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As edições brasileiras: Hugo sobre a infância, Hugo para a infância?

3 Victor Hugo e suas sublimes crianças

3.3 As edições brasileiras: Hugo sobre a infância, Hugo para a infância?

A poesia de Hugo está disponível para as crianças brasileiras em duas obras contemporâneas, que ainda podem ser encontradas em livrarias: O ogro da Rússia (2012), álbum ilustrado por Sacha Poliakova, artista russa radicada na França, que traz um fragmento do poema “Bon conseil aux amants”, traduzido por Eduardo Brandão; e Cantos para os meus netos (2014), coletânea de poemas organizada e traduzida pela professora da Universidade Federal de Santa Catarina Marie-Hélène Torres, ilustrada por Laurent Cardon – artista de considerável circulação no circuito literário infantil brasileiro. Essas obras apresentam importantes diferenças entre si, que decorrem de uma distinção primeira: a forma como são apresentadas em suas edições infantis. Embora se tratem ambas de obras de poesia ilustrada para crianças, O ogro da Rússia é um álbum ilustrado, enquanto Cantos os para meus netos é uma antologia poética.

Ambas as edições são explícitas em seu direcionamento ao leitor infantil, primordialmente devido à sua apresentação gráfica e à presença das ilustrações. No caso d’O ogro, acrescenta-se que se trata do típico álbum ilustrado, ou livro ilustrado, no qual a informação verbal e a informação visual têm pesos semelhantes, situando-o ainda mais tipicamente no universo infantil – incluindo aí os pré-leitores. Quanto a Cantos para os meus netos, além das grandes ilustrações que acompanham cada poema (embora, nesse caso, elas

tenham mais a função decorativa que narrativa), verifica-se nos paratextos a intenção de atingir jovens leitores.

Em “Traduzindo a poesia que traduzi”, Torres preocupa-se em usar uma linguagem com traços orais, como na declaração “Não tem receita pronta pra traduzir” (HUGO; TORRES, 2014, p. 7), além de períodos curtos, lançando mão com frequência do uso de exclamações. A tradutora elucida termos que poderiam ser desconhecidos à criança, como “neologismo”, e faz referência ao mundo infantil: “Traduzir também é brincar!” (Ibidem, p. 7). Finalmente, a organizadora/tradutora assina sua apresentação simplesmente com seu nome próprio, sem dúvida mais amigável: Marie-Hélène.

Ambas as obras apresentam uma ambivalência de público que poderia situá-las no limiar entre a literatura infantil e a não infantil. Embora vestidas de livro infantil, elas se dirigem igualmente ao público adulto, tanto pelo estatuto canônico do autor quanto pelos recursos poéticos dos textos.

Não é a primeira vez que a poesia de Victor Hugo, traduzida em versos, é publicada no Brasil em edição ilustrada. O poema Coisas do entardecer (Choses du soir), ilustrado pelo francês Patrick Couratin, saiu em 1983 como parte da coleção Abre-te Sésamo, da editora Record, com tradução de Fernando Sabino. A coleção circulou no início dos anos 1980124,

inspirada na similar Enfantimages (1979), da editora Gallimard, que reunia 52 clássicos da literatura mundial, fossem eles relacionados ao universo infantil ou não, com belas ilustrações encomendadas a competentes artistas. Além de Victor Hugo, a Record adquiriu os direitos da

Gallimard para a publicação de O dedo mágico, de Roald Dahl125; O leite da leoa, de Isaac

Singer (trad. Moacyr Scliar); Como matei um urso e História do pequeno Stephen Girard, de Mark Twain; Babine, o tolo, de Léon Tolstoi; O touro fiel e O bom leão, de Ernest Hemingway; O gato e o diabo, de James Joyce (trad. Antonio Houaiss); e O cão e o cavalo, de Voltaire. A Record acrescentou aos autores internacionais os brasileiros Carlos Drummond de Andrade, com o poema O elefante (1983), ilustrado por Regina Vater; Graciliano Ramos, com o conto O estribo de prata (1984), ilustrado por Floriano Teixeira; Jorge Amado, com A bola e o goleiro (1984), ilustrado por Ademir Martins; Fernando Sabino, com Macacos me mordam (1984), ilustrado por Apon; e Vinícius de Moraes, com A arca de noé (1984), ilustrado por Antonio Bandeira. Os livros de autor brasileiro seguem o mesmo projeto gráfico do restante da coleção, adquirido da Gallimard.

124 Todos os livros que temos em mãos são de 1983, ou não apresentam data de publicação.

125 Esta e todas as demais obras cujo tradutor não indicamos entre parênteses foram traduzidas por Fernando

Essa digressão para tratar da coleção Abre-te Sésamo não é sem propósito: pelo perfil dos autores representados, dados às crianças ao lado de ilustrações primorosas, e pela seleta de tradutores, percebe-se a intenção de atingir um duplo público leitor. Algumas das obras tiveram várias reedições, como é o caso de O dedo mágico e daquelas de autoria de autores brasileiros. Já O bom leão e Coisas do entardecer foram adotados pelo programa Salas de Leitura (PNSL), programa oficial de fomento ao livro instituído em 1984, o que aponta uma boa recepção.

A coleção foi editada num momento de maturidade do sistema literário infantil brasileiro, após o boom da década de 1970. É também um período de redemocratização do país e de adaptação à nova cena cultural, livre da censura política, mas doravante sujeita à concorrência com os produtos culturais de massa importados. Trata-se, portanto, de um cenário favorável ao ingresso de autores estrangeiros canônicos, publicados em conjunto com autores nacionais, numa iniciativa notável da Record que situa a literatura traduzida e a literatura brasileira, a literatura infantil e a não infantil, num único sistema – ou, para usar o termo de Even-Zohar, polissistema.

Voltando a Hugo, vale a pena retomar a já mencionada coletânea Poésie de l'enfance/Poesia da infância (2002). A edição se apresenta como não infantil, sentindo a necessidade de deixar claro desde o princípio o público ao qual se direciona. Na segunda orelha, Sérgio Luiz Prado Bellei escreve: “Uma poesia que, vale a pena insistir, é sobre a infância, mas nunca infantil”. Na apresentação à obra, as tradutoras acrescentam:

Esperamos que esta temática, escolhida entre os aproximados cem mil versos compostos por Victor Hugo [...] possa proporcionar ao público adulto brasileiro a possibilidade de ouvir as “vozes interiores” de um dos maiores poetas franceses, de percorrer, através da sua arte, o caminho que vai da compreensão da infância até a compreensão do homem adulto ou, ainda, de atravessar a passagem que leva a outros de seus poemas. (VIVIANI et al, 2002, p. 13. Grifo meu.).

A hipótese de que os poemas de Hugo sobre a infância sirvam como “passagem” para outros de seus poemas levanta a questão: seriam eles considerados mais simples, mais fáceis, um estágio anterior na caminhada até os “outros de seus poemas”? Seriam eles, no fim das contas, poemas “infantis”, no sentido mais pejorativo do termo? A citação acima denuncia a dificuldade muita vezes patente em se compartimentar a literatura por destinatário. É curiosa, por exemplo, a dedicatória desta coletânea declaradamente não infantil: “A todos os poetas, a todas as crianças e a todos os que souberam preservar um coração e uma alma de criança” (HUGO, 2002, p. 5. Grifo meu.).

Outro fato notável é que, à exceção de “Dieu fait les questions pour que l'enfant

réponde”126, todos os poemas da coletânea infantil organizada por Torres estão presentes na

seleta não infantil. É certo que os poemas publicados por Torres em Cantos para os meus netos receberam novas traduções; contudo, não se pode afirmar que sejam traduções mais voltadas para o receptor infantil que aquelas de Poésie d'enfance/Poesia da infância – afirmação que buscaremos fundamentar a partir da análise da tradução de “Jeanne était au pain sec dans le cabinet noir”.

O confronto das duas antologias, uma categorizada como edição para adultos e outra para crianças, mesmo trazendo majoritariamente os mesmos poemas, ilustra sua ambivalência. As rubricas de consumo não são suficientes para dar conta de textos que exibem simultaneamente modelos literários dos dois sistemas. Entretanto, a apresentação gráfica de um livro, a presença de ilustrações e de discursos de acompanhamento são recursos editoriais que favorecem a penetração do cânone entre o leitorado infantil, assim como poderia fazer uma adaptação textual assumida. São formas de reescrita que atuam na transferência de capital literário de um sistema central para um sistema periférico.

Procedemos a seguir ao exame dos poemas e de suas traduções, a fim de observar como esta ambivalência se realiza textualmente. Conforme estrutura descrita ao final do tópico precedente (2), acompanhamos a análise de observações sobre a apresentação gráfica das edições, considerando as ilustrações e os paratextos. Começaremos por O ogro da Rússia.