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CAPÍTULO 1: O CONTEXTO DA VILA DE DEIR EL-MEDINA

1.2 As Tumbas das Necrópoles da XVIII Dinastia

A maior quantidade de dados sobre a comunidade da XVIII dinastia provém de tumbas do período que foram descobertas no vale, dos enterramentos em poços e das estelas funerárias encontradas próximas à vila. Durante a XVIII dinastia as tumbas estavam

34 REEVES, N. & WILKINSON, R. H. op cit p. 97-98.

35 HORNUNG, E., ABT, T. & WARBURTON, D. The Egyptian Amduat: the Book of the Hidden Chamber.

espalhadas em dois montes, o Gournet Murai, na parte leste, e o monte Ocidental, menos íngreme, bem como na parte baixa do vale, nas áreas ao norte e ao sul da vila36.

Esta área foi intensamente pesquisada pelo arqueólogo francês Bernard Bruyère, que localizou tumbas com diferenças marcantes no que se refere à posição social dos indivíduos. Durante a XVIII dinastia a parte sul da necrópole de Gournet Murai, junto ao sopé do monte, foi destinada a crianças pequenas. Neste local, diversos poços de formato retangular, quadrangular e circular, com 40 a 90 cm de profundidade37, continham restos de seres humanos em seus primeiros estágios de desenvolvimento, ainda como fetos. Havia também recém-nascidos e crianças com poucos meses. Restos de materiais provenientes de partos, como tecidos e até mesmo prováveis vestígios de placentas, foram igualmente registrados.

É interessante notar que embora os enterramentos de crianças em várias sociedades não recebam muita atenção, conforme afirma Morin − “(...) nas sociedades arcaicas, a morte da criança, na qual se destroem, no entanto, todas as promessas de vida, suscita uma reação funerária muito fraca”38−, os estudos no campo da Antropologia também explicam tal ausência como resultado de um processo de socialização incompleto, visto que este somente permite a constituição de um indivíduo depois de certa idade, isto é, no momento em que ele adquire a sua personalidade é que passa a ser reconhecido pelos demais. Se partilharmos desta observação e verificarmos o que acontece nas tumbas pertencentes a esta parte da necrópole podemos supor que pelo menos os parentes mais próximos os consideravam como indivíduos socializados desde o seu surgimento.

Os corpos foram encontrados envolvidos em linho e depositados em cestos de formas variadas. Os bens conferidos a estas crianças, diferentemente do que era de se esperar (brinquedos ou semelhantes), eram iguais aos bens destinados aos adultos: pratos contendo oferendas e vasos para cerveja. Para outros enterramentos foram utilizados vasos de cerâmica, itens de joalheria em faiança, escaravelhos de faiança, caixas e ataúdes. Excetuando este último item, é simples compreendermos a razão pela qual tais peças eram utilizadas: não se esperava a morte de um jovem. Para criar um enxoval funerário para um recém-nascido, o que estivesse disponível seria de bom uso e, se observamos a crença egípcia antiga, verifica- se que as oferendas em alimento e bebida seriam mais importantes do que os brinquedos.

Para a preparação das múmias de crianças maiores era efetuada a raspagem da cabeça, conservando a trança lateral. Alguns dos ataúdes utilizados para crianças e adolescentes eram

36 MESKELL, L. Archaeologies of social life. Oxford: Blackwell, 1999, p.143.

37 BRUYÈRE, B. Rapport sur les Fuilles de Deir el Médineh (1934-1935). Deuxième Partie. Cairo: Imprimeri

de l'Intitut Français dArchéologie Orientale, 1937, p. 11.

de feitio grosseiro, por vezes extraídos de um tronco de árvore. Já outros eram mais elaborados, com formato antropóide. O revestimento dos caixões era branco com figuras pintadas em amarelo.

As tumbas localizadas mais ao norte, já na elevação de Gournet Murai, mostrada na figura 4, foram destinadas a indivíduos adultos. No que se refere à sua parte externa, a superestrutura, não dispomos de informações a respeito, pois, se existiu alguma capela para tumbas mais complexas, esta foi destruída ainda durante a Antiguidade. Dispomos somente da infra-estrutura, que é formada por um pequeno poço de forma quadrangular, com 2 ou 3 metros de profundidade, e uma câmara funerária sem revestimento ou decoração. Suas dimensões, em alguns casos reduzidas ao essencial, permitiam apenas a colocação do ataúde. A entrada da câmara era fechada com uma pilha de rochas irregulares ou com tijolos de adobe, sem uso de argamassa.

Figura 4 – A Necrópole Oriental com a localização das tumbas do norte e do sul, cuja área aparece destacada na fotografia recente. O desenho de linha pertence originalmente à obra de BRUYÈRE, B. “Rapport sur lês foullies de Deir el Médineh 1934-1935”. In: IFAO, Fouilles de L’Institut Français

d’Archéologie Orientale du Caire Année 1937, Planche I. Le Caire: Imprimerie de L’Institut Français

Muitos destes hipogeus pertenciam a indivíduos do sexo feminino que provavelmente não se casaram ou, em certos casos, talvez se divorciaram, conforme a proposta de Meskell39. Somente em uma pequena parcela das tumbas da área encontraram-se indivíduos do sexo masculino. Há também tumbas simples destinadas a casais, como é o caso de um sepultamento datado da época de Hatshepsut e Tothmés III, encontrado por Bruyère nas escavações de 1934 e 193540. Pelas duas estatuetas que estavam na tumba (TT 1379) sabemos os nomes dos proprietários: Satnem e sua esposa, Ibentina. Aquela pertencente a Ibentina estava guardada em um naos de madeira, bastante rústico, com uma tampa deslizante. Havia dois ataúdes de formatos diferentes. O pertencente à mulher era do tipo antropóide e guardava o corpo de uma senhora de cabelos grisalhos. O ataúde de propriedade do homem, com forma retangular, continha igualmente a múmia, que revelou idade avançada e cabelos brancos. O casal havia sido provido de diversos bens, cujas marcas de uso mostram claramente a sua utilização prévia em vida. Lá estavam um banco com três pés, dois bancos baixos, uma cadeira baixa, um travesseiro de madeira, uma peça de tecido, sete cestos, vasos de cerâmica para armazenamento (cinco grandes e dezesseis pequenos), cinco peças de cerâmica utilitária, um par de sandálias, uma flauta, quatro bastões, uma vara de arremesso e itens de joalheria. Um banco com assento de fibra vegetal trançada não apresentava sinais de uso, o que nos revela que foi confeccionado especificamente para a vida post mortem.

A necrópole ocidental começou a ser ocupada em sua porção central, com a construção de tumbas de maiores proporções em relação àquelas localizadas em Gournet Murai. As tumbas eram individuais e incluíam poços sem ordem aparente. Próximo à base da colina, onde a inclinação era menos abrupta, o terreno oferecia um local ideal para a edificação de hipogeus. Os portais de tais tumbas não necessitavam de terraços e a capela era edificada com materiais dispostos de maneira a manter a forma da própria montanha. Estas tumbas ocuparam uma área próxima ao muro de tijolos, construído por Tothmés I, que circundava a vila. Esta área foi reconhecida a partir de 1933 por Bruyère. Ao todo ele descobriu sessenta e quatro hipogeus (de números 1300 a 1363). Alguns destes, pertencentes à XVIII dinastia, foram recuperados como tumbas ou, mais estranhamente, incorporados como depósitos de habitações, quando das extensões da vila sob as XIX e XX dinastias. Um esquema que mostra esta incorporação pode ser visto na figura 5.

39 MESKELL, L. op cit. p. 102. 40 BRUYÈRE, B. op cit. p. 173.

Figura 5 – A vila em sua terceira fase com a localização das tumbas das Necrópoles Ocidental e Oriental. As tumbas ao sul foram incorporadas as casas já na época Raméssida. O desenho de linha pertence à obra de SÉE, G. & BAUX, J-P. Grandes Villes de l’Egypte antique. Paris: Serg, 1974. p. 42. Notas indicativas de Moacir E. Santos.

Um dos achados mais surpreendentes da necrópole ocidental, mostrada na figura 6, foi a tumba intacta do arquiteto Kha e de sua esposa Merit, descoberta pelo egiptólogo italiano Ernesto Schiaparelli em 1906. Kha, contemporâneo do faraó Amenhotep III (c. 1390-1352 a.C.), havia providenciado a construção de uma capela de adobe em forma de pirâmide, decorada com cenas de oferendas, e uma tumba, composta por um pequeno poço, dois corredores e uma câmara funerária com teto em abóbada41. O sepulcro conservou-se intacto e seu conteúdo nos fornece uma lista dos bens que deveriam estar presentes no funeral de um funcionário. Havia na tumba dois ataúdes, um para cada um dos cônjuges, uma estatueta de madeira de Kha, um exemplar do Livro dos Mortos, dois ushabtis e um cofre com objetos do esposo. Havia também bengalas, uma esteira de viagem, uma caixa com objetos de toalete e outra para roupas. O enxoval de Merit incluía uma bela peruca, com o respectivo apoio e o armário para guardá-la, agulhas de bronze, alfinetes de osso para o cabelo, um pente, um frisador, uma caixa de cosméticos contendo vasos de alabastro, faiança e vidro.

41 SCHIAPARELLI, E. La tomba intatta dell’Architetto Kha nella necropoli di Tebe. Torino: Adarte, 2007, p. 6-

Peças do mobiliário da casa, bem como outros objetos de uso cotidiano, também estavam na tumba. Uma cadeira pertencente a Kha, bancos de vários tipos, duas mesas de madeira, quatro mesinhas de junco, duas camas com apoios de cabeça, treze caixas para objetos diversos, lençóis, toalhas, tapetes, um tabuleiro de senet, uma sítula de prata e um côvado de ouro – que Kha havia recebido de presente do próprio faraó. Também não podemos esquecer de mencionar as oferendas de diversos tipos: pães, cerveja, vinho, óleos, leite, farinha de trigo, aves preparadas, carne salgada, peixes secos, cebolas, alhos, uvas, tâmaras, figos e nozes.42

Figura 6 – A Necrópole Ocidental, onde estão localizadas as tumbas dos membros da elite da vila, a partir de uma projeção da planta final, que data do término do Reino Novo. O desenho de linha pertence à obra de SÉE, G. & BAUX, J-P. Grandes Villes de l’Egypte antique. Paris: Serg, 1974, p. 43. Foto da Necrópole Ocidental, com a vila em primeiro plano, de Moacir E. Santos.

A grande quantidade de bens funerários presentes na tumba de Kha e Merit nos auxilia no entendimento das práticas funerárias da XVIII dinastia, de modo que estas acabam por refletir uma ideia de além-túmulo voltada muito mais para a vida do que para a morte. Este casal viveu durante o reinado de Amenhotep II, e foi das mãos do próprio faraó que o arquiteto recebeu uma série de itens, como um côvado recoberto de ouro e um colar da honra,

42 DONADONI, S. O morto. In: DONADONI, S. (org). O homem egípcio. Lisboa: Editorial Presença, 1994, p.

que permanece no pescoço de sua múmia43, certamente como um reconhecimento por seus serviços.

Kha foi um dois responsáveis pela construção da tumba de Amenhotep II (KV35), cuja forma é semelhante à de seu predecessor predecessor, Tothmés III, contudo sem a assimetria deste. A única diferença marcante com relação ao número de câmaras entre ambos os projetos é a existência da adição de uma na área do poço, junto à base do mesmo; houve, também, a colocação de um corredor depois da escada que leva à câmara funerária, cuja forma é retangular. Posicionada no sentido norte/sul, esta câmara possui seis pilares e uma espécie de cripta que contém um sarcófago de arenito. Os textos da Amduat dominam as paredes da tumba e, no teto, foram pintadas estrelas amarelas sobre fundo azul escuro, que remetem à ascensão do rei ao céu. Nas colunas a inovação proposta é a relação direta com os deuses, pois o faraó foi representado executando ações rituais perante Osíris, Anúbis e Háthor44.

Kha ainda presenciou a ascensão ao trono de outros dois faraós, Tothmés IV (c. 1401- 1391) inumado na KV43, e Amenhotep III (c. 1391-1353 a.C.), na WV 2245. O projeto de construção da tumba de Tothmés IV seguiu o de seus dois antepassados imediatos. A escadaria de entrada conduz ao primeiro corredor que segue por uma pequena câmara retangular, que é cortada por uma escadaria que leva a outro corredor. Adiante há um poço com uma câmara ao fundo, tal como ocorre na tumba de Amenhotep II. Após o poço o ângulo muda em 90° para a direita, onde há uma câmara com duas colunas e uma escadaria que leva a um pequeno corredor que termina na câmara funerária. Nesta há seis pilares, próximo aos quais foi posicionado o sarcófago. Ao redor há câmaras anexas, que serviriam para a deposição dos bens que compunham o enxoval funerário46.

A partir de Amenhotep III o projeto de construção funerária tornou-se mais complexo. Como local, foi escolhido o Vale Oeste. A planta da tumba deste faraó revela dois ângulos retos, primeiramente para a esquerda após o corredor de entrada e depois para a direita, já na câmara funerária. Na entrada e ao longo dos dois corredores até o poço há três passagens que marcam a divisão. O restante da tumba apresenta semelhanças com a de Tothmés IV: antecâmara com dois pilares, escada na lateral esquerda, e corredor. A partir deste ponto há diferenças no projeto, com uma segunda escadaria uma câmara retangular menor que dá acesso à câmara funerária com seis pilares. Na sequência, temos duas câmaras pequenas à

43 CURTO, S & MANCINI, M. News of Kha’ and Merit, JEA. London: The Egyptian Exploration Society, v.

54, 1968, p. 78.

44 REEVES, N. & WILKINSON, R. H. op cit p.101-102.

45 Esta sigla significa “West Valley” e é utilizada para designar todas as tumbas do Vale Oeste, que na realidade

é uma parte do Vale dos Reis onde foram construídas algumas tumbas.

direita e uma pequena e uma grande à esquerda. Esta última possui um pilar ao centro e uma sala menor. Por último há uma área idêntica a esta ao fundo da câmara funerária, que se tornou quase que um padrão nas tumbas Raméssidas. Estas duas salas com pilares, anexas à câmara funerária, podem ter sido destinadas à esposa real Tiy e a uma de suas filhas, Sat- Amon47.

Talvez tenha sido a longevidade de Kha a principal razão que possibilitou, além da participação contínua nos trabalhos de construção das tumbas destes dois reis, a edificação de uma pequena capela com forma piramidal, encontrada próximo à sua tumba. A pequena pirâmide foi um dos primeiros exemplares dessa estrutura, que era de caráter real e foi apropriada para o uso privado. Na capela estão cenas diversas, notadamente de oferecimento de víveres para o casal.

1.3 A Situação da Vila ao Final da XVIII Dinastia e a Nova Organização na Época