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3 Victor Hugo e suas sublimes crianças

3.2 Hugo no Brasil e na literatura brasileira

Historicamente, Victor Hugo é para a literatura brasileira influência e presença constante. Como afirma Antonio Candido (1989a, p. 26), Hugo alimenta o aspecto politicamente progressista do Realismo Poético, ou Realismo Social, que surge no Brasil na década de 1870. Escrevendo em 1879, Machado de Assis assim testemunha acerca da presença da poesia desse autor na cena literária brasileira:

Reina em certa região da poesia nova um reflexo muito direto de V. Hugo e Baudelaire; é verdade. V. Hugo produziu já entre nós, principalmente no Norte, certo movimento de imitação, que começou em Pernambuco, a escola hugoísta, como dizem alguns, ou a escola condoreira, expressão que li há algumas semanas num artigo bibliográfico do Sr. Capistrano de Abreu, um dos nossos bons talentos modernos. Daí vieram os versos dos Srs. Castro Alves, Tobias Barreto, Castro Rebelo Júnior, Vitoriano Palhares e outros engenhos mais ou menos vívidos. (ASSIS, 1994).

É fato que Machado passa, em seguida, a desqualificar a maneira deformante pela qual nossos poetas se apropriaram de Victor Hugo. O próprio Machado, aliás, traduziu Os trabalhadores do mar, publicado em folhetim em 1886, mesmo ano em que romance saiu na França. Sua posição, embora acertada do ponto de vista formal, é tributária de uma reverência ao autor e não possui o distanciamento histórico que lhe permita enxergar o papel renovador da obra de Hugo na literatura brasileira – o que se deu, é verdade, por meio de deformações. Poderíamos afirmar a esse respeito o que diz Candido sobre Machado, no mesmo texto, falando de Baudelaire:

Machado tinha razão formalmente; mas hoje podemos perceber que historicamente a razão estava com os moços que deformavam segundo as suas necessidades expressivas, escolhendo os elementos mais adequados à renovação que pretendiam promover e de fato promoveram. (CANDIDO, 1989a, p. 26).

A manipulação dos poemas de Hugo por meio da tradução e da imitação teve grande relevância histórica nos desenvolvimentos poéticos do nosso romantismo. A obra de Victor Hugo, ao lado de outros poetas e dramaturgos franceses como Lamartine e Musset, chega ainda nas primeiras décadas do século XIX a um Brasil em processo de construção de uma identidade nacional, após a independência de Portugal em 1822. A França será a principal influência artística e literária à qual os brasileiros se voltarão em busca de modelos que os diferenciem da antiga metrópole (PINTO, 2003, p. 117). A presença de Hugo se faz notar, de forma mais ostensiva, nas inúmeras epígrafes em poemas dos românticos brasileiros. Seu estilo e suas temáticas penetrarão a poesia de autores condoreiros como Castro Alves, que

também traduziu Hugo120, e marcará o romantismo brasileiro de forma mais ampla:

Partindo de Gonçalves Dias (1823-1864) e seguindo por Álvares de Azevedo (1831- 1852), Casimiro de Abreu (1839-1860) e Castro Alves (1847-1871), delineia-se um trajeto significativo dos leitores e difusores da obra de Victor Hugo (1802-1885), ainda que longe de ser exaustivo no seio do próprio romantismo brasileiro. (PINTO, 2003, p. 119).

A esses, somaram-se imitadores menores, que confirmam que Hugo entrou, para copiar a expressão francesa, no “ar do tempo”. Sua influência chegou até o parnasianismo, com Raimundo Correia, também tradutor de Hugo. Bem entendido, e como observou Machado, nem sempre se tratava de imitação servil. Nossos maiores poetas românticos interpretaram Hugo à sua maneira, para atender às suas necessidades expressivas, nos termos de Antonio Candido. Foi o caso de Gonçalves Dias, que o evocou por meio de diversas epígrafes e pelo tom épico em “O soldado espanhol” (Primeiros cantos, 1847) apenas para desenvolver o tema do exílio, que lhe era tão caro (PINTO, 2003, p. 119).

Talvez a contribuição mais relevante de Victor Hugo à literatura brasileira tenham sido as preocupações sociais, que libertaram o romantismo da redução ao subjetivismo sentimental: “...Hugo deu à nossa poesia, mediante estes seus prosélitos transatlânticos, a

120 Entre as traduções de Castro Alves estão “Perseverando” e “As duas ilhas”, esta segunda uma paráfrase,

ambos publicados em Espumas flutuantes. Além destes, Alves traduziu “Palavras de um conservador a propósito de um perturbador” e o poema longo “A Olímpio”, que compõe As vozes interiores. Trata-se de “300 versos distribuídos em quadras mistas de alexandrinos franceses e hexassílabos, tal e qual o original. Mas no esquema rimário, Castro Alves não manteve a organização ABAB, rimando apenas o 2º e o 4º versos.” (VIANNA, 2002 p. 19).

preocupação das questões humanas, o amor da liberdade, o ardor cívico, o gosto das ideias gerais” (VERÍSSIMO, 2015, não paginado). O grande emblema deste romantismo participante é Castro Alves:

Como é notório, a luta do poeta baiano centrada na abolição, ainda que chegue à defesa do oprimido entre os quais a mulher, não podia ter a abrangência daquela de Hugo. Sinaliza, porém, um avanço considerável sobre os que o precederam e seu verso, eventualmente desigual, gravou cenas na força de uma poesia superior a razões mesquinhas. Nisso, ainda uma vez Hugo: busca de um ideal, de um futuro na grande reconciliação. (PINTO, 2003, 126).

A grande renovação que Hugo opera na poesia brasileira é, portanto, participante, e antecipa os desdobramentos que levarão ao realismo.

Victor Hugo foi traduzido e trazido ao Brasil de forma quase simultânea (embora

bastante incompleta) à edição de suas obras na França. Aguiar (2001) relata que, à época da

publicação de Os miseráveis no Brasil, primeiramente em folhetins, em 1862, e em seguida em uma tradução de dez mil exemplares editada no Maranhão, já circulavam no país três ensaios críticos sobre a obra. Embora de autoria de críticos franceses, os ensaios reforçam a importante recepção do romance no Brasil. Enquanto na França apenas parte da obra havia sido publicada, “o público brasileiro já havia tido a oportunidade de ler o texto completo de Os miseráveis no Jornal do Comércio, que imprimiu a tradução da obra, na forma de romance-folhetim, de 10 de março a 16 de outubro de 1862” (AGUIAR, 2001, p. 163).

Uma forma de estimar a leitura e a recepção de determinado autor em um dado sistema literário é por meio das reedições e, no caso de autor estrangeiro, das traduções de sua obra. Em 1956, a Editora das Américas (Edameris) publicou as Obras Completas de Victor Hugo, que, “embora não sejam efetivamente completas, segundo a Profa. Júnia Barreto, trazem a maior parte da produção hugoana” (BOTTMANN, 2012, não paginado). A coleção traz:

(1) os romances: Os miseráveis, Nossa senhora de Paris, O homem que ri, Noventa e três, O arquipélago da mancha, Os trabalhadores do mar, O último dia de um condenado, Han da Islândia, O segundo bug-jargal;

(2) os ensaios, panfletos e textos diversos: Napoleão, o pequeno, História de um crime, Paris, Coisas que eu vi, Literatura e filosofia entremeadas, William Shakespeare, Victor Hugo narrado por uma testemunha de sua vida, Atos e palavras,

Pós-escrito de minha vida, Em viagem, Cartas à noiva, Correspondência – 1815- 1882;

(3) as peças teatrais Hernani, Marion de lorme, O rei se diverte, Lucrécia Bórgia, Maria Tudor, Angelo, A esmeralda, Ruy Bras, Os burgraves;

(4) as obras em versos Odes e baladas, As orientais, Os cantos do crepúsculo, As expiações, As vozes, Os raios e as sombras, As contemplações, A lenda dos séculos, Canções das ruas e dos bosques, O ano terrível, Os anos funestos, A arte de ser avô, O burro, A piedade suprema, Religião e religiões, Toda a Lira, Fim de Satã, Os

quatro ventos do espírito, O papa, Poemas sobre Victor Hugo121.

A coleção não teve reedições, e os volumes hoje podem ser encontrados apenas em

sebos122 e bibliotecas. O volume 44, que traz, entre outras coletâneas de poesia, a obra Toda a

lira (na qual deveria encontrar-se o poema “Bon conseil aux amants”), tornou-se obra rara. A maioria das bibliotecas das universidades federais e estaduais brasileiras possui apenas parte da coleção: a Biblioteca Central da UnB tem os volumes 3 a 25; a UFMG dispõe dos volumes 1 a 19; no Sistema Integrado de Bibliotecas da USP não foi localizado nenhum exemplar; a UFRJ dispõe de dez volumes, entre os quais apenas o v. 2 aparece como disponível. Localizamos a coleção completa apenas na biblioteca da Unesp, campus de Bauru. A falta de um sistema unificado de busca nos acervos de todas as bibliotecas públicas brasileiras dificulta ainda mais a localização dos exemplares. Em todo caso, é patente a lacuna de disponibilidade da obra traduzida de Hugo para o público – sobretudo sua produção poética e teatral, publicada nos últimos volumes das Obras completas.

Ressalte-se que nenhum dos dois poemas de Hugo com os quais trabalhamos aqui aparecem na coleção da Edameris. Tanto o livro Toda a lira quanto A arte de ser avô foram traduzidos apenas parcialmente, de modo que, até onde pudemos apurar, a primeira vez que “Jeanne était au pain sec” recebe uma tradução brasileira é na já citada coletânea Poésie de l’enfance/Poesia da infância (2002). Já “Bon conseil aux amants” parece não ter nenhuma tradução completa publicada no Brasil, sendo O ogro da Rússia sua primeira referência no país.

Embora Victor Hugo tenha tido um ingresso precoce no Brasil, e sua obra em prosa permaneça relativamente conhecida, há que se reconhecer que sua produção poética caiu em

121 Fonte: <http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/search/label/victor%20hugo>. Acesso em: 26/10/2017. 122 Volumes individuais podem ser adquiridos por valores na faixa de R$10,00-15,00 em websites como

Mercado Livre ou Estante Virtual. A coleção completa, contudo, pode chegar a mais de R$3.000,00. Fonte: <https://lista.mercadolivre.com.br/livros/victor-hugo-obras-completas-44-volumes>. Acesso em: 26/10/2017.

certo ostracismo. Não arrolaremos aqui as traduções e retraduções de seus principais romances, que são numerosas, e que podem ser consultadas em levantamentos realizados por

outros autores, tais como Denise Bottmann123. Iremos nos deter no que foi aqui traduzido de

sua obra em versos.

O proêmio à obra Victor Hugo: dois séculos de poesia, coletânea já mencionada anteriormente, testemunha sobre a menor importância em geral conferida à poesia de Hugo. Referindo-se às homenagens ao centenário do nascimento do escritor, o texto afirma:

Centram-se elas, todavia, de um modo geral e se não nos equivocamos, preferentemente no romance, no teatro, na agitada vida política e sentimental do grande romântico. Parece-nos que a sua imensa obra de poeta não tem merecido a mesma atenção. (PROÊMIO. In: HUGO, 2002, p. 9).

Reis e Silva (2013), a partir de levantamento da poesia de Hugo traduzida no Brasil, (excluído seu teatro em verso), corroboram a assertiva acima. Além da ausência de uma publicação brasileira que reúna toda a obra poética de Hugo, as traduções realizadas a partir da década de 1960 são escassas e pontuais. Pequenas antologias, como a mencionada acima, além de O sátiro e outros poemas (Rio de Janeiro, 2002), dada pelos mesmos tradutores – Anderson Braga Horta, Fernando Mendes Vianna e José Jeronymo Rivera –, somam-se a Poésie de l’enfance/Poesia da infância e a três edições ilustradas dirigidas à infância – as duas que compõem o nosso corpus e mais Coisas do entardecer (1983), traduzida por Fernando Sabino.

É curioso notar que, entre as traduções brasileiras de poemas de Hugo publicadas em livro a partir da década de 1960, apenas duas são antologias mais gerais, dirigidas ao público adulto. Poésie de l’enfance/Poesia da infância, embora destinada a priori a um público não infantil, trata da temática da infância. Os outros três livros, Coisas do entardecer, O Ogro da Rússia e Cantos para os meus netos, são obras ilustradas para crianças. Reis e Silva (2013) mencionam ainda Coisas do ocaso, tradução de Choses du soir publicada em 2012 pelo professor e pesquisador da UnB Marcos Bagno na obra Victor Hugo: Disseminações,

organizada por Junia Barreto(2012). A tradução de Bagno, contudo, foi publicada apenas no

âmbito acadêmico, o que reforça a constatação de que a poesia de Hugo tem, atualmente, circulação limitada no Brasil.

123 Disponíveis em: <http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/search/label/victor%20hugo>. Acesso em:

Como vimos no início deste tópico, os poetas românticos brasileiros muito traduziram, citaram, parodiaram e imitaram Victor Hugo. Mas sua atuação na difusão da poesia hugoana no Brasil é menos relevante para a literatura brasileira que sua efetiva incorporação de elementos novos, notadamente a atenção à realidade social. Sendo este um trabalho que se situa no campo dos Estudos da Tradução, ele não se afasta por isso dos estudos literários, no sentido em que compreende os fenômenos de transferência como formativos para o repertório local, conforme expusemos no tópico 2 desta tese. Assim, quando falamos em lacunas na disponibilidade da poesia de Hugo traduzida no Brasil, não o fazemos em tom de lamento, mas consideramos as demandas do sistema, no momento presente, em relação à literatura estrangeira. O fato de que uma parte expressiva das traduções mais recentes da poesia de Hugo esteja em edições voltadas para a infância é significativo, e sobre elas nos debruçamos a seguir.