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3 Victor Hugo e suas sublimes crianças

3.1 Hugo, poeta da sociedade e do sublime

De tudo o que já foi escrito sobre Victor Hugo, na França, no Brasil e no resto do mundo, importa-nos aqui ressaltar os aspectos de sua obra que se manifestam de forma mais evidente nos poemas do nosso corpus e podem vir a elucidar possíveis pontos de acesso ao leitor infantil. Embora o que nos interesse seja Victor Hugo poeta, sempre que necessário levantamos atributos de sua produção como romancista e dramaturgo a fim de compreender sua obra de maneira mais total e, especialmente, o lugar da infância em sua escrita – lembrando que, em Hugo, a interpenetração de gêneros literários é uma constante. Para fins didáticos, estruturamos esses aspectos em quatro eixos fundamentais: 1) a temática social; 2) o esforço da clareza, ou uma preocupação constante em se fazer compreendido; 3) a imaginação descomedida e o gosto pelo fantástico; e 4) a retórica dos contrastes, ou a estética do grotesco e do sublime.

Hugo é um autor que se situa numa posição bastante vulnerável a críticas negativas. Seus exageros, suas inverossimilhanças, suas digressões, suas repetições e sua prolixidade foram, desde o início de sua atuação como escritor, alvo de censura. Ofir Aguiar (2001), estudando a recepção de Os miseráveis no Brasil, traz uma amostra do que dele foi dito por ocasião da publicação do romance aqui. A autora observa, nas primeiras críticas que circularam no país, uma ênfase nos “aspectos relativos à história, isto é, ao plano dos conteúdos narrados, em detrimento de aspectos relativos ao discurso” (AGUIAR, 2001, p. 165). Segundo a autora, o autor foi alvo de ataques semelhantes na França, conforme ensaio de Max Bach:

Victor Hugo quisera que seu romance fosse uma manifestação política, sustenta o estudioso (BACH, 1962, p. 604); Gramsci, por sua vez, classifica-o como romance popular “de caráter acentuadamente ideológico-político, de tendência democrática ligada à ideologia de 1848” (apud MEYER, 1996, p. 212). Daí a obra hugoana ter sido julgada, sobretudo, por suas implicações políticas, sociais, morais e religiosas, tendo sido negligenciados os aspectos literários. (AGUIAR, 2001, p. 168).

Esse breve compêndio crítico, acompanhado do comentário de Aguiar, sinaliza a ostensividade do aspecto social em Hugo, elemento novo na literatura francesa do período. Felizmente, a maior parte da crítica abandonou a perspectiva rasa e unilateral que via em Hugo apenas um panfletário, o que permitiu sua consagração ainda em vida como um dos maiores escritores franceses de todos os tempos.

Aparecem sobretudo nos romances de Hugo (mas também em sua poesia e seu teatro) personagens à margem da sociedade: Jean Valjean, condenado a trabalhos forçados por uma

contravenção mínima; Fantine, explorada e forçada à prostituição; Cosette, criança órfã e maltratada, no modelo de Cinderela; Quasímodo, o corcunda manco e caolho (“bossu, borgne, boiteux”); Esmeralda, a cigana; Gwynplaine, criança deformada para o divertimento do público. Ao mesmo tempo, as personagens antagônicas a esses heróis marginais são figuras que representam o poder, como Javert, agente da justiça, ou Frollo, o clérico. Hugo simpatiza com o pequeno diante do grande.

Tributária de Rousseau, a base social da literatura de Hugo em particular e do romantismo francês em geral é constrastada por Otto Maria Carpeaux, em sua História da literatura ocidental, com o evasionismo do romantismo anglo-germânico:

Os românticos ingleses e alemães são, em geral, evasionistas; os românticos franceses são, em geral, revolucionários que se conservam mais perto da realidade social. Em compensação, os românticos franceses entregam-se com volúpia a excessos da imaginação mais arbitrária, até frisando o absurdo, sem consideração dos limites do elemento fantástico, impostos aos ingleses e alemães pelas tradições medievais e folclóricas que cultivaram. (CARPEAUX, 2011, p. 1.947).

A citação traz duas oposições fundamentais entre, de um lado, os franceses e, do outro, os ingleses e alemães: a participação social em uns contra o evasionismo nos outros e os excessos imaginativos em uns contra a contenção do fantástico nos outros. Significa dizer que, no romantismo francês, a aproximação à realidade social é acompanhada por uma falta de medida no exercício da imaginação, o que vincula o primeiro e o terceiro aspectos da obra hugona que definimos no primeiro parágrafo deste item – a temática social e o gosto pelo fantástico. Estes dois elementos estão presentes nos poemas com os quais trabalharemos aqui, o primeiro com maior destaque em “A pão e água” e o segundo com mais ênfase em O ogro da Rússia.

Milner e Pichois (1996), fazendo um balanço das definições do romantismo desde o

século XIX, ressaltam, da descrição do austríaco René Wellek96 acerca desse movimento na

Europa, dois traços fundamentais: a importância do símbolo e do mito e a substituição da filosofia mecanista clássica por uma visão orgânica do cosmos (MILNER e PICHOIS, 1996, p. 8). Esta virada ocorre já no final do século XVIII na Alemanha, quando Schelling publica seu Idéias para uma Filosofia da Natureza (Ideen zu einer Philosophie der Natur, 1797):

A Natureza cessa de ser um não-eu para se tornar um espírito inconsciente que tende à consciência. [...] O universo não é mais, para alguns, uma grande máquina que

96 WELLEK, R. “The concept of Romanticism” e “Romanticism Re-examined”. In: NICHOLS, S. (org.).

repousa na frágil mãos de Deus. Ele se torna um grande organismo, um animal cósmico aparentado a Deus. A lógica, que fundamentava a causalidade, cede lugar à analogia, que se contenta com o princípio da contradição.97 (MILNER e PICHOIS,

1996, p. 9-10).

Essa nova filosofia da natureza implica maior liberdade e responsabilidade para o homem, doravante capaz de interagir organicamente com a natureza e o universo. A poesia ganha espaço como ato individual, liberta das restrições da imitação, como aparece em Lyrical Ballads, de Coleridge e Wordsworth, e Athenaeum, dos irmãos Schlegel, ambos de 1798.

O romantismo literário francês, contudo, só se firma com um atraso de meio século em relação à Alemanha e à Inglaterra, por volta de 1840. Milner e Pichois identificam, ainda no fim do século XVIII, manifestações em torno a Diderot e sobretudo a Rousseau, com suas ideias de uma nova sociedade. A nova sociedade de Rousseau exigia a reformulação da fé, da pedagogia, das relações humanas, do amor e, portanto, da estética:

Em volta de Rousseau agrupavam-se discípulos, frequentemente renegados, admiradores, que admiravam também Ossian e Shakespeare, que amavam a natureza, que buscavam os traços e os vestígios do homem e do mundo primitivos e que se entregavam às delícias do sentimento.98 (MILNER e PICHOIS, 1996, p. 12).

Entretanto, este “primeiro romantismo” (nos termos de Milner e Pichois) que se desenvolveu paralelamente ao classicismo de Voltaire entre 1760 e 1790, sofreu uma interrupção, acentuada pela Revolução Francesa e pelo Império de Napoleão. A partir de 1780, há um retorno à antiguidade e aos modelos clássicos, como testemunham a pintura de Jacques-Louis David e a poesia de André Chenier (MILNER e PICHOIS, 1996, p. 13).

Os eventos políticos se imbricam com a evolução do romantismo em razão de este não ser estritamente um movimento literário, mas antes “uma concepção do mundo e da existência, de um mundo que estrutura a analogia, de uma existência pela qual o homem é

restaurado em sua dignidade de reflexo de Deus ou de alma do mundo”99 (MILNER e

PICHOIS, 1996, p. 16). Depois de 1840, a poesia romântica francesa conhece seu

97 “La Nature cesse d’être un non-moi pour devenir un esprit inconscient qui s’efforce vers la conscience. [...]

L’univers n’est plus, pour quelques-uns, une grande machine qui repose dans la main fragile de Dieu. Il devient un grand organisme, un animal cosmique apparenté à Dieu. La logique, qui fondait la causalité, cède place à l’analogie, qui s’accomode du principe de contradiction.”

98 “Autour de Rousseau se groupaient des disciples, souvent reniés, des admirateurs, qui admiraient aussi

Ossian et Shakespeare, qui aimaient la nature, qui recherchaient les traces et les vestiges de l’homme et du monde primitifs et qui se livraient aux délices du sentiment.”

99 “[...] une conception du monde et de l’existence, d’un monde que structure l’analogie, d’une existence par

florescimento, com obras como As flores do mal (Les fleurs du mal, 1857), de Baudelaire, e As contemplações (Les contemplations, 1856), de Hugo.

A plenitude do romantismo francês a partir de meados do século XVIII encontrou expressão em uma revolução dos gêneros literários, que se tornaram maleáveis a fim de permitir a manifestação do gênio pessoal e acolher a imagem e a música, como se vê também em romances do século XIX como Madame Bovary, de Flaubert (1857).

A expressão é ditada igualmente pela índole da língua, pela “fatal clareza da língua francesa”100. Se o astro icônico da lírica romântica anglo-germânica é a lua, habitante da

noite, da escuridão, do mistério (CARPEAUX, 2011), o romantismo francês rege-se pelo sol, o que se realiza em uma escrita guiada pela nitidez e pela comunicabilidade que concorreu para a popularidade de um Victor Hugo. Daí seus arroubos de prolixidade, sua necessidade de reformular a mesma ideia em outros termos, seu desejo de explicitação.

O mesmo cuidado com a compreensão leva o escritor – aqui como poeta – à busca por um léxico mais corrente, como proclama nestes versos de Réponse à un acte d’accusation (1854)101:

J’ai dit à la narine : Eh mais ! tu n’es qu’un nez ! J’ai dit au long fruit d’or : Mais tu n’es qu’une poire ! J’ai dit à Vaugelas : Tu n’es qu’une mâchoire ! J’ai dit aux mots : Soyez république ! soyez La fourmilière immense, et travaillez ! Croyez, Aimez, vivez ! – J’ai mis tout en branle, et, morose, J’ai jeté le vers noble aux chiens noirs de la prose.102

Nota-se neste poema emblemático, espécie de manifesto estético-político, a conexão entre a clareza e o ideal de democratização da poesia, conforme estes versos do mesmo poema: Qui délivre le mot, délivre la pensée (Quem liberta a palavra, liberta o pensamento).

Narine / fruit d’or / Vaugelas (narina / fruto d’ouro / Vaugelas103), representantes do léxico da

nobreza, se opõem aos triviais nez / poire / machoire (nariz / pêra / mandíbula). E assim se

100 Nos termos de Milner e Pichois (1996, p. 17): “Restait la fatale clarté de la langue française. L’instrument

commande l’expression.”

101 In HUGO, Victor. Les contemplations. Poème VII, Livre premier.

102 “Eu disse à narina: mas és apenas um nariz! / Disse ao longo fruto d’ouro: mas és apenas uma pêra! / Disse a

Vaugelas: és apenas uma mandíbula! / Disse às palavras: sejam república! Sejam / O formigueiro imenso, e trabalhem! Creiam, / Amem, vivam! – Pus tudo em movimento e, taciturno, / Arremessei o verso nobre aos cães negros da prosa.” Todas as traduções apresentadas sem fonte nas notas de rodapé são minhas, e têm a função exclusiva de apoiar a leitura daqueles que não compreendem plenamente o francês e o alemão. Nuances acerca do uso da linguagem em Hugo e em Goethe são discutidas nas análises.

articulam neste autor, que escreve não apenas sobre os proscritos, mas também para os proscritos, a clareza e o utopismo social.

Esta poesia revolucionária, devastadora “do velho ABCD”104, não se desvincula

completamente dos clássicos do século XVII, entre os quais Racine e Corneille. Daí o rigor formal, a eloquência, a manutenção da rima e do alexandrino – que Hugo modificou em seu alexandrino ternário, com duas cesuras em vez de um hemistíquio. Nesta espécie de primitivismo, ou de retorno a uma epopéia barroca, Hugo encontra-se com a voz da França, tornando-se um fenômeno social de democratização da linguagem poética em francês – o que Carpeaux chama de “barroco democrático”, ou “barbarização da literatura” (CARPEAUX, 2011, p. 1.675).

Das definições que o romantismo recebeu ainda na primeira metade do século XIX por Stendhal (Racine et Shakespeare, 1823), Baudelaire (Salon de 1846) e Hugo (Préface à Hernani, 1830), o ponto comum é seu aspecto inovador, seu alinhamento com as questões do tempo presente. Para Stendhal, as obras românticas são aquelas ao gosto de seus

contemporâneos, em contraste com as clássicas, já incapazes de proporcionar prazer105.

Baudelaire fala em “arte moderna”, reunindo a intimidade e a espiritualidade em todos os seus

meios expressivos106. Hugo, finalmente, define o romantismo como “o liberalismo em

literatura”107.

A atualidade e o liberalismo do romantismo se manifestam, como dissemos anteriormente, na fluidez dos gêneros literários. O lirismo, elemento fraco na poesia clássica francesa, ingressa com força na literatura romântica. Em Hugo, ele não se opõe à eloquência retórica, constituindo com ela forma potente de expressão argumentativa e pessoal. Milner e Pichois (1996), comentando a série La légende des siècles (1859), afirmam que a poesia de Hugo, cheia de idéias, não é uma poesia de tese (poésie à thèse): “[...] nele, o verbo é primeiro, a forma cria o fundo ou lhe é consubstancial; não há sentido em querer distinguir

104 “Je suis le démagogue horrible et débordé,/ Et le dévastateur du vieux A B C D”. (Sou o demagogo horrível e

dissoluto, / E o devastador do velho ABCD). Versos de Réponse à un acte d’accusation (1854).

105 “Le romanticisme est l’art de présenter aux peuples les œuvres littéraires qui, dans l’état actuel de leurs

habitudes et de leurs croyances, sont susceptibles de leur donner le plus de plaisir possible. Le classicisme, au contraire, leur présente la littérature qui donnait le plus grand plaisir à leurs arrière-grands-pères.” (STENDHAL, [1823] 1928, p. 43).

106 “Qui dit romantisme dit art moderne, — c'est-à-dire intimité, spiritualité, couleur, aspiration vers l'infini,

exprimées par tous les moyens que contiennent les arts.” (BAUDELAIRE, [1846] 1956, p. 115).

107 “Le romantisme, tant de fois mal défini, n’est, à tout prendre, et c’est la sa définition réelle, si l’on ne

retórica e poesia. É preciso ler Hugo em voz alta, deixar-se levar por esse fluxo poderoso”108

(MILNER e PICHOIS, 1996, p. 365).

Vimos exemplos desta eloquência lírica, ou lirismo eloquente, no fragmento de Réponse à un acte d’accusation citado acima, marcado pelo índice pessoal “je”. Em “Bon conseil aux amants” (texto de partida para O ogro da Rússia), o elemento narrativo estrutura a argumentação, sustentada pela alegoria; em “A pão e água”, o discurso se constrói em torno do diálogo entre réu e justiça. Em ambos os casos, as vozes poéticas inserem poeta e leitor dentro do texto, em uma argumentação caracterizada pela pessoalidade.

Carpeaux identifica na poesia de Hugo dois elementos essenciais e contraditórios: “o elemento pitoresco e o elemento intimista” (CARPEAUX, 2011, p. 1.673). A apreciação pelo pitoresco, herança de Walter Scott, cujas traduções começaram a se difundir na França em 1816 (MILNER e PICHOIS, 1996, p. 1999), em Hugo se realiza de maneira menos histórica e mais sentimental (assim como em Rousseau). As influências estrangeiras são, no entanto, bastante reduzidas: “o intimista Hugo, o poeta da família e da criança, tem fontes exclusivamente francesas, no idílio e drama burgueses do século XVIII, em Diderot, na pintura de Greuze” (CARPEAUX, 2011, p. 1.674).

De fato, a literatura francesa viveu um isolamento importante durante o classicismo, como testemunha Madame de Staël neste extrato de De l’Allemagne:

Mas nós estávamos então [há trinta anos] orgulhosos demais de nossos trabalhos, preocupados demais com nossa glória, para deixar-nos seduzir por uma ambição estrangeira. Sobre toda a França estendiam-se os raios de uma luz celeste. Ela levava nos ombros o manto da realeza literária; e quando ela enumerava os nomes ilustres dos seus prosadores, dos seus poetas, quando ela via sua influência se progagando ao sul e ao norte, quando tudo parecia assimilar-se a seu pensamento e dobrar-se a seu gênio, ela podia dizer, mudando uma palavra no orgulhoso axioma de Luís XIV: A Europa sou eu!109 (STAËL, [1813] 1890, p. 5).

O romantismo francês situa-se num momento histórico em que a França começa a se abrir a outras influências. Todavia, sua tradição literária já está tão sedimentada, notadamente no drama e na poesia, com nomes como Corneille e Racine, que sua diferenciação no seio de uma literatura romântica internacional é mais marcante. Um dos elementos da sua

108 “[...] le verbe, chez lui, est premier, la forme crée le fond ou lui est consubstantielle ; il n’y a pas de sens à

vouloir distinguer rhétorique et poésie. Il faut lire Hugo à haute voix, se laisser porter par ce flux puissant.”

109 “Mais nous étions alors trop fiers de nos travaux, trop préoccupés de notre gloire, pour nous laisser séduire

par une ambition étrangère. Sur toute la France s'étendaient les rayons d'une lumière céleste. Elle portait sur ses épaules le manteau de la royauté littéraire; et quand elle énumérait les noms illustres de ses prosateurs, de ses poètes, quand elle voyait leur influence se propager au sud et au nord, quand tout semblait s'assimiler à sa pensée et se plier à son génie, elle pouvait dire, en changeant un mot à l'orgueilleux axiome de Louis XIV : L'Europe, c'est moi !”

originalidade é a retórica dos contrastes, ou a tensão entre o grotesco e o sublime, o quarto aspecto da obra de Hugo patente nos poemas do nosso corpus.

Dominique Peyrache-Leborgne (1993) discorre sobre o tema do sublime no século XIX francês, especialmente em Hugo, sempre em oposição ao grotesco, conforme reflexões do próprio autor em seus principais textos teóricos, do Prefácio de Cromwell (1827) a Wiliam Shakespeare (1864). No fim do século XVIII, os discursos sobre a arte ressaltavam as contradições entre o prazer estético, tributário das emoções fortes, do espetáculo trágico, e a vida real, na qual a dor é algo a se evitar. Peyrache-Leborgne sintetiza esta oposição em

citação de Diderot: “Amamos o prazer em pessoa e a dor em pintura”110 (apud PEYRACHE-

LEBORGNE, 1993, p. 17). O pensamento estético sobre o sublime que se desenvolve no século XIX é tributário dessa tensão, modificado pelo sentido ético e político que ela adquire com a Revolução Francesa. Com a realização concreta das inquietações que eram apenas teóricas no século precedente, a arte pós-Revolução terá o papel de estabelecer uma moral unificadora para um homem desorientado diante da história (PEYRACHE-LEBORGNE, 1993, p. 17). O sublime consiste em uma reunião entre ética e estética, superando o belo como foco principal da arte.

Essa noção não foi formulada de maneira explícita pelos românticos, permanecendo difusa em vários escritos. Peyrache-Leborgne postula que em Hugo, o sublime, embora não plenamente teorizado, aparece como categoria estética fundamental:

[...] a obra hugoana possui, contudo, o privilégio de uma confrontação mais direta com a categoria estética, e oferece dela uma problematização filosófica real, bem como uma notável tentativa de síntese. Ela traz à luz um novo topos do sublime. Seja sob a forma conceitual ou como determinação estrutural, como isotopia poética e romanesca, o sublime é em Hugo uma tonalidade estética que deve ser compreendida como um verdadeiro prolongamento dos desenvolvimentos teóricos.111 (PEYRACHE-LEBORGNE, 1993, p. 18).

Em outros termos, a teorização sobre o sublime em Victor Hugo se prolonga para sua produção literária, “sob a forma conceitual ou como determinação estrutural, como isotopia poética e romanesca”. O sublime é ressaltado por seu inverso: o grotesco. Essa teoria se sustenta sobre uma retórica de contrastes, mais à moda de Shakespeare que do sensualismo que dominava a representação estética do Iluminismo. Hugo propõe uma poética da

110 “Nous aimons le plaisir en personne et la douleur en peinture.”

111 “[...] l’œuvre hugolienne possède cependant le privilège d’une confrontation plus directe avec la catégorie

esthétique, et en offre une problématisation philosophique réelle ainsi qu’une éclatante tentative de synthèse. Elle met au jour un nouveau topos du sublime. Que ce soit sous forme conceptuelle, ou comme détermination structurelle, comme isotopie poétique et romanesque, le sublime est chez Hugo une tonalité esthétique qui doit être comprise comme un véritable prolongement des développements théoriques.”

totalidade, “aliança ao mesmo tempo dessacralizante e fecunda do alto e do baixo, do nobre e

do vulgar, do cômico e do patético”112 (PEYRACHE-LEBORGNE, 1993, p. 18).

No Prefácio de Cromwell (1827), Hugo reivindica liberdade em relação às convenções estéticas do classicismo, propondo uma nova harmonia construída sobre contrastes violentos e sobre a fusão dos opostos. Cromwell é a “dramatização do problema posto pelo destino de

Napoleão: restaurar a liberdade ou instaurar a tirania”113 (MILNER e PICHOIS, 1996, p. 365),

um reflexo das incertezas políticas do próprio Hugo. O prefácio ao drama exalta o grotesco, como recurso que permite a Hugo

libertar-se da visão unilateral do mundo que lhe propunham uma ideologia pré- fabricada e uma estética acadêmica, de revelar o inverso das coisas, seja este inverso também aquele da lógica e da razão, de dar voz àquela que não tem voz (e adivinhamos que o mundo liberto pelo grotesco se situa do lado do povo, cuja ausência e o mutismo tornam impossível toda ordem verdadeira). (MILNER e PICHOIS, 1996, p. 358).

Retomando apenas alguns dos personagens antitéticos mais célebres de Hugo: Quasímodo e Esmeralda, Gwynplaine e Déa, Jean Valjean e Cosette. O efeito é o reforço do