sobretudo em suas pesquisas sobre a gênese da literatura infantil hebraica, tendo a noção de norma de tradução como central. Shavit (2016) observa, por exemplo, como a influência ideológica do iluminismo hebraico (Haskalah) afetou diretamente os procedimentos adaptativos na tradução de clássicos da literatura mundial para o hebraico. Finalmente, Emer O'Sullivan (2005, 2006a) se refere explicitamente à noção de norma de tradução formulada por Toury para tratar do trânsito internacional de obras literárias, tomando como estudo de caso a trajetória de Pinóquio fora da Itália.

No que concerne à pesquisa sobre literatura infantil no Brasil, a noção de norma de tradução, no arcabouço maior de sua perspectiva sistêmica, é fundamental para relacionar a tradução com a formação de nosso sistema literário infantil, segundo uma visão que considere a literatura traduzida fundamental para a história literária nacional (cf. SOUSA, 2015). As normas depreendidas das obras traduzidas para crianças informam muito acerca de cada etapa do desenvolvimento histórico de nossa literatura infantil. Tomemos de maneira bastante

panorâmica a evolução32 das normas tradutórias desde os pioneiros, em fins do século XIX,

até os dias atuais, considerando as obras literárias e os tradutores mais citados nas pesquisas históricas sobre o tema.

Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914), que nos deu em português brasileiro algumas das primeiras versões de contos de Perrault (1628-1703), dos irmãos Jacob (1785- 1863) e Wilhelm (1786-1859) Grimm e de Hans Christian Andersen (1805-1875), não tinha como preocupação a aderência aos textos fontes, mas a sua adequação às supostas necessidades de um público que, à época, tinha acesso quase nulo à literatura redigida na linguagem local. Não havia, em suas antologias, a preocupação em mencionar a autoria dos textos fontes, ou sequer de diferenciar os relatos traduzidos daqueles coletados da tradição oral que já se estabelecera no Brasil, como se lê na apresentação de Histórias da avozinha (1896):

32 Considere-se o termo “evolução” não no sentido progressista, para formas cada vez melhores de traduzir.

Figura 1 – Folha de rosto – Histórias da Avozinha, de Figueiredo Pimentel

Fonte: <https://www.traca.com.br/capas/448/448222.jpg> Livro para crianças

Contendo cinquenta das mais célebres, primorosas, divinas e lindas histórias populares, morais e piedosas (todas diferentes dos outros volumes de contos pertencentes a esta biblioteca), colecionadas umas, escritas e traduzidas outras por

FIGUEIREDO PIMENTEL33

Pimentel veio atender a uma urgência de introduzir, na literatura brasileira, produções direcionadas à infância. Como já dissemos, a demanda regular por livros infantis emergiu com o estabelecimento, pela jovem República, de um sistema escolar menos restrito que o imperial, em razão da necessidade de formar cidadãos aptos a ingressar no novo projeto de desenvolvimento para o país (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p. 31-32).

As questões políticas e econômicas, embora sejam cruciais para o desenvolvimento das literaturas infantis no Ocidente, não podem ser observadas de maneira isolada. De um lado, houve aspectos práticos que permitiram a circulação do livro infantil no Brasil: uma classe média assalariada, com poder aquisitivo para adquirir os livros; um sistema escolar que garantiu o letramento de uma parcela representativa da população; meios de produção e distribuição modernos, que possibilitaram impressão local e em larga escala; uma urbanização

33 PIMENTEL, Figueiredo. Histórias da Avozinha. 1ª Edição. Rio de Janeiro, 1896. Disponível em:

progressiva. De outro, participaram da gênese de nossa literatura infantil ideias sobre a infância oriundas da Europa. Figueiredo Pimentel, por exemplo, acreditava que as crianças deveriam ter histórias escritas especificamente para elas, como se depreende de sua dedicatória em Contos da Carochinha (1884):

Aprende de cor estas historietas. E mais tarde, conta-as na tua voz harmoniosa, num estilo, com imagens tuas, a teus filhos, no berço, à hora do sono, ou nos serões do lar, durante as longas noites de frio e chuva...

Não lhes contes, a ele, a minha história – que é a história triste dos Desgraçados. Cria-os no Bem, cria-os na Virtude, incutindo-lhes o amor de Deus e o amor do próximo. (PIMENTEL, 1959, p. 5. Grifo meu).

É de se notar que as coletâneas de Pimentel não eram pensadas para uso das escolas, mas para a leitura doméstica, compartilhada e mediada. Associadas à hora de dormir e aos momentos de convivência em família, as histórias que colecionou e reescreveu dispensavam a aderência a originais, mas gozavam de liberdade de elaboração para formarem um repertório destinado a uma faixa etária específica, considerada despreparada para a “história triste dos Desgraçados”.

Carlos Jansen (1829-1889), que publicou suas versões de clássicos da literatura mundial à mesma época em que Pimentel lançou suas antologias, partilhava a concepção da tradução como recurso para oferecer leitura acessível em um cenário de escassez de livros. Professor do Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, Jansen decidiu, ele mesmo, produzir literatura para seus alunos. Assim, suas traduções de Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson Crusoe (1885), D. Quixote de La Mancha (1886), As viagens de Gulliver a terras desconhecidas (1888) e Aventuras pasmosas do celebérrimo Barão de Münchhausen (1891) eram facilitadoras e didaticamente construídas. Conforme relatam Lima e Sousa (2015, p. 108/109) em artigo dedicado à atuação desse educador nos primórdios da nossa literatura infantil, “[a]lém de selecionar episódios das histórias, excluindo outros, Jansen condensava a narrativa, cortava frases, reescrevia-as em ordem direta e substituía o uso da primeira pela terceira pessoa [...]”. Nas primeiras edições, o nome do tradutor/adaptador prevalecia sobre o do autor, algumas vezes sequer mencionado nas capas ou folhas de rosto, o que elevava o tradutor à posição de autor.

Figura 2 – Folha de rosto – Mil e uma noites, de Carlos Jansen

Fonte: recorte de <https://d1o6h00a1h5k7q.cloudfront.net/imagens/img_m/4288/1768570_2.jpg>

Na virada do século XIX para o XX, já havia entre os intelectuais brasileiros um pensamento crítico que se opunha aos processos adaptativos, como bem ilustram os ataques do jornalista Valentim Magalhães e do escritor Artur Azevedo ao Dom Quixote de Jansen, e especialmente ao prefácio que o acompanhava, assinado por Ferreira de Araujo, que legitimava as liberdades do tradutor com o texto de Cervantes (cf. LIMA & SOUSA, 2015). A concepção purista dos primeiros era derivada do trato com a literatura não infantil e da herança romântica que considerava o autor como gênio intocável. O Dom Quixote de Jansen recebeu críticas que jamais foram feitas a outras traduções suas, o que advém, sem dúvida, do estatuto de Cervantes no cânone. Enquanto Swift e Defoe, por exemplo, ganharam notoriedade com livros de aventura que logo ingressaram no sistema literário infantil, e hoje são muito mais lidos em suas versões adaptadas que nos textos integrais, o reconhecimento de Cervantes perante a crítica e a academia ainda se dá na posição de autor para adultos – embora, é preciso admitir, também a sobrevida de Cervantes deva muito às adaptações.

Sem nos alongarmos no debate acerca da legitimidade da adaptação do cânone para crianças, o que discutimos de maneira mais aprofundada em Lima e Sousa (2015), digamos apenas que este é um fenômeno natural e inevitável na formação e no desenvolvimento de um sistema literário, em especial quando se trata de literatura infantil. Figueiredo Pimentel e Carlos Jansen adotaram mecanismos de condensação e adaptação para a inserção de textos estrangeiros, muitas vezes redigidos para um público não infantil, entre o leitorado brasileiro.

Diverso é o caso de Cuore (1886), de Edmondo de Amicis, publicado em 1891 no Brasil pela Editora Francisco Alves, na tradução de João Ribeiro, e reeditado por esta mesma editora até 1968 (NETTO, 2012, p. 18). Diferentemente dos clássicos vertidos por Jansen, Cuore era um livro que, já em sua versão italiana, tinha como destinatários as crianças e adolescentes. Assim, não havia necessidade de adaptar o texto para crianças, apenas considerar as especificidades da cultura de chegada. Da mesma maneira, havia uma identidade ideológica entre as instâncias envolvidas na publicação de Cuore na Itália (autor, editoras, Estado, instituições escolares) e aquelas que trouxeram a obra traduzida à jovem República brasileira apenas cinco anos depois de sua primeira edição no país de origem:

[...] a grande lição que os leitores devem aprender nas páginas de De Amicis é o patriotismo, o amor e respeito à família e aos mais velhos, a dedicação aos mestres e à escola, a piedade pelos pobres e fracos. Livro que cumpre importante função na consolidação da unificação italiana, o patriotismo sobreleva todas as demais lições do livro. (LAJOLO & ZILBERMAN, p. 31-32).

Assim, o Coração de João Ribeiro não se apresenta como adaptação, mas como obra traduzida, ou assumed translation (TOURY, 1995), fazendo referência explícita a De Amicis. Conforme anúncio da editora, era “a única [tradução] autorizada pelo ilustre autor, tanto em Portugal como no Brasil” (Revista Pedagógica. Tomo 3, n. 16/17, fev.1892. Apud BASTOS, 2004, p. 8). Além disso, o prefácio à obra italiana foi mantido nas edições brasileiras e havia o cuidado de atualizar as traduções conforme as sucessivas edições que foram sendo lançadas na Itália. A adesão da tradução de João Ribeiro ao texto original pode ser ilustrada pela declaração de Lobato, em 1916, sobre este ser “um livro tendente a formar italianinhos...” (LOBATO, 2010, não paginado).

Havia, portanto, uma única preocupação no ajuste do texto à realidade brasileira: o uso de uma linguagem nacional, corrente. Essa linguagem brasileira não se opunha à italiana, mas sim à portuguesa, na qual até então circulava a maioria esmagadora das traduções – inclusive uma de Cuore. O tradutor salienta, em advertência, “o caráter brasileiro da tradução, em cotejo com a tradução portuguesa, ‘assaz rara e sem circulação legal no Brasil’” (WATAGHIN, 2016, p. 45). Essa escolha, longe de apontar uma tendência domesticadora da tradução, corrobora os objetivos patrióticos do livro e se alinha, portanto, à proposta italiana de submeter a literatura aos ideais políticos de formação de uma identidade nacional.

Assim, é possível observar, no incipiente sistema literário infantil brasileiro do fim do século XIX, diferentes tendências, ou normas de tradução, a depender primordialmente da natureza do texto fonte: se originalmente escrito para crianças ou não, se contemporâneo ou

não, se alinhado ou não às ideologias dominantes no momento em que a tradução foi realizada. A pesquisa histórica aponta para a variabilidade das normas, cuja rigidez tende a atenuar-se durante os processos formativos de uma literatura.

Pode-se dizer que Monteiro Lobato introduziu novas maneiras de se traduzir literatura infantil no Brasil, embora seu “método” tradutório, por assim dizer, se baseasse na velha prática da adaptação. A inovação reside no caráter brasileiro da linguagem, que foi muito além do que se propunha João Ribeiro. Lobato radicalizou o uso da língua nacional, removendo os limites impostos pela norma culta e incorporando a coloquialidade da fala, numa atitude modernista. Uma pequena amostra se vê neste fragmento de seu Robinson Crusoé, cuja primeira edição foi publicada em 1931: “Trabalhar o dia inteiro em oficinas cheias de pó era coisa que não ia comigo. Também não suportava a ideia de viver toda a vida naquela cidade de Iorque. O mundo me chamava” (LOBATO, 1999, p. 5).

Assim como os demais tradutores mencionados, Lobato preocupava-se com a criança brasileira. A diferença reside no fato de que Lobato assumia mais o ponto de vista da criança, buscando produzir algo que fosse agradável a ela, e menos o ponto de vista do