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A Situação da Vila ao Final da XVIII Dinastia e a Nova Organização na Época

CAPÍTULO 1: O CONTEXTO DA VILA DE DEIR EL-MEDINA

1.3 A Situação da Vila ao Final da XVIII Dinastia e a Nova Organização na Época

Com a ascensão ao trono de Amenhotep IV (c. 1353-1335 a.C.), posteriormente Akhenaton, e em função de reformas administrativas que incluíram a mudança da capital de Tebas para Akhetaton, a atual Tell el-Amarna, criou-se um vazio com relação às atividades a serem realizadas no Vale dos Reis. A construção dos túmulos próximos à nova capital tornou necessária a edificação de uma nova vila para os trabalhadores que foram responsáveis pelas tumbas do período. O plano de Akhenaton contrariou toda a ordem previamente estabelecida sobre a localização das tumbas no oeste. Inspirado em suas próprias ideias, ele ordenou a construção do lado leste, justamente onde o Aton surgia para iluminar a terra. Um decreto real de Akhenaton, gravado em uma das estelas de fronteira da cidade de Akhetaton, diz:

Uma tumba deverá ser feita para mim na montanha oriental [de Akhetaton], e meu enterro deverá ser feito nela, nos milhões de anos que o Aton, meu pai, decretou para mim. O enterro da Grande Esposa Real Nefertiti deverá ser feito nela, nos milhões de anos [que o Aton, meu pai, decretou para ela. (E) o enterro da] princesa, Meritaton, deverá ser feito nela, nesses milhões de anos. Se eu morrer em qualquer cidade do norte, sul, oeste ou leste nestes milhões de anos, eu devo ser trazido (de volta) e meu enterro deverá ser feito em Akhetaton. Se a rainha Nefertiti –que ela viva!– morrer em

47 D’AURIA, S. Preparing for eternity. In: FREED, R. E.; MARKOWITZ, Y. J.; D’AURIA, S. Pharaohs of the

sun: Akhenaten, Nefertiti, Tutankhamen. Boston: Museum of Finer Arts/ Bulfinch Press/ Little, Brown and

qualquer cidade do norte, sul, oeste ou leste, nestes milhões [de anos, ela deve ser trazida de volta de modo que] ela [possa ser enterrada em Akhetaton. (E) se a princesa Meritaton morrer] em qualquer cidade do norte, sul, oeste ou leste nestes milhões de anos, ela deverá ser trazida (de volta) de modo que [ela] possa ser enterrada em Akhetaton.48

A planta da tumba era completamente diferente daquelas construídas por seus predecessores. Após uma entrada curvada e uma escadaria com rampa ao centro, atinge-se um longo corredor que conduz a uma escadaria que termina em um poço. Logo após está a câmara funerária com duas colunas. Na lateral direita do grande corredor estão duas áreas subsidiárias. A primeira é composta por seis corredores sem nenhuma decoração. O terceiro corredor possui a forma de uma curva. No segundo conjunto estão três câmaras quadrangulares decoradas com cenas realísticas, denominadas de α, β e γ, entre as quais há uma célebre, que mostra o faraó Akhenaton e a rainha Nefertiti lamentando-se pela perda da princesa Meketaton, que teria sido inumada neste local. A câmara β não recebeu nenhuma decoração, visto que ficou inacabada49. O corredor que forma o eixo axial pode ser

relacionado à concepção solar, quando Aton continuaria a iluminar o faraó morto, conforme mencionaremos em outro momento.

Embora seja possível alguma especulação, não sabemos ao certo se grupos de trabalhadores de Deir el-Medina foram transferidos para Akhetaton, já que um local próprio para abrigar os construtores de tumbas na nova capital foi edificado. A vila do oeste tebano continuou parcialmente ocupada durante o interregno amarniano, pois alguns artefatos encontrados puderam auxiliar nesta datação50. Após os dezessete anos de reinado de Akhenaton, Tutankhamon (c. 1333-1323 a.C.) restaurou a religião tradicional e retornou para Tebas. Novamente, o Vale dos Reis seria utilizado como necrópole real.

O curto reinado deste faraó, que morreu aos 18 ou 19 anos de idade, não proporcionou aos construtores o tempo suficiente para o planejamento de uma tumba nos moldes das de seus predecessores. A KV62, onde o rei foi encontrado, provavelmente era uma tumba privada que foi adaptada para o enterro de Tutankhamon. A pequena tumba foge do que os reis predecessores haviam planejado, pois a escadaria de acesso segue para um corredor inclinado que termina em uma antecâmara transversal, com sentido norte/sul. Na parede oeste há uma câmara lateral, denominada “anexo”. Há, na parte norte da antecâmara, uma parede que foi construída para separá-la da câmara funerária, que continha os grandes tabernáculos

48 MURNANE, William J. Texts from the Amarna Period in Egypt. Atlanta: Scholars Press, 1995. p. 77-78. 49 BADAWY, A. op. cit. p. 402.

50 MC DOWELL, A. G. Village life in ancient Egypt: laundry lists and love songs. New York: Oxford University

com o sarcófago e os ataúdes do rei51. A múmia estava no mais interno, confeccionado em ouro e com incrustrações.

A câmara funerária é a única que contém pinturas, visto que no restante dos espaços as paredes sequer receberam revestimento. Na parte leste da câmara funerária há uma outra sala anexa, denominada “tesouro” pelos escavadores. Já a tumba de Ay, que sucedeu Tutankhamon, foi construída no Vale Oeste e mostra influência amarniana. Na entrada há uma escadaria que segue um corredor e uma segunda escadaria e um segundo corredor que termina em uma câmara correspondente ao poço. Logo após esta, está a câmara funerária, de forma transversal, com o sarcófago ao centro. Uma câmara sem decoração situa-se no mesmo eixo após a câmara funerária. Nesta tumba há algumas peculiaridades, como os corredores mais longos e o eixo reto em toda a extensão52.

A vila de Deir el-Medina talvez não tenha sido restabelecida de imediato, mas está claro que trabalhadores e artesãos se ocuparam das construções das tumbas de Tutankhamon e de Ay, em seus respectivos períodos curtos de governo. No ano 7 do reinado de Horemheb (c. 1313 a.C.), a comunidade de artesãos já estava reorganizada, visto que certas extensões de terras, incluindo tumbas que foram saqueadas ou mesmo abandonadas, foram destinadas a membros da comunidade pelo prefeito de Tebas. Esta informação chegou até nós por meio de um documento datado do vigésimo primeiro ano do reinado de Ramsés III: “O prefeito de Tebas, Dhuty-mes, dividiu as propriedades na necrópole para a tropa do Faraó, v.p.s. Ele deu a tumba de Amen-(mes) para Khay, meu antepassado, por meio de uma ordem.”53 Esta nova distribuição de tumbas foi aparentemente pacífica, pois algumas já tinham sido saqueadas ou se encontravam abandonadas. Foi também Horemheb quem iniciou a destruição dos vestígios relacionados ao período de Amarna, o que resultou na denominação, já na XIX Dinastia, de Akhenaton como “o inimigo”.

A tumba construída por ordem de Horemheb no Vale dos Reis substituiu a anterior que ele havia edificado em Sakkara, ainda como general. A construção mostra uma alteração do eixo a partir da primeira sala com pilares. A entrada é acessível por meio de uma escadaria que conduz a um corredor. Na sequência há outra escadaria, um corredor, o poço até a primeira sala com pilares, em cuja extremidade há mais uma escadaria. Na parte posterior há mais um corredor, uma escadaria e uma antecâmara onde o rei é representado perante as divindades. A câmara funerária é composta por seis pilares e duas pequenas escadarias que

51 REEVES, N. & WILKINSON, R. H. op cit p.124-125. 52 Ibidem. p. 128-129.

conduzem à cripta, onde se encontrava o sarcófago. No lado direito há mais duas câmaras anexas e no lado esquerdo outras duas, cada uma com uma segunda câmara. Na parte posterior da tumba, após a câmara funerária, há mais duas salas grandes e uma terceira que começou a ser escavada, mas foi abandonada. A duração do reinado de Horemheb, cerca de doze anos, não permitiu a conclusão da tumba, visto que uma parte das pinturas da câmara funerária permaneceu inacabada, o que mostra todas as etapas de trabalho dos artesãos54.

Horemheb foi sucedido no trono por outro general, Ramsés I, que permaneceu no trono por apenas dois anos. Durante este curto espaço de tempo o faraó não preparou uma tumba elaborada. Acessível por meio de uma escadaria, o interior contém apenas um corredor que leva a uma segunda escadaria com um nicho inacabado na parte superior. A escadaria conduz à câmara funerária que contém o sarcófago e que mostra pinturas executadas de forma rápida. Junto a câmara, há outras duas menores nas laterais e um nicho com uma pintura de Osíris55. O número de artesãos envolvidos no projeto não é conhecido, vito que até o reinado de Séty I (c. 1294-1279 a.C.) as informações escritas sobre os trabalhadores de Deir el- Medina são escassas. Contudo, a partir de Ramsés II (c. 1290-1224 a.C.), diversas ostraca, papiros, estelas e inscrições em tumbas permitem-nos conhecer em detalhes a vida dos artesãos e trabalhadores, bem como de suas famílias, e suas casas e tumbas.

Já no princípio da XIX Dinastia, notadamente no reinado de Séty I, houve um acréscimo na área urbana da vila ocupada pelos trabalhadores, que teve sua última expansão em dois sentidos. Uma concentração maior ocorreu em direção ao sul, com quatorze casas, sendo cinco na parte ocidental e nove na oriental, separadas pela via que se expandiu em direção oeste, depois para o sul e por fim para o leste. A outra ampliação ocorreu na porção noroeste do sítio com a adição de uma residência, que era alcançada por meio de uma ruela. O resultado dessa última ampliação pode ser visualizado na figura 7. Este acréscimo revela a necessidade de abrigar um número maior de artesãos e suas famílias para o projeto de construção do sepulcro do faraó ao logo do reinado.

54 BADAWY, A. op. cit. p. 402 e 405.

Figura 7 – Esquema da quarta fase com a quarta e última ampliação da vila com indicações das áreas. O desenho de linha pertence à obra de SÉE, G. & BAUX, J-P. Grandes Villes de l’Egypte antique. Paris: Serg, 1974. p. 41. Notas indicativas de Moacir E. Santos.

Séty I destruiu os últimos vestígios do episódio amarniano e restaurou definitivamente a religião oficial. Além de restaurar inscrições dos faraós anteriores a Akhenaton e representações de Amon que tinham sido destruídas, o faraó empreendeu um grande programa de construções em grandes centros religiosos, como Tebas, Abydos, Mênfis e Heliópolis, onde novos templos foram erigidos e os antigos foram restaurados56. Sua atuação militar restaurou ao Egito antigos territórios, que haviam sido perdidos no final da XVIII Dinastia, e tal domínio foi expandido nos primeiros anos de reinado de seu filho, Ramsés II.

A tumba de Séty I no Vale dos Reis (KV17) é a maior construída no Vale, com 136 metros e 11 salas. O projeto deve ter ocupado uma boa parte do reinado e, como quase todas as demais tumbas, ficou inacabado com a morte do rei. Os relevos estão muito bem preservados e entre eles há uma série de livros, além da Amduat. Nos corredores próximos à entrada estão localizados os textos e cenas da Litania de Ra e, mais adiante, o Livro dos Portões na primeira sala com quatro colunas. Representações do Ritual de Abertura da Boca, que era necessário para que a pessoa readquirisse suas funções vitais no outro mundo, ocupam

pequenas passagens e, já na câmara funerária, coletâneas do Livro dos Portões, da Amduat e do Livro da Vaca Divina, cercariam o rei garantido seu lugar com os deuses57. Uma característica importante da tumba é que o seu eixo é praticamente reto. Esta modificação na forma, que se consolidou deste momento em diante, teve sua origem na tumba de Horemheb.

Com as ultimas adições, a vila de Deir el-Medina obteve sua configuração final de área, mas ainda deve ter passado por pequenas modificações internas, tais como ampliações de cômodos com mudanças de paredes, visto que foi ocupada por pelo menos mais dois séculos a partir do reinado de Séty I. Um documento ilustra bem estes tipos de modificações: “Ano 3, terceiro mês do verão, dia 16. O que o trabalhador Paneb deu para o desenhista [...] ... pelo trabalho de construção que ele fez em minha casa: um quarto de trabalho e uma outra parede faz 1 ... saco”.58

Nesta época a extensão, no sentido do comprimento norte-sul, era de 132 metros e a largura, no sentido leste-oeste, era de 50 metros. Aproximadamente setenta casas compunham todo o conjunto, que deveria ter entre 3 e 5 metros de altura. Pelas plantas é possível conhecer em detalhe a composição das casas, que aparentemente só tinham um andar, embora contassem com depósitos e porões subterrâneos. O teto era coberto com madeira e troncos de palmeira, o que possibilitava o seu uso como terraço, onde muitas atividades poderiam ser levadas a cabo durante o calor do dia. As escadarias presentes nas casas também servem para confirmar o uso desta parte superior.

A residência era acessível por uma única entrada, normalmente mais baixa que a rua, onde havia uma espécie de altar doméstico. Numa segunda sala, de maiores proporções, o teto era sustentado por uma coluna e iluminado por janelas que ficavam localizadas na parte superior. Neste cômodo havia nichos e um banco de tijolos, cujo assento era removível, e conduzia a uma escadaria subterrânea que levava ao porão. Por meio desta sala era possível acessar um quarto, que era provavelmente utilizado pelo casal proprietário ou para guardar materiais, e um corredor que conduzia à cozinha. Nesta última existiam fornos, que foram encontrados em excelente estado de conservação, e demais artefatos ligados ao processamento dos alimentos. Uma abertura na parede conduzia a um depósito subterrâneo, onde eram conservadas as provisões59. A figura 8 mostra o estado atual de conservação da vila de

trabalhadores. As plantas das casas estão bem preservadas, o que torna acessível o estudo da distribuição espacial de Deir el-Medina na sua última etapa de ocupação.

57 REEVES, N. & WILKINSON, R. H. op cit p.137-139. 58 MC DOWELL, A. G. op. cit. p. 66.

Figura 8 – A vila de Deir el Medina em direção ao leste. Ao fundo pode-se observar o vale do Nilo. Foto de Moacir E. Santos

O crescimento da vila durante a XIX Dinastia foi seguido pela ocupação de novos espaços para as necrópoles. Para compreendermos este processo concentraremos nele a nossa atenção nas páginas seguintes.